Cinema com Rapadura

Colunas   segunda-feira, 04 de janeiro de 2021

O Protagonista sem nome e o ambíguo sidekick – por que TENET funciona

Em meio a uma polêmica forma de lançamento, o filme de Christopher Nolan pode não ser uma obra-prima, mas ainda tem muito a oferecer.

“Tenet” foi o primeiro blockbuster a estrear depois da reabertura dos cinemas, ainda durante a pandemia, o que colocou o cineasta Christopher Nolan no centro das atenções não por sua obra, mas pela própria decisão de não adiar o filme. Quando as salas começaram a fechar por volta de março, Nolan escreveu um artigo defendendo as redes de cinema, e pedindo que os governos dessem o devido apoio a estas instituições que ainda estão por um fio. Eventualmente, a defesa de Nolan à experiência das telonas, junto a sua vontade de lançar seu novo longa ainda em 2020, colocaria o cineasta como o “salvador do cinema”, título atribuído a ele pela mídia. “Tenet” deixou então de ser visto como um filme, e sim como um símbolo de toda essa polêmica.

Então vamos logo passar por este elefante na sala: você acha que Nolan é arrogante, e – ignorando o papel da Warner no lançamento do filme – você acha que ele não deveria ter lançado “Tenet” em 2020. Ok, você o odeia. Meu Deus, Christopher Nolan é um babaca sem tamanho. Tudo bem, coloca para fora. Pronto? Agora vamos para o que realmente importa: “Tenet”.

Para ler este texto você deve permitir que este filme seja analisado apenas pelo o que ele é, sem envolver a polêmica de seu lançamento. Isso talvez seja difícil de fazer, porque para muitos o longa teria de ser uma obra-prima para que a ida ao cinema durante a pandemia valesse a pena, algo que ele não é. Atualmente “Mulher-Maravilha 1984” sofre do mesmo problema, sendo que, com seu lançamento no HBO Max o discurso se divide em dois: “fui ao cinema para isso?” e “ainda bem que não fui ao cinema ver isso”.

Mas vamos separar a polêmica da obra e analisar – por que “Tenet” funciona?

O texto a seguir contém spoilers!

O James Bond de Christopher Nolan

A primeira descrição de “Tenet” classificava o longa como uma mistura entre “A Origem” e “Intriga Internacional”, mas com as primeiras imagens o público viu a semelhança direta com “007”. Nolan é um grande fã do icônico espião, e rumores sobre a possibilidade dele dirigir um filme da franquia correm desde o início do reboot com Daniel Craig. Porém, o cineasta também já deixou bem claro que se essa oportunidade surgisse, a obra teria que ser totalmente do seu jeito, e os produtores de “007” ainda não estão prontos para isso. Assim, veio “Tenet”. Talvez cansado de esperar pela chance de colocar as mãos na franquia do espião, Nolan decidiu criar seu próprio Bond.

“Tenet” pode ser essencialmente inspirado em James Bond, mas não é só isso que compõe o material do filme. Para criar seu Protagonista sem nome, Nolan se inspirou na série britânica “The Prisoner” (1967), cujo personagem principal era conhecido apenas como Número Seis. Além disso, o conceito de que quanto menos se sabe sobre um agente de uma organização, melhor, também é presente nas duas produções. Nolan acredita que existe algo envolvente em cair de paraquedas em uma história, sem saber muito sobre o que veio antes, mas focar no agora.

Embora seja um espião, o Protagonista interpretado por John David Washington funciona como uma subversão ao papel proposto por Bond, ao rejeitar o glamour como parte de quem é, e usá-lo apenas como ferramenta para cumprir sua missão. Em “Tenet”, a missão é o que importa para o Protagonista, e nada de seu passado ou sobre quem ele é deve afetar isso. Seu foco é desviado de seu objetivo apenas quando ele tem de escolher entre o sucesso de uma operação e salvar inocentes, e esta última opção prevalece. Assim, mesmo sem nos falar nada sobre o Protagonista, o filme consegue deixar claro que ele é um eficiente agente, com uma forte bússola moral.

– Todos achamos que correríamos até o prédio em chamas. Mas até sentirmos o calor, nunca saberemos. Você sabe.

Nolan cita também filmes de Sergio Leone e Fritz Lang como influências, e claro que diversos tropos de “007” se fazem presentes em “Tenet”, o vilão megalomaníaco sendo o maior deles. Já o conceito de inversão do longa vem diretamente de “Amnésia”, cuja cena de abertura mostra uma cena ocorrendo em reverso, com uma bala entrando na arma. Na verdade, várias de suas obras acabam sendo influências. Com o protagonista sem nome e o ladrão Cobb, “Following” foi o precursor tanto de “A Origem” quanto de “Tenet”, e estes acabam sendo sequências espirituais do primeiro – não são histórias que se conectam, mas sim expansões, com cada capítulo sendo maior e mais audacioso que o outro.

