Cinema com Rapadura

Colunas   terça-feira, 08 de dezembro de 2020

Disney Gallery: The Mandalorian – Por trás da máquina de sonhos de Star Wars

A série documental do Disney Plus é muito mais que um simples making-of, e traz um olhar profundo sobre o que é preciso para criar uma história no universo de "Star Wars".

Ao final da segunda temporada de “The Mandalorian“, os fãs de “Star Wars” não ficarão imediatamente órfãos de conteúdo sobre a franquia. Em maio desse ano foi ao ar no Disney Plus a primeira temporada de “Disney Gallery: The Mandalorian“, série documental que traz um olhar aprofundado sobre os bastidores da série criada por Jon Favreau e Dave Filoni.

Das origens da história do mandaloriano Din Djarin (Pedro Pascal) e do menino Grogu até as inovações criadas pela Industrial Light and Magic (ILM) para as gravações, a série é muito mais que um simples making-of; é um vislumbre de como funciona a máquina de sonhos idealizada por George Lucas junto à saga “Star Wars”. Agora, a segunda temporada de “Disney Gallery” irá acompanhar os bastidores do novo ano de “The Mandalorian” a partir do dia 25 de dezembro – um belo presente de Natal (ou melhor, Dia da Vida) para os fãs.

Mais que qualquer outra coisa, “Disney Gallery” mostra que criar um “Star Wars”, seja para cinema ou televisão, não é tarefa fácil e que, quando falamos em “máquina de sonhos”, de fato falamos de uma estrutura complexa e elaborada, na qual todos os envolvidos precisam estar em sincronia – e estão, graças à Força. Aquecendo para a chegada da segunda temporada, vamos relembrar os melhores momentos e principais revelações de “Disney Gallery” até agora? É como deve ser.

As diversas vozes por trás da série

Para a máquina funcionar, é preciso que todos os seus componentes estejam funcionando em sincronia. “The Mandalorian” é o resultado final do trabalho de milhares de profissionais de diversas áreas: de diretores, produtores, atores, divisão de efeitos visuais, etc. Mas mais que competência, para trabalhar em “Star Wars” é preciso ter paixão pelas histórias dessa galáxia tão, tão distante e estar disposto a entender que, quase sempre, elas são muito mais do que histórias de naves e sabres de luz.

Em nossas análises de cada episódio, sempre fornecemos um panorama da carreira do diretor de cada um. Apesar de serem capítulos quase sempre com histórias diferentes, cada um tem uma voz e traz uma bagagem diferente. Com isso em mente, Jon Favreau juntou uma equipe de diretores com experiências diversas na indústria: dos estreantes Bryce Dallas Howard e Dave Filoni, passando por Deborah Chow e Rick Famuyiwa até Taika Waititi, todos sob orientação de Favreau a todo momento. A configuração da equipe de diretores foi extremamente importante para a primeira temporada encontrar seu tom.

O ponto de equilíbrio da equipe, no entanto, é Dave Filoni, tido como o herdeiro natural de George Lucas em “Star Wars”. Ele pôde fazer a transição da animação (ele trabalhara em séries como “Star Wars: The Clone Wars” e “Star Wars Rebels“) para o live-action com o auxílio de uma equipe habilidosa. Seu imenso conhecimento sobre a franquia e sintonia com o pensamento de Lucas sobre os temas de “Star Wars” são indispensáveis para a série e, para falar a verdade, para qualquer obra da franquia produzida futuramente. Nas palavras de Bryce Dallas Howard: “não há ego com Dave Filoni, é tudo sobre ‘Star Wars’ e George. E isso é importante.

 

Mas os grandes talentos não estão apenas atrás das câmeras. Trabalhar em uma série cujo protagonista está sempre debaixo de armadura e capacetes é um desafio para qualquer ator, seja intérprete de coadjuvantes, figurantes ou mesmo do tal protagonista. Pedro Pascal é o dono da voz que ouvimos quando o Mandaloriano fala, mas nem sempre é a pessoa por trás de seus movimentos. Ele se descreve, inclusive, como “o terceiro violino“, com os dois primeiros sendo os dublês que passam a maior parte do tempo dentro da armadura: Brendan Wayne, responsável pelas cenas com armas, e Lateef Crowder, que atua quando há lutas e combates físicos.

Entre os coadjuvantes, é fascinante ver o trabalho de cada um para construir seu personagem. Dos desafios da atriz Misty Rosas, que precisa lidar com uma máscara prostética para poder interpretar os gestos do ugnaught Kuiil, até a disposição física de Gina Carano para dar vida à soldado Cara Dune, cada personagem integra a jornada do Mandaloriano de uma forma específica, possível somente através da dedicação do elenco.

