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Colunas   sexta-feira, 15 de maio de 2020

Ele não vale nada morto: qual será o papel de Boba Fett em The Mandalorian?

Mesmo sem ser um mandaloriano de fato, Fett é o ingrediente que falta para nos ajudar a desenrolar o emaranhado de contradições deste credo.

Você já deve ter ouvido falar do tal Gato de Schrödinger, certo? Elaborada pelo físico austríaco Erwin Schrödinger, a teoria tem muito de física quântica, que ninguém aqui entende, então vamos ao experimento em linhas gerais: ao colocar um gato em uma caixa e mantê-la fechada por um tempo, é impossível identificar se o animal está vivo ou morto, aceitando-se que estaria em ambos simultaneamente.

Claro que não estamos aqui para falar de Física (por mais interessante que seja), mas de “Star Wars”. Depois de uma primeira temporada de sucesso, “The Mandalorian” pretende ter um segundo ano ainda melhor resgatando personagens que já são figurinhas carimbadas nesse universo. O retorno mais bombástico, no entanto, promete ser o do ator Temuera Morrison, que deve interpretar o caçador de recompensas Boba Fett na série.

Se você sabe quem é Boba Fett, deve se lembrar onde o vimos pela última vez… Isso mesmo, sendo engolido pelo monstro sarlacc no filme “O Retorno de Jedi” (1983). Mas então, se ele foi engolido assim, não deveria estar morto? Teoricamente, sim, quando se é engolido por um monstro, a tendência é morrer mesmo. Só que estamos falando de “Star Wars”, uma saga onde até um indivíduo que já foi cortado ao meio sobreviveu (Darth Maul, no caso), então não é tão inconcebível assim que Fett retorne.

Pode ser que ele realmente tenha morrido, e a participação de Morrison em “The Mandalorian” não passe de um flashback (ou talvez ele interprete algum clone). Mas é importante lembrar de uma fala de Pablo Hidalgo, chefe do Lucasfilm story group, sobre essa possibilidade em 2015: “Boba Fett está simultaneamente vivo e morto no poço do sarlacc até aparecer uma história e tirá-lo de lá“. Agora, ao que tudo indica, essa história está para chegar, então vejamos porque esse Fett de Schrödinger vale mais vivo.

“Ele não vale nada para mim morto.”

Fett de Schrödinger: morreu ou não?

O caçador de recompensas de maior renome no submundo do crime. Se ele aceita um serviço, pode considerá-lo feito. Ele tem tranças em sua armadura com pelos dos wookiees que já matou – e se um abraço de um wookiee dói, imagine lutar com um. Ele aprendeu a matar Jedi só para poder se vingar daquele que matou seu pai. Conseguiu rastrear e prender até Han Solo, o contrabandista mais liso do ramo. Parece meio estranho que alguém com essas qualificações morra assim, quase sem querer, como visto em “O Retorno de Jedi“, não? Se lembrarmos que o sarlacc digere suas presas vivas ao longo de mais de mil anos, então Boba Fett teve tempo de sobra para sair lá.

E é isso que o cânone vem dando a entender até agora. A primeira menção a isso veio no romance “Marcas da Guerra“, de 2015. A morte de Jabba the Hutt causou um vácuo de poder em Tatooine, e logo apareceu quem estivesse disposto a preenchê-lo: a mineradora Red Key, empresa de fachada para mais senhores do crime. Um dia, um representante da companhia, Adwin Charu, foi enviado a um sandcrawler para adquirir dos jawas um item raríssimo. A negociação foi difícil, até um morador local, Cobb Vanth, convencer as pequenas criaturas a deixar Charu entrar no sandcrawler junto com ele. Quando avistam o tal item, a dupla se desentende e Vanth leva a melhor, jurando que traria o domínio da lei a Tatooine e livraria o planeta de criminosos como Charu e a Red Key. E o item? Uma armadura mandaloriana completa (ainda que um pouco danificada), que Vanth adota como seu traje.

O segundo indício veio na própria série “The Mandalorian”, no episódio The Gunslinger. Relembrando a trama do episódio, o caçador de recompensas mandaloriano Din Djarin (Pedro Pascal) faz uma parada em Tatooine para consertar sua nave, a Razor Crest. Para juntar dinheiro e pagar pelo conserto, ele topa ajudar um jovem iniciante na profissão, Toro Calican (Jake Cannavale), em seu primeiro serviço, que consiste em prender a assassina Fennec Shand (Ming-Na Wen). Mas nem tudo dá certo, a dupla se desentende e Shand acaba atingida por Calican, não ficando claro se está morta mesmo ou apenas desacordada. Ao final do episódio, vemos alguém se aproximar de seu corpo, mas até agora não descobrimos quem.

Essas informações comprovam que Boba Fett sobreviveu ao sarlacc? Não necessariamente. Existem muitos mandalorianos na galáxia, como já vimos, e a armadura de Cobb Vanth poderia ser de qualquer um deles (o fato de sua armadura estar danificada colabora, claro, mas vai saber…). Os pés que se aproximaram de Fennec Shand poderiam muito bem não ser de Boba Fett (apesar de os efeitos sonoros de seus passos serem iguais aos de Fett em “O Império Contra-Ataca“). É uma galáxia muito grande, oras, claro que nada disso é prova. Mas é tanta semelhança que será mesmo que são apenas coincidência? De novo, vai saber…

E onde ele se encaixa?