Nolan gosta de trabalhar com cronologias não-lineares, ao mostrar passado e presente ao mesmo tempo em “Amnésia”, e ter três timelines diferentes que se juntam em uma em “Dunkirk”. Em “Tenet” o cineasta representa isso através de seus personagens invertidos, com as ações literalmente sendo feitas de frente para trás. Há também a ideia do “movimento de pinça temporal”, que estabelece dois modos de se ver um acontecimento: do modo normal, indo para o futuro, e do modo inverso, indo para o passado. Assim, aqueles que estão invertidos podem aprender tudo que acontece em determinado evento, e passar a informação para os que estão em modo normal, que passam pelo evento já sabendo o que acontece. É o conceito perfeito para que Nolan ousasse ainda mais na estrutura de seu filme, e embora a execução não tenha sido perfeita, ainda marca o ápice do cineasta no domínio dos efeitos práticos.

“Interestelar” e “O Grande Truque” não ficam de fora, com este sendo o mais similar na linha de que há algo escondido acontecendo diante de nossos olhos, que será revelado ao final, e aquele sendo uma influência temática, visto que a palavra Tenet literalmente significa um princípio acima de todos, que guia os agentes desta organização. Como diz Neil: “O que aconteceu, aconteceu. Uma expressão de fé na mecânica do mundo, não uma desculpa para não fazer nada”.

Mas há também uma referência sutil que deixa o filme ainda mais rico em sua tentativa de criar uma ligação com o público. Enquanto o Protagonista tem a missão de salvar o mundo, seu sidekick Neil tem a missão de salvá-lo, funcionando como uma espécie de Kyle Reese, de “Exterminador do Futuro”. Para que John Connor possa existir no futuro e ser líder da resistência, Reese tem de voltar no tempo para ser o seu pai. Para que o Protagonista possa existir no futuro e ser o líder da Tenet, Neil deve ir se invertendo em sua jornada para o passado, a fim de salvar o Protagonista e colocá-lo no caminho que ele deve ir. A diferença entre Neil e Reese, no entanto, é que Neil conhece totalmente sua missão, e os resultados dela, causando a constante indagação do espectador…

Quem é Neil e o que ele sabe?

“Tenet” nunca esconde que o Neil de Robert Pattinson é alguém que sabe mais sobre a missão do que o Protagonista, e consequentemente o público. Desde o momento de sua apresentação, o longa grita através da trilha – com Meeting Neil – que ele é importante, principalmente para o próprio Protagonista. Não sabemos no momento, claro, mas Neil já conhece o líder da Tenet há muito tempo, e quando ele senta naquela cadeira e se apresenta para o colega, existe um reconhecimento ao mesmo tempo que uma desconfiança. Afinal, este ainda não é o que viria a ser seu amigo, e Neil parece sondá-lo, testá-lo, como para ter certeza de que sua missão deve ser executada.

– Você faria uma criança refém? Uma mulher?

Entender que Neil sempre está um passo à frente da situação, como o Protagonista aponta quando desconfia que ele sabotou a missão, é essencial para que tracemos a diferença entre os dois. Porque o fato é que também não sabemos quem Neil é, não sabemos nem se esse é seu nome de verdade. Não sabemos de que ponto do tempo ele vem, por quanto tempo ele teve de se inverter para chegar até onde chegou, e nem sobre o que o levou até a Tenet. Assim como o Protagonista, ele é alguém sem passado, que se importa apenas com a missão – até mais do que seu colega, pois nele cai a responsabilidade de salvar o mundo, ao salvar o Protagonista -, e cuja bússola moral é exatamente o que lhe levou até ali.

Mas há um charme em saber que Neil esconde um segredo, e é inevitável ao público ser fisgado pela chance de descobrir a verdade. Grande parte dos elogios que “Tenet” recebeu foram dados a Pattinson, que fez de Neil um carismático sidekick ao resoluto Protagonista de John David Washington. A dinâmica dos dois, além de divertida, faz completo sentido com seus papéis na trama. O Protagonista, naquele momento, acabou de ser apresentado a Tenet, ainda está tentando entender a inversão, enquanto faz parte de uma missão em que elementos chaves lhe estão sendo escondidos. Para ele, é como tentar resolver um quebra-cabeças com peças faltando, e seu estresse é visível com isso. Já Neil, veterano da Tenet, já calibrado na noção de que “o que aconteceu, aconteceu”, sabe que as peças vão se encaixar eventualmente se eles continuarem agindo.

– Política de quem?
– Nossa, meu amigo.

Neil também serve a uma função mais metalinguística no filme, ao ser tanto o “avatar” de Nolan dentro da produção – pintando o cabelo de loiro e emulando trejeitos do diretor – , como alguém que ri das próprias convenções do cineasta. Por trás da seriedade de uma trama de espionagem e da pseudociência, está o reconhecimento do diretor a suas próprias manias, um “eu sei que eu faço isso, então podemos seguir em frente?”. O exemplo perfeito disso é quando o Protagonista pergunta a Neil: “essa reversão do fluxo do tempo, nós estarmos aqui agora não significa que nunca aconteceu?”, e o personagem, já tendo revelado ser um mestre em Física, fala sem muita preocupação sobre realidades paralelas e o paradoxo do avô, finalizando com um “sua cabeça já dói?”, claramente direcionado ao público. E então, ao dizer para o Protagonista ir dormir, Neil nos reforça a mensagem já dada no início do filme: não tente entender, sinta.

Mais cedo na trama, quando eles conseguem inverter Kat (Elizabeth Debicki), e precisam fazê-la entender o que está acontecendo, Neil começa com um “toda lei da Física…”, e então é cortado pela edição. É um momento cômico, em que se supõe que para entender toda a confusão de “Tenet”, você deve entender todos os preceitos da Física que o acompanham, o que é especialmente engraçado quando várias pessoas passaram meses tentando desvendar a inversão de “Tenet” ao estudar a entropia e o demônio de Maxwell.

Nolan sabe disso. Ele sabe que seus filmes são taxados de super complicados e “Tenet” é intencionalmente construído de forma a parecer assim. Os diálogos expositivos são usados a rodo aqui, colocados em um ritmo frenético, em que o público mal tem tempo de entender o que aconteceu na primeira frase, já sendo levado para outro cenário, em outro país, em uma operação em que não se sabe qual é o objetivo. E aqui é válida a crítica, mesmo intencional, o frenesi do roteiro de “Tenet” arrisca perder a atenção do espectador simplesmente por não permitir que ele entenda o básico do que está acontecendo. Para muitos, só “sentir” não é suficiente, é preciso entender.

“Nolan sendo Nolan”

Embarcar na jornada de “Tenet” requer uma certa boa vontade, elemento em falta quando se trata de Christopher Nolan. Sem querer evocar a polêmica já alertada no início do texto para ser deixada de lado, é justo ressaltar que as produções do cineasta já vêm ao mundo rodeadas de críticas daqueles que não gostam de seu estilo, e nem de sua postura. Um “Tenet” que não fosse de Nolan poderia ser como um “Contra o Tempo”, divertida obra cujas críticas seriam esquecidas com o tempo, dando chance para ela ser aproveitada em paz. Mas o “Tenet” de Nolan será para sempre isso, mais um filme em que o cineasta abusa na exposição e na trama complicada, com personagens que não conquistam o público. Isso é o que muitos ensaios e textos sobre o longa apontam, trazendo o foco para o que Nolan sempre faz, no lugar de ver “Tenet” como algo próprio.

Claro que tais apontamentos são justos, afinal “Tenet” é o filme mais Nolan de Nolan, encharcado com o DNA do cineasta. No entanto, é também frustrante pouco ver sobre o que John David Washington faz com seu Protagonista, por exemplo. O personagem consegue ser ao mesmo tempo um James Bond e o oposto disso, e se encaixa tanto no estereótipo dos protagonistas de Nolan, quanto rejeita o molde, estando sempre de saco cheio de todos ao seu redor que tentam o enrolar com uma exposição elaborada de algo que poderia ser facilmente dito em uma frase simples.

*100% de saco cheio dessa enrolação, minha senhora*

E quanto à inversão? A ideia de filmar seus atores executando ações de frente para trás traz autenticidade à proposta, e na batalha final reproduz um espetáculo visual que só Nolan consegue trazer aos cinemas atualmente. Ao contrário de alguns momentos ao longo do filme que de fato poderiam, e até deveriam – como na perseguição de carro invertida – serem feitos de modo mais claro, o terceiro ato é justificadamente confuso. É o movimento da pinça temporal em sua maior demonstração, com soldados normais e invertidos tendo de executar uma missão cujo destino é dar errado, para que assim ninguém desconfie da verdadeira missão de recuperar a última peça do algoritmo. É claro que isso deve ser confuso!

E ainda assim, quando a batalha acaba e sobra apenas o silêncio no deserto, é a história de dois amigos que realmente importa.

Te vejo no começo, amigo

O Protagonista e Neil formam uma dupla perfeita, daquelas que poderíamos acompanhar por diversas missões através do tempo. Descobrir, então, que eles de fato passaram por muitas aventuras juntos, mas que isso nunca nos será mostrado, é especialmente doloroso. “Você tem um futuro no passado”, diz Neil quando se despede de seu amigo, sabendo que seu destino acaba ali, salvando o mundo ao salvar o futuro líder da Tenet. O Protagonista o recrutou, ensinou tudo que sabia, e o preparou para a missão mais importante de sua vida, mas tudo isso ainda vai acontecer.

– Para mim, este é o fim de uma linda amizade.
– Mas para mim é apenas o começo.

O que torna filmes de espionagem ou assalto tão atraentes não são as operações secretas nem os planos infalíveis, e sim quem os executam. “Onze Homens e Um Segredo” não cativa o público pela elaborada forma de assaltar cassinos, e sim pela impressionante química de George Clooney e Brad Pitt, que seriam capazes de vender qualquer tipo de trama. Mesmo que já tenha começado de forma celebrada, “Missão: Impossível” só veio a se tornar o que é hoje quando o time se tornou tão importante quanto o Ethan Hunt de Tom Cruise. Afinal, quem é ele sem Luther (Ving Rhames) ou Benji (Simon Pegg)?

Embora tenha nascido da influência de James Bond, um agente que prefere fazer tudo sozinho, “Tenet” triunfa quando aposta no trabalho em equipe, elemento que Nolan deveria ter explorado ainda mais. Talvez houvesse o receio de se assemelhar ainda mais a “A Origem”, que é em sua essência um filme de assalto, com uma equipe bem distribuída em suas funções. Em “Tenet”, são os personagens de Himesh Patel e Aaron Taylor-Johnson que acabam fazendo parte de uma equipe não assumida, com participações pontuais, mas o foco é na dupla formada por Washington e Pattison, que dão alma ao longa, e representam o que faz sentido no meio da bagunça.

Nolan é um grande defensor da ideia de que quem deve atribuir significado a seus filmes é o público. Ele diz que na maioria das vezes o texto deixa claro o que está acontecendo, e que a ambiguidade vem da percepção do espectador do que está assistindo. O pião parou de girar? Você que decide. Mas o texto deixa pistas sobre o que realmente aconteceu, cabe a você interpretá-las. A ambiguidade presente em “Tenet” recai sobre Neil. Ele é ou não o filho crescido de Kat?

Esta ideia marca a maior teoria sobre o filme, e é fascinante pensar nela por um motivo: a nossa tendência como espectador é querer dar significado a tudo que assistimos. O filho de Kat é loiro e tem o mesmo estilo de cabelo que Neil? Eles só podem ser a mesma pessoa. Ok, existem outros pequenos detalhes que informam a teoria. Max, o nome da criança, seria o apelido de Maxmilien. Ao pegar as quatro letras finais do final e invertê-las, o resultado seria Neil. Convincente o suficiente? Mais ainda, o Protagonista viria a fazer parte da vida de Kat futuramente, criando o pequeno Max, ou Neil, e o recrutando para a Tenet, criando um lindo ciclo de eventos.

Significados atribuídos pelo público fazem da relação entre Neil e o Protagonista ainda mais importante, mesmo quando esta ligação entre os dois já existe sem a necessidade de um significado maior. Quando o filme acaba, somos deixados com a ideia de que há mais a ver, e por sabermos que não veremos mais, precisamos de uma conclusão. Eis então, que Neil se torna Max, alguém que será criado pela sua mãe e pelo Protagonista para salvar o mundo.

Nolan, claro, se recusa a admitir a verdade, reforçando que a responsabilidade é do público, mas assim como “A Origem” teve seu fim revelado por Sir Michael Caine anos depois, o mesmo deve acontecer com “Tenet” – as entrevistas de “Batman” chegarão eventualmente, e Pattinson exala a energia caótica perfeita para este tipo de revelação.

Mas a verdade é que a identidade de Neil não importa, sua ambiguidade reflete a necessidade de significado, mas não representa real importância para a mensagem do filme. Ao negar um passado para seus dois personagens principais, Nolan nos motiva a entender que a essência de agentes secretos não são suas personalidades, mas quão longe estão dispostos a ir para cumprir uma missão. Não precisamos saber onde o Protagonista nasceu, como foi criado, nem mesmo seu nome, só precisamos saber que ele não tomaria crianças como refém, e que está disposto a morrer para que a localização do algoritmo não seja revelada. Não precisamos saber de que ponto do tempo Neil veio, ou se ele realmente é o filho de Kat para entender que ele daria, e deu, a vida para salvar o mundo.

“É a fé na mecânica do mundo, não uma desculpa para não fazer nada”, o princípio acima de tudo. Tenet.

Louise Alves
@louisemtm

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