Cinema com Rapadura

Colunas   quarta-feira, 08 de maio de 2019

O alvorecer e o plano de dominação mundial do cinema chinês

Conheça as ações do país para se tornar a maior potência cinéfila do planeta.

Enquanto “Vingadores: Ultimato” caminha para ultrapassar “Avatar”, de James Cameron, e se tornar a maior bilheteria da história do cinema, a Marvel começa a dar indícios de como será o futuro da franquia. “Homem-Aranha: Longe de Casa” estreia ainda em 2019. Entre os próximos filmes ventilados estão a aventura solo da “Viúva Negra”, a epopeia do grupo “Os Eternos”, as continuações de Pantera Negra”, “Capitã Marvel” e “Guardiões da Galáxia Vol. 2″. No entanto, a maior surpresa da lista é a possível adaptação de “Shang-Chi”.

Conhecido nos quadrinhos como mestre do kung-fu, o personagem foi criado em 1973 e já foi um membro importante dos Vingadores. Porém, um dos pontos que mais devem nortear a adaptação é a sua origem: Shang-Chi é chinês. Além do peso e da importância de ser o primeiro super-herói asiático no Universo Cinematográfico da Marvel, o filme tem como alvo o segundo maior público consumidor de cinema do mundo.

De acordo com relatório da Associação de Cinema da América (MPAA), em 2017 a ida de pessoas aos cinemas dos Estados Unidos e Canadá caiu para o menor nível em 22 anos. Apesar disso, em vendas globais, as bilheterias atingiram o recorde de US$ 40,6 bilhões, e um dos grandes responsáveis por isso foi a China, que alcançou US$ 7,9 bilhões em ingressos vendidos naquele ano. Dessa quantia, 7% foram destinados a longas oriundos dos EUA.

Hollywood entendeu o poder e encontrou a mina de ouro na nação mais populosa do mundo. No final de 2010, os mais de 1,3 bilhão de habitantes contavam com aproximadamente 6 mil salas de cinema, atualmente são mais de 65 mil. Cerca de 85% delas estão adaptadas para projetar filmes em 3D, de acordo com a seção cinematográfica da Administração Estatal de Imprensa, Publicações, Rádio, Cinema e Televisão da China, citada pela agência oficial “Xinhua”. É o lugar com mais salas de cinema do planeta.

Projeto China

Desde o lançamento, em 1994, de “O Fugitivo”, primeira obra de estúdios americanos a pisar em solo chinês, muita coisa mudou. A linguagem do filme com Harrison Ford e Tommy Lee Jones encantou a audiência local e foi um sucesso, dando início a uma complexa relação entre os dois países. Hollywood passaria a desenvolver seus projetos já visando o impacto que teriam na China.

Entre as ações mais claras e comuns para conquistar a audiência estão gravar cenas em território chinês e escalar estrelas do cinema local em grandes produções. Mesmo quando inseridos em pequenas participações, eles podem ajudar a cativar o público e gerar engajamento, criar identificação e ajudar na publicidade.

É possível ver Michelle Yeoh em “Guardiões da Galáxia Vol. 2” e na série “Star Trek: Discovery”. Donnie Yen vive um dos personagens mais carismáticos de “Rogue One: Uma História Star Wars”. Fan Bingbing interpreta Blink em “X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido”, aparece em uma versão divulgada exclusivamente para a China em “Homem de Ferro 3”, e é uma das protagonistas de “Transformers: A Era da Extinção”.

A obra de Michael Bay, aliás, foi muito além disso. A Paramount Pictures escolheu Hong Kong para fazer a pré-estreia mundial do longa, ação inédita para Hollywood. Além disso, criou um reality show com o propósito de encontrar atores para outros quatro personagens. A estratégia deu certo. Em 2014, “Transformers: A Era da Extinção” se tornou a maior bilheteria da história da China e arrecadou mais de 1 bilhão de dólares mundialmente.