É difícil contestar que a participação de Boba Fett nos filmes da trilogia original de “Star Wars” é no mínimo diminuta. Crucial, sem dúvida, mas com poucas falas em “O Império Contra-Ataca” e nenhuma em “O Retorno de Jedi“. Sua morte, aliás, pode ser descrita como tosca sem exagero nenhum. Ainda assim, Fett é dono de um magnetismo difícil de explicar. Talvez seja a armadura, a pose… Foi ele que atribuiu a Tatooine uma aura de Velho Oeste, quase como uma versão espacial do Homem Sem Nome de Sergio Leone.

Pegar estes personagens menores e colocá-los em posição de destaque é uma das coisas que a franquia faz de melhor. Nos quadrinhos, por exemplo, é Boba Fett que descobre e revela para Darth Vader a identidade do piloto que destruiu a Estrela da Morte. Só que a exposição de uma série para Disney Plus é muito maior que a que se tem nos quadrinhos (não me julguem, eu adoro ambos), e essa é a oportunidade perfeita de Fett mostrar a que veio não só por ser seu próprio personagem, mas pelo momento em que a própria “The Mandalorian” e o universo de “Star Wars” estão.

Boba Fett não é um mandaloriano de sangue. Ele é um clone de Jango Fett, que também não é um mandaloriano (de acordo com o novo cânone). Ele é apenas um caçador de recompensas que herdou de seu pai uma armadura roubada. Mas sabe quem também não é etnicamente mandaloriano? Din Djarin, o protagonista da série. Ainda assim, há um abismo de discrepância entre ambos, principalmente pelo que representam nesse universo. Fett é o lado sombrio (com o perdão da expressão, que aqui não tem nada a ver com a Força), que já nasceu subvertido e sequer liga para o mundo ao redor, enquanto Djarin viu sua vida mudar de cabeça para baixo para proteger… um bebê.

O que nos leva ao último ponto. O apego do nosso pistoleiro não-tão-solitário à Criança não se dá *apenas* por ela ser fofinha. Claro, ela é irresistível, mas há um fundo religioso e ideológico, relacionado à cultura mandaloriana no período do Império. Antes, mandaloriano era quem nascia em Mandalore. Só que ao longo das animações “Star Wars: The Clone Wars” e “Star Wars Rebels” vimos essa cultura ser desconstruída por anos de guerra, a ponto de os mandalorianos se tornarem uma etnia quase extinta, vivendo nos esgotos e se adaptando à diminuição de sua população adotando os foundlings, crianças órfãs aceitas e criadas no modo de vida mandaloriano – como Djarin.

As recentes adições ao elenco de Rosario Dawson como Ahsoka Tano, Katee Sackhoff como Bo-Katan Kryze, e do próprio Temuera Morrison, que também pode interpretar o capitão clone Rex, indicam que a trama de “The Mandalorian” começará a se dirigir para a solução da questão mandaloriana. É inevitável, pois trata-se de uma história muito querida pelos fãs e que rende grande audiência em todos os meios (vide os últimos episódios de “The Clone Wars“, dedicados quase exclusivamente a isso). Não há como tratar desse assunto sem falar do que é ser mandaloriano; sem ter em vista a “mandalorianeidade” de Boba Fett, que trouxe vergonha à etnia por usar a armadura sem comprometimento com o que ela representa, e de Djarin, o exato oposto.

“Nenhum criatura viva me viu sem capacete desde que eu jurei ao Credo”.

A trama mandaloriana é talvez o aspecto mais confuso de “Star Wars” – mais até que a natureza da Força – e chega para a segunda temporada de “The Mandalorian” prometendo tratar de todas as suas diferentes facetas. Apesar de a primeira temporada ser focada quase que exclusivamente em Din Djarin e na desconstrução de seu fervor mandaloriano, agora é hora de ele ser reconstruído. Afinal, é inevitável que uma série com esse nome não contemple esse assunto. Um possível choque entre Djarin e Fett é justamente o que precisávamos para ajudar a desenrolar o emaranhado de contradições da cultura e do credo mandaloriano.

Vamos abrir essa caixa?

É natural que parte dos fãs não veja com bons olhos o provável retorno de Boba Fett a “Star Wars”, principalmente com o argumento de que este é um universo muito grande para nos apegarmos sempre aos mesmos personagens. Mas essa trajetória é inevitável e, se não fosse tratada agora, seria posteriormente. A presença de Fett nesse tabuleiro mandaloriano é importante, portanto, para estabelecer o contraponto com o protagonista Din Djarin e estabelecer um elemento de imprevisibilidade, como fizera Darth Maul em “The Clone Wars” – que também foi “ressuscitado” por ser um personagem querido do público para que pudesse ser melhor trabalhado e aprofundado. Fett, assim como Maul, não tem nada a perder. Nunca teve, mas a morte é um elemento que por si só zera a conta de qualquer personagem. Maul usou sua sobrevida para tornar-se o líder do submundo criminoso, subjugar os mandalorianos e buscar vingança contra aqueles que o levaram a morrer inicialmente. Fett encontraria-se nessa mesma estaca zero, com sua carreira como caçador de recompensas acabada e vendo um rival que usa uma armadura quase idêntica ganhando cada vez mais notoriedade e poder entre os foras-da-lei e mandalorianos.

Dentro de sua caixa, o Boba Fett de Schrödinger pode ser qualquer coisa. Estar morto, vivo, não querer mais confusão, o que for. O fato é que muitos querem que essa caixa seja aberta faz tempo, e parece que a hora chegou. Fett é um personagem com imenso potencial na história de “The Mandalorian”, e qualquer forma de usá-lo para expandir a narrativa da série é bem vinda. Infelizmente teremos que esperar até outubro, quando a segunda temporada da série está prevista para chegar ao Disney Plus.

Julio Bardini
@juliob09

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