Cinema com Rapadura

Colunas   sexta-feira, 13 de maio de 2022

[Opinião] É hora de parar de se importar tanto com o universo Marvel

Com 28 filmes e 6 séries em sua cronologia e com muito mais por vir, o MCU é a franquia de maior sucesso da atualidade, sem nenhuma previsão de chegar ao fim. Mas, 14 anos depois de sua criação, será que não estamos levando esse universo muito a sério?

Atenção! Esse texto possui spoilers sobre Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, e, na verdade, sobre o MCU como um todo

Abril de 2014.

Estava sentada no cinema esperando a cena pós-créditos de “Capitão América: O Soldado Invernal”, como uma boa fã da Marvel já havia sido educada a fazer. Tinha acabado de assistir aquele que se manteria como meu filme favorito do MCU pelos próximos anos, e o qual no próprio ano de 2014 eu reassistiria dezenas de vezes (sem exagero). Curiosa para saber o que a cena final nos prometeria para o futuro, lembro da sensação de incredulidade ao reconhecer quem seriam “os gêmeos”. Não porque lia quadrinhos e tinha noção de cada personagem existente nesse enorme cânone, mas porque cresci com “X-Men: Evolution”, e só existia uma combinação de irmãos possível: Pietro e Wanda.

Mas espera um pouco, pensei, eles são… mutantes?! Embora ainda não fizesse parte do mundo do entretenimento, tinha a noção de que a Marvel nos cinemas não poderia brincar com esses personagens, eles eram do outro estúdio — que no mês seguinte lançaria “Dias de um Futuro Esquecido”, outro queridinho meu. Existia uma brecha, aprenderia depois, então Pietro e Wanda seriam chamados de “milagres”, ou “aprimorados”, como explicado em “Era de Ultron”. Não lembro de ter me importado com nada disso na época. Ao vê-los na cena pós-créditos, gritei empolgada. O futuro da Marvel vai ser muito divertido!

Oito anos depois, “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” chega aos cinemas, e o mundo não é mais o mesmo. De forma bem literal, uma pandemia que se estende já por dois anos mudou completamente nossas vidas, e também a forma como consumimos conteúdo. A Marvel encerrou sua Saga do Infinito com a joia da coroa que foi “Vingadores: Ultimato”, e ao desafio de começar uma nova fase, somou-se a necessidade de produzir séries para o novíssimo serviço de streaming da Disney. A narrativa começaria a se complicar mais, e ficaria ainda mais… estranha. A cada novo episódio semanal, uma crítica diferente. “Isso não é Marvel!”, “Isso é Marvel demais!”. A cada capítulo, aquela introdução antes tão icônica, se tornava cada vez menos especial. A cada diretor afirmando que sua obra era a melhor e mais diferente de tudo que já vimos, uma maior incredulidade por parte de quem cansou de não ser mais surpreendido. A culpa é deles? Nossa?

O que aconteceu? Quando a Marvel deixou de ser apenas divertida?

Team Capitão América x Team Homem de Ferro

Lembro a primeira vez que me decepcionei com a Marvel: “Capitão América: Guerra Civil”. Não que o estúdio já não tivesse produzido filmes medianos ou até ruins, mas sempre houve um padrão. Se você não gostou de “Homem de Ferro 3” e “Thor 2”, não tem problema, pois logo viria “Soldado Invernal” e “Guardiões da Galáxia”. A Marvel costumava compensar mediocridade com excelência. Então depois de “Era de Ultron” (ainda bom, porém frustrante) e “Homem-Formiga” (ainda bom, mas um fantasma do que poderia ter sido), seria “Guerra Civil” o responsável por trazer a qualidade “uau!” de volta. E de modo geral, até que foi. É um filme bem aceito pelos fãs e pela crítica, e teria consequências importantes para o futuro do universo Marvel. Mas foi ali que a diversão começou a ser substituída pela preocupação.

À época, oito anos haviam se passado desde o início do MCU, e alguns dos personagens já estavam conosco tempo o suficiente para que suas ações e seus princípios significassem algo para os fãs. É o caso principalmente de Steve Rogers e Tony Stark, os pais deste universo, que agora seriam obrigados a ficar em lados opostos de uma “guerra”, apenas porque este é um famoso título dos quadrinhos, e deveria ser adaptado também aos cinemas (qualquer outro nome funcionaria da mesma forma, porque vários dos elementos essenciais para esse arco ser transposto para os telonas simplesmente não existiam no MCU). Em “Guerra Civil”, um filme que é do Capitão América mas funciona como um “Vingadores 2.5”, o grupo de heróis deve sofrer as consequências do que aconteceu em Sokovia, assinando um tratado que leva o nome do país que foi aniquilado por eles mesmos. Stark, o responsável direto pelo o que aconteceu, defende que assinem. Rogers discorda, pois os heróis se tornariam peões atuando pelos interesses de uma instituição, algo pelo qual ele já havia passado e não estava disposto a fazê-lo novamente.

Um detalhe relevante é que a intenção de criar o Tratado de Sokovia veio depois de um acidente em Lagos, em que Wanda causou uma explosão e matou mais de 20 pessoas. Esse foi o estopim. Não a destruição de um país e a morte de quase 200 pessoas como aconteceu em Sokovia. Mas divago…

De volta à “Discussão Civil”, a situação toda poderia se resolver calmamente, por isso a própria ideia do filme não se sustentaria só nisso. Então decidem colocar um elemento a mais: Bucky Barnes. Alguém que tiraria a razão de Steve Rogers e colocaria Tony Stark como o certo. Lembro bem de ter entendido isso enquanto assistia ao filme pela primeira vez, e pensado “ah, isso não…”.

Os heróis de fato precisavam ser responsabilizados, e era isso que o Tratado de Sokovia deveria ter proposto mais severamente, no lugar de colocá-los como um grupo que só seria usado caso as Nações Unidas os ativassem. Assim, Steve teria entendido e concordado com a ideia com um pouco mais de diálogo — algo que o filme propositalmente retirou da mesa. A história se transforma em uma busca por Bucky, e a discussão moral é sobre ele ser um assassino ou não. A “guerra” não é por princípios, mas por interesses egoístas. Assim, as vidas perdidas em Sokovia são esquecidas pelos heróis… e o plano de Zemo acaba sendo justificado, afinal, em sua vingança ele prova que a perda de sua família não significou nada. Na época, eu o via como culpado por minha decepção com o filme, mas o vilão é o que mais se encaixa na narrativa, por permitir que um conflito tão fraco tenha razão de existir.

Anos depois, ainda me incomoda a falta de importância dada ao Tratado de Sokovia — mesmo com a justificativa do blip, afinal, essa é uma discussão que poderia justamente