Pode-se atribuir o sucesso das produções americanas ao fato de, assim como no Brasil, muitos hábitos e gostos da audiência terem sido moldados justamente pela interferência exercida no país, em grande parte pelo cinema e programas de TV. Produções recentes como “Jogador Nº1”, “Círculo de Fogo: A Revolta” e “Tomb Raider: A Origem”, por exemplo, tiveram estreia maior na China do que nos EUA e Canadá.

Esse movimento não é necessariamente novo. Há algumas décadas, o sino-americano Bruce Lee foi para os Estados Unidos com alguns dólares no bolso para se tornar uma lenda das artes marciais e do cinema americano. Jet Li e Jackie Chan levaram para o ocidente características e a linguagem das produções chinesas e até hoje exercem influência relevante na indústria e em importantes nichos.

O impacto desses artistas foi um prelúdio para o que está acontecendo agora. Mas o que mudou de lá para cá?

Arrebentando em Nova York

Não é inédito para ninguém que a China quer dominar o mundo. O gigante asiático está bem longe da situação que se encontrava quando lutava para sair da pobreza, antes da abertura da economia, e hoje é protagonista no cenário global. Enquanto alguns países se viram contra o globalismo na política externa, a nação investiu cerca de 25,5 bilhões de reais em diplomacia só em 2017. E o processo de fermentação de sua influência vai bem além disso.

Os investimentos do governo e empresas chinesas são pilares dessa estratégia. O destaque de empresas como Alibaba, Tencent, Xiaomi, Huawei e Didi mostra que o mercado de tecnologia já é um dos mais relevantes e poderosos. As startups locais são as mais cobiçadas e o gasto militar já é o segundo maior do mundo, atrás apenas dos EUA. Porém, o caminho para consolidar a soberania vai além disso e passa pelo seu impacto cultural.

A colonização promovida gradativa e conscientemente pela China envolve propagar seus ideais. É natural que todos as obras imigrantes passem por um rigoroso processo de censura e pré-aprovação antes de chegarem aos cinemas. Além das proibirem qualquer menção explícita a homossexualidade, como cenas de beijo gay e a bandeira do arco-íris, os censores proíbem cenas consideradas obscenas, álcool e cigarro em excesso, fantasma e até viagens no tempo.

Para não perder o segundo maior mercado consumidor de cinema do mundo, cineastas realizam mudanças significativas em seus enredos, elencos e produção. Reflexos dessas imposições podem ser visto, por exemplo, em “Guerra Mundial Z”. O livro que serviu de base para a adaptação coloca os chineses como responsáveis pelo vírus que transforma seres humanos em zumbis. No filme, a doença se origina na Coreia do Norte.

Já no processo de pós-produção do remake de “Amanhecer Violento”, resolveram reeditar digitalmente todas as bandeiras e símbolos dos vilões para que eles fossem retratados como norte-coreanos, ao contrário da versão original, na qual eram chineses. Em “Perdido em Marte”, os cientistas chineses são fundamentais para o sucesso no arriscado resgate de Matt Damon do planeta vermelho.

Enredos que distorcem a civilização e o ponto de vista local ou que oferecem risco à soberania do Estado também são evitadas. Isso foi um fator contribuinte para que a Marvel escolhesse a atriz branca Tilda Swinton para interpretar uma feiticeira tibetana em “Doutor Estranho”. A China e o Tibet enfrentam divergências políticas complexas, principalmente no que tange a questão territorial e o sistema econômico.

Os filmes americanos dependem tão financeiramente do país asiático que aceitam se sujeitar a duras imposições. Oficialmente, o cinema chinês só permite a importação de 34 filmes estrangeiros por ano, apesar da regra ser quebrada eventualmente. Ao mesmo tempo, estúdios internacionais recebem 25% das receitas das bilheterias, enquanto ganha cerca de 40% de outros mercados. O valor que fica no país vai para estúdios locais, distribuidores e cinemas.

