Cinema com Rapadura

Colunas   sábado, 23 de fevereiro de 2019

Conta a história quem segura a caneta: por que Bohemian Rhapsody e Green Book são erros graves de representação

Os filmes, indicados ao Oscar, deturpam as histórias de vida de Freddie Mercury e Don Shirley.

Existe uma máxima que diz que a história é contada pelo lado vencedor. Em Hollywood e com relação ao cinema, conta a história quem segura a caneta. A indústria produz vários longas baseados em relatos e personagens reais, mas a retratação fiel da realidade não é a regra em todos eles e, em alguns casos, passa longe do objetivo.

No Oscar 2019, dois filmes indicados ao prêmio máximo da Academia se encaixam nessa descrição. São eles “Bohemian Rhapsody” e “Green Book – O Guia”. Em comum entre os dois está o fato de que ambos foram escritos da perspectiva parcial de pessoas ligadas de um jeito ou de outro ao cerne da história, mas não ao total protagonismo dela. O primeiro teve os remanescentes do Queen original, Brian May e Roger Taylor, como consultores e produtores e executivos, e o segundo foi escrito por Nick Vallelonga, filho do co-protagonista Tony “Lip” Vallelonga. Como Freddie Mercury morreu em 1991 e a família de Donald Shirley só soube que um filme sobre ele estava sendo realizado pelo Instagram do ator Mahershala Ali, o resultado foi que visões bem específicas foram priorizadas na produção desses filmes.

Na verdade, o resultado foi que tanto Mercury quanto Shirley foram sub-representados nesses longas, cada um de uma forma diferente. O caso de “Green Book” talvez seja o mais alarmante por ter ignorado completamente o lado de Donald Shirley. A família dele contou ao Shadow and Act que não foi contatada em nenhum momento pela produção do filme. Na verdade, eles que correram atrás de explicações quando souberam que o longa ia acontecer. O próprio Donald foi procurado diversas vezes por Nick Vallelonga para autorizar um filme sobre a sua vida, segundo conta o sobrinho Edwin Shirley III.

“Eu me lembro muito, muito claramente, há 30 anos, quando meu tio foi procurado por Nick Vallelonga, o filho de Tony Vallelonga, a respeito de um filme sobre a sua vida, e meu tio me contou. Ele recusou terminantemente.”

Edwin contou que, à época, ele mesmo tentou convencer Donald de que a oferta poderia ser uma coisa boa, e que, com ele envolvido, poderia fazer um acordo em troca de controle sobre a produção. Donald Shirley, prevendo o que iria acontecer, foi categórico:

“Não importa o que me digam agora, eu não vou ter qualquer controle sobre como serei representado.”

O filme foi feito e a família de Edwin foi convidada para uma exibição prévia de “Green Book” – uma em que o roteirista Nick Vallelonga não estava presente. O que foi visto em tela, e que fora prometido que seria uma representação respeitosa e honrosa feita com amor, não causou bom impacto em Edwin. Ele e Maurice, o último irmão vivo de Donald, imediatamente começaram a questionar o que foi dito e mostrado sobre o músico e parente. Maurice Shirley chamou o longa de “uma sinfonia de mentiras”, e expôs a falsa retratação da relação de Donald como um pária na família.

“Àquele ponto [1962, quando os eventos do filme supostamente acontecem], ele tinha três irmãos vivos com quem estava sempre em contato. Uma das coisas que o Donald costumava me lembrar nos anos que se seguiram foi que ele literalmente me criou. Não houve um mês que eu não tivesse uma conversa por telefone com Donald.”

A relação entre Donald Shirley e Tony Vallelonga, cerne e coração de “Green Book”, também parece ter sido outra mentira inventada para contar o filme. Segundo Maurice, os dois não passaram de empregador e empregado, e Donald nunca fez amizade com as pessoas com as quais trabalhava. Até mesmo em se falando do contrabaixista e do violoncelista que compunham com ele o Don Shirley Trio, era sempre uma relação profissional. Maurice ri de pensar que um dia seu irmão e Vallelonga foram amigos.

“Ele demitiu Tony [Vallelonga]! Quando você ouve que Tony ficou com ele por 18 meses, eu posso garantir, nenhum motorista durou 18 meses com o meu irmão. Qualquer um que conhecia o temperamento dele e teve qualquer experiência com qualquer um dos seus outros motoristas – o máximo foi um aqui de Milwaukee que durou pelo menos dois meses.”

No filme, Donald Shirley também é retratado como alguém que não se identificava ou se relacionava com a comunidade negra norte-americana. Isso quando, segundo Edwin conta, ele era amigo próximo de muitos músicos negros como Nina Simone, Duke Ellington e Sarah Vaughn. Donald também se tornou amigo de Martin Luther King por meio de seu irmão Edwin Shirley Jr. O músico esteve presente e performou na marcha de Selma, e era ativo na luta pelos direitos civis. Edwin III ficou impressionado com como conseguiram desvirtuar tanto a figura do tio.