Mitologia como base

“O que eu levo disso é que há algo para o nosso tempo, para os jovens do nosso tempo, que é importante para eles. Claro, eu conheci o creme de la creme dos fãs mais intensos. Mas há algo muito presente. É evidente que ‘Star Wars’ é uma nova mitologia para o nosso tempo, goste ou não.”

A frase acima é de Werner Herzog, icônico cineasta alemão conhecido por seu viés crítico às estruturas do sistema em que vivemos. Não é tarefa fácil convencer alguém assim a participar de uma série como “The Mandalorian”, produzida por um dos leviatãs que consolidou cinema como forma de entretenimento além de apenas arte e, posteriormente, fortaleceu a criação de uma indústria ao redor dessa visão. Apesar disso, Herzog interpreta o Cliente na série. Seu fascínio pelo boneco de Grogu (à época mais conhecido como Baby Yoda) é notório e engraçado, mas foi a construção de uma mitologia em “Star Wars” que o seduziu.

Desde sempre a estrutura de “Star Wars” foi baseada em mitologia. A história de Luke Skywalker na trilogia original, por exemplo, é a Jornada do Herói de Joseph Campbell, enquanto na trilogia nova é a chamada “Jornada do Ancião”, continuação do mito arturiano. Criar qualquer obra ambientada na franquia de George Lucas sem se amparar nos ombros desses gigantes (ou utilizá-las de forma displicente) é um risco grande, capaz de resultar em filmes genéricos (como “O Despertar da Força“) ou perdidos em sua própria história (como “A Ascensão Skywalker“). Para a sorte da equipe de “The Mandalorian”, Jon Favreau e Dave Filoni compreendem bem o papel dessas histórias em “Star Wars”.

Conforme disse Rian Johnson à época do lançamento de “Star Wars: Os Últimos Jedi“, a função dos mitos é refletir as transições mais difíceis da vida de uma pessoa. Favreau vai um pouco além e esclarece porque mitos são tão relevantes no mundo atual: “isso é uma extensão do que é mitologia, contar histórias para a geração que está amadurecendo e lhes ensinar lições sobre a vida através do entretenimento. Na nossa cultura, fazemos com filmes.

Em nossas análises semanais de “The Mandalorian”, tentamos também evidenciar o caldeirão de influências que há por trás de “Star Wars”. Para muitos espectadores, a franquia é a porta de entrada para outros gêneros cinematográficos, seja faroestes, filmes de samurai, entre outros. A chave para criar uma boa história nesse contexto é olhar para a saga de George Lucas não como a influência em si, mas para o que fez dela o fenômeno que é hoje, que são justamente tais histórias e mitos.

Ao falar sobre o assunto, Dave Filoni levanta um ponto relevante que revela a profundidade de uma história aparentemente rasa. Ele analisa (em uma fala já célebre entre os fãs) o duelo de Qui-Gon Jinn (Liam Neeson) e Obi-Wan Kenobi (Ewan McGregor) contra Darth Maul (Ray Park) em “A Ameaça Fantasma“, revelando as motivações altruístas de Jinn para com o jovem Anakin Skywalker (Jake Lloyd) e como os Jedi de então haviam se perdido; o duelo era pelo destino de Skywalker e para que Jinn pudesse ser a figura paterna que lhe faltava.

Algo similar ao que vemos em “The Mandalorian”, que adota uma história no formato de “lobo solitário e filhote”. Tal história já foi contada inúmeras vezes e de inúmeras formas ao longo do tempo. O que a torna especial, aqui, é a compreensão dos papéis de cada personagem em relação ao que está sendo contado, e como eles representam algo real em nossas próprias vidas sem deixar de lado as influências que tornam “Star Wars” algo tão especial.

O Volume

A ferramenta conhecida como Volume é possivelmente a maior inovação tecnológica produzida pela equipe de “The Mandalorian”. Ele consiste em um estúdio circular cercado de painéis de LED de alta definição, inclusive o teto, onde são projetados os ambientes que compõe a cena. Para fornecer imagens que permitam que a gravação ocorra de forma tão natural quanto ocorreria em locações, a equipe de efeitos especiais cria os ambientes utilizando motores de jogos de videogame, como Unreal Engine.

O Volume, no entanto, não é algo pensando do zero ou completamente novo. Como explica o próprio Jon Favreau, essa ferramenta começou a nascer quando o cineasta trabalhava na versão em live-action de “Mogli – O Menino Lobo“, no qual diversas cenas fizeram uso de versões menores de painéis com imagens para auxiliar a composição das cenas. Mais tarde, já em “O Rei Leão“, Favreau empregou motores de jogos em realidade virtual para filmar determinadas sequências. Tudo isso possível graças à uma equipe de profissionais da ILM liderada por John Knoll (dono de um Oscar da categoria e indicado outras cinco vezes).