Enquanto isso, a China, antes limitada a produzir obras que dificilmente sairiam do território nacional, dá passos largos para aumentar sua audiência e, no futuro, ser tão relevante quanto Hollywood. Os projetos chineses continuam em processo de plena expansão. Em certos períodos, como feriados e datas importantes, o país chega a promover “apagões” de filmes estrangeiros para priorizar as produções desenvolvidas no idioma local.

Para tentar driblar esse protecionismo, os americanos já ensaiam diversos acordos com a China e é bem provável que mudanças importantes no modelo atual aconteçam em breve, principalmente quanto uma abertura maior para seus filmes. Por enquanto, os estúdios seguem fazendo acordos de coprodução. O questionável “A Grande Muralha”, protagonizado por Matt Damon e Pedro Pascal e um exemplo desse tipo de realização.

E Damon não foi o único astro a enxergar o potencial dos projetos locais. Christian Bale, em 2011, participou da produção chinesa “Flores do Oriente”. John Cusack e Adrien Brody fizeram parte da aventura “Dragon Blade” e Bruce Willis estrelou o criticado “Air Strike”. Entretanto, nenhum ator ocidental é tão consagrado em solo chinês quanto Nicolas Cage.

Contestado em Hollywood, ele foi protagonista de “O Imperador”, onde atuou ao lado do eterno Anakin Skywalker, Hayden Christensen. O longa esteve longe de ser um sucesso mundial. Recebeu duras críticas negativas, quase não teve lançamento fora da China e faturou pouco mais de 4 milhões de dólares. Ainda assim, em 2017, Cage foi escolhido como o melhor ator do mundo (isso mesmo!) pela Motion Pictures at China’s Huading Awards. E ele não esconde a admiração que possui pela produção de cinema local.

O Terno de 2 Bilhões de Dólares

Um dos acordos mais notórios da parceria comercial entre os países é a existente entre a Amblin Partners, de Steven Spielberg, um dos diretores mais talentosos vivos, e o grupo Alibaba (aquele mesmo das muambas gringas), do bilionário chinês Jack Ma. A proposta é promover a integração entre a produção cinematográfica, com mais filmes ocidentais na China e vice versa.

O Alibaba foi bem além disso, porém. “Green Book: O Guia”, vencedor do Oscar de Melhor Filme também recebeu investimento da companhia chinesa. A produção quebrou um paradigma ao se tornar o primeiro longa estrangeiro a tratar da temática LGBT no país e ganhou ares de blockbuster nacionalmente.

A imersão de Jack Ma não foi exclusiva e nem inédita. Em 2012, a DreamWorks fundou uma join venture em Shangai. Após desempenhar pequenas atividades em “Como Treinar Seu Dragão 2” e “Pinguins de Madagascar”, a Oriental DreamWorks, como é conhecida, lançou “Kung Fu Panda 3”, primeiro fruto significativo dessa parceria.

A animação mostra uma China positiva e a batalha do bem contra o mal não chegou nem perto de ser barrada pela censura. Tudo isso, alinhado a presença de atores e atrizes de grande renome, como Jack Black, Angelina Jolie e Dustin Hoffman, fez o longa ser sucesso de crítica e público. Dos 521,2 milhões de dólares arrecadados, 93 milhões foram no país.

Foi nesse cenário que o sexto homem mais rico da China, Wang Jianlin, entrou no jogo. Membro do Partido Comunista e com forte influência política, ele é o fundador e CEO da Dalian Wanda, um dos maiores conglomerados do mundo. Dentro do escopo de atividades da corporação estão empreendimentos imobiliários, indústrias de manufatura, serviços financeiros, saúde, diversas lojas varejistas, hotéis de luxo e até futebol: é dona de 20% do Atlético de Madrid, time da Espanha, e fez pesados investimentos em campeonatos locais.

A estratégia agressiva de diversificação de negócios da companhia deu seu primeiro passo em 2012, quando adquiriu, por 2,6 bilhões de dólares, a AMC, a maior cadeia de cinemas do mundo. Tornou-se dona de 6% de todas as telas comerciais da China e cerca de 13% nos Estados Unidos. Entre alterações no design e funcionamento desenvolvidos pela empresa, estavam a inclusão de poltronas maiores e até funcionários servindo comida e bebida nas salas.

Em junho de 2015, foi a vez da cadeia da rede de cinemas Hoyts entrar para o escopo do conglomerado chinês. No início do ano seguinte, a Legendary Entertainment, responsável por megaproduções como “Interestelar” e a maioria dos filmes dirigidos por Christopher Nolan, as franquias “Jurassic World” e “Godzilla”, e “O Homem de Aço”, foi adquirida por 3,5 bilhões.

Já em 2016, a Wanda comprou, por 1 bilhão de dólares, a Dick Clark Productions, dona dos direitos do Globo de Ouro e programas de sucesso nos Estados Unidos, como “American Music Awards”, “Miss America” e “So You Think You Can Dance”. Um pouco antes, divulgou a assinatura de uma parceria estratégica com a Sony Pictures para investir em filmes que tivessem uma ~pegada~ chinesa.

Apesar dos olhos voltados para o exterior, a Wanda nunca tirou o foco do mercado nacional. Desde “Nocaute”, protagonizado por Jake Gyllenhaal, o primeiro filme internacional que patrocinou, diversos projetos foram desenvolvidos. No entanto, talvez o mais notável seja o Oriental Movie Metropolis, o maior estúdio para a produção multimídia da China e do mundo. O projeto de 8 bilhões de dólares engloba uma área equivalente a 200 campos de futebol e inclui uma ilha artificial, hotéis, um clube temático e até um iate clube.

Na cerimônia de abertura do local, em 2018, Wang Jianlin ignorou Hollywood. Ao avaliar o crescimento do mercado e o potencial de público, ele entendeu que ainda não há filmes domésticos sendo produzidos para atender à demanda do público. Anunciou que o projeto visa promover o cinema chinês e deixou claro o objetivo de ver o país se tornar uma potência nesse setor.

A Hora do Rush

Atualmente, os chineses continuam dando lucros exorbitantes a Hollywood e o jogo está sem contrapartida, com os filmes orientais sendo praticamente desconhecidos nos Estados Unidos. Porém, esse cenário dá indícios de que pode sofrer revoluções a curto prazo. Em fevereiro deste ano, “Terra à Deriva” chegou aos cinemas e marcou uma nova era na produção local.

A ficção científica é o primeiro blockbuster chinês ambientado no espaço. O longa é o primeiro de uma série de filmes desse gênero. O enredo acompanha um grupo fora da órbita terrestre procurando uma estrela, enquanto uma iminente explosão ameaça a vida terrestre. Há pouco tempo, uma produção tão significativa e grandiosa era impensável técnica e financeiramente para a maioria dos cineastas locais. 

“Terra à Deriva” alcançou quase 700 milhões de dólares e se tornou a segunda maior bilheteria da história do país, atrás apenas de “Lobo Guerreiro 2”. Lançado em 2017, o filme que acompanha um soldado chinês combatendo mercenários foi o primeiro não-hollywoodiano a entrar na lista de 100 maiores bilheterias da história. O único americano do elenco, Frank Grillo, ironicamente interpreta o vilão da história.

Recentemente, a Netflix adquiriu os direitos de distribuição de “Terra à Deriva” e possui “Lobo Guerreiro 2” em seu catálogo. Apesar disso, a plataforma ainda não tem permissão para operar na China. Um sinal de que o empenho do país está convencendo o mundo a fazer o caminho inverso e aos poucos o público ocidental deve consumir com mais frequência o cinema chinês. Ainda é cedo para saber qual será o impacto dessas transformações, mas, aos poucos, a China parece progredir com seu plano de dominação mundial.

Breno Damascena
@brenodamascena_

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