“Foi muito doloroso. Aquilo estava só 100% errado. Deus sabe, essa é razão porque ele nunca quis que a vida fosse representada nas telas. Agora entendo, e me sinto péssimo por na verdade ter tentado convencê-lo a embarcar nisso nos anos 80, porque tudo que ele protestou lá atrás virou verdade agora.”

Voltamos então para “Bohemian Rhapsody”, um filme sobre a história do Queen mas, indubitavelmente, muito mais sobre a vida de Freddie Mercury. A narrativa se usou de alguns recursos para ser conduzida com mais facilidade, tais como combinação de personagens em um só e mudando levemente algumas datas. Mas também fez de Mercury o vilão e a vítima de sua própria história, enquanto seus parceiros de banda foram “poupados”. O que se dá a entender é que Mercury foi o único da banda que festejou, se drogou e viveu um estilo de vida irresponsável. Uma banda de rock. Nos anos 70/80.

Assim, quando Freddie retorna a seus amigos para se desculpar por seu comportamento e sua postura, Brian May, Roger Taylor e John Deacon se mostram evoluídos espiritualmente para perdoá-lo e aceitam retornar com a banda para o show histórico do Live Aid. Até mesmo quando o cantor revela a eles que contraiu AIDS, eles o aceitam. Há apenas dois poréns: o Queen nunca se separou e o diagnóstico de AIDS só veio após o Live Aid. Ou seja, tudo claramente deturpado para valorizar a imagem do Queen e macular a de Mercury.

Outro ponto muito controverso de “Bohemian Rhapsody” é em relação à sexualidade de Freddie Mercury. Em certo ponto do longa, ele diz a Mary Austin, namorada de uma vida toda, que talvez fosse bissexual. Ela prontamente responde que ele é gay. E é simples assim. Com uma fala, o filme deixa de reconhecer um relacionamento longo e recíproco que rendeu inclusive a icônica canção Love of My Life, e apaga a bissexualidade notória de Mercury. E isso desrespeita não só a memória do artista por estar sendo mal representado, como também toda a luta dos bissexuais dentro da comunidade LGBTQ contra a invisibilidade.

Até hoje, os responsáveis por “Green Book” não deram explicações conclusivas à família de Donald Shirley sobre como conseguiram autorização para fazer o filme. Mahershala Ali telefonou para Maurice e Edwin III no mesmo dia em que os dois deram uma entrevista à rádio NPR, pedindo sinceras desculpas se havia, de alguma forma, ofendido a família, e ainda disse que não tinha ciência de que havia parentes próximos com quem poderia ter conversado para construir melhor o personagem. À mesma época dessa entrevista, o co-roteirista Brian Currie concedeu outra ao Hollywood Reporter, dizendo que conheceu Tony “Lip” por quase 25 anos, e garantiu que as histórias que ouviu eram todas verdade. Nick Vallelonga também assina embaixo dessa questão.

Ou seja, absolutamente todos envolvidos acreditaram 100% num relato feito por um homem abertamente racista e que admitia ser um “artista contador de lorotas” sobre um músico negro dos anos 60. E falando em lorotas, o diretor e co-roteirista Peter Farrelly se eximiu de qualquer responsabilidade sobre essas questões facilmente, apenas atribuindo a outras pessoas. Ele compartilhou com a Vulture que havia intencionalmente procurado Octavia Spencer para ter a perspectiva de uma mulher negra na produção do filme, e que a atriz o apoiou em todas as suas decisões, do título à infame cena do frango frito.

Ao Newsweek em novembro, Farrelly falou sobre não ter contatado a família de Donald Shirley:

“Nós tínhamos a impressão que não havia muitos familiares, mas no último mês descobrimos que há. Me sinto mal por isso. Queria poder ter feito mais. Para ser sincero, as pessoas verificando isso não os encontraram – elas fizeram besteira.”

Pronto. Ninguém para responsabilizar por aqui.

O que foi feito em “Green Book – O Guia” e “Bohemian Rhapsody” foi, pra dizer o mínimo, vexatório. Desonroso para com a vida e o legado dos verdadeiros protagonistas das histórias: Dois homens, um queer e um bissexual, um negro e um descendente de persas, ambos gênios talentosíssimos que presentearam o público com composições incríveis, que foram relegados a representações superficiais e inverdadeiras cunhadas para que coadjuvantes ficassem melhores na foto, seja como white saviors ou como base moral.

Freddie Mercury e Donald Shirley mereciam mais do que isso. Merecem ser lembrados pela sua obra inestimável, por seus talentos e também por seus defeitos, mas nunca deveriam ser vistos da perspectiva de lentes parciais e enviesadas que não tiveram qualquer noção de compromisso com a realidade. Esses exemplos são um alerta. Um convite para que lembremos que Hollywood tem interesses e que as pessoas que produzem esses filmes também têm interesses. É um objetivo calculado, que só pode ser alcançado por quem segura a caneta. E com isso, resta a quem não tem essa oportunidade protestar contra a borracha da indústria.

Richard Molina
@richiemmolina

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