Mas não é preciso ir longe de “Star Wars” para perceber que essa é uma franquia sedenta por inovação. A própria ILM fora fundada por George Lucas para criar os efeitos visuais de “Uma Nova Esperança“. Antes de “The Mandalorian”, um mecanismo similar ao Volume foi utilizado em “Han Solo: Uma História Star Wars“. Para construir as cenas ambientadas no cockpit da Millennium Falcon, a ILM construiu painéis ao redor do cenário real para que o cinegrafista Bradford Young pudesse dispor de iluminação e poder filmar de dentro do cockpit.

Para a equipe que trabalha nas cenas, o Volume é uma mão na roda. “Ele me colocou de volta em um set, onde as regras são as que eu entendo“, diz Rick Famuyiwa. Quem também comemora é o cinegrafista Baz Idoine, cujo trabalho de conciliar luz e sombras para compor as imagens ficou um pouco mais fácil: “é como uma caixa de iluminação, a iluminação nos objetos é real. Não é preciso imaginar como ficaria“. Para o público, é fácil imaginar que cenas ao ar livre tenham sido filmadas em locações reais ou que ambientes fechados sejam sets construídos. Já para cineastas ou fãs mais puristas, isso é uma forma mais autêntica de fazer cinema. Werner Herzog não escondeu em momento algum sua satisfação com o que ferramentas como o Volume representam: “o retorno do cinema em seu melhor“.

Ao que tudo indica, o Volume é uma tendência e, muito possivelmente, o futuro das gravações. Filmes como “O Céu da Meia Noite“, de George Clooney, e “Thor: Amor e Trovão“, de Taika Waititi, já dispõem da tecnologia – Waititi, aliás, fez uso do Volume já em “The Mandalorian”. E mesmo em tempos de COVID-19, a utilização de um ambiente como esse permite um controle muito maior das condições de gravação e monitoramento de elenco e equipe.

A música

O vídeo acima traz uma performance única do tema principal de “The Mandalorian”. Única porque, primeiro, é conduzida pelo próprio compositor da peça, Ludwig Göransson. Em segundo, porque nos mostra um pouco de seu processo de composição, da variedade de instrumentos utilizados até um pouco da intenção por trás de cada nota.

O tema central da série é algo completamente novo em “Star Wars”. Antes, tudo era apenas orquestrado, seguindo fielmente a linha de John Williams para a Saga Skywalker. Michael Giacchino e John Powell fizeram trabalhos ótimos e construíram trilhas memoráveis para “Rogue One” e “Han Solo“, respectivamente, mas não foram trilhas inovadoras. Para “The Mandalorian”, era preciso mudar.

Favreau menciona que um ponto importante era buscar a inspiração no que inspirou George Lucas, e isso se aplica à trilha sonora, também, com trabalhos de Ennio Morricone e Fumio Hayasaka, parceiros de Sergio Leone e Akira Kurosawa, respectivamente. Göransson é conhecido por ser um compositor inovador, e essa orientação, aliada ao uso de sintetizadores e computadores para modular o som de instrumentos tradicionais, foi a fórmula ideal para criar a identidade sonora de “The Mandalorian”: um som que tem, ao mesmo tempo, traços de sci-fi, faroeste e filmes de samurai, sem abandonar o tom singular de “Star Wars”.

Ludwig Göransson, vale lembrar, é vencedor do Oscar de Melhor Trilha Sonora por “Pantera Negra” e produtor musical premiado por sua parceria com o rapper Childish Gambino. Pela primeira temporada de “The Mandalorian”, ele já conquistou seu Emmy de Melhor Trilha Sonora. E, claro, tem admiração de todos aqui no Cinema Com Rapadura – leia nossa entrevista com ele sobre a trilha sonora de “Tenet“, filme de Christopher Nolan.

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Para a segunda temporada, a expectativa é que “Disney Gallery” vá ainda mais a fundo e mostre os novos processos vistos na segunda temporada, principalmente a expansão da história do Mandaloriano e de Grogu e inclusão de personagens já existentes no cânone, como Boba Fett (Temuera Morrison), Ahsoka Tano (Rosario Dawson), Bo-Katan Kryze (Katee Sackhoff) e Cobb Vanth (Timothy Olyphant).

Os dois últimos capítulos da segunda temporada de “The Mandalorian” vão ao ar nos dias 11 e 18 de dezembro, no Disney Plus. Já a segunda temporada de “Disney Gallery: The Mandalorian” estreia na semana seguinte, em 25 de dezembro.

Julio Bardini
@juliob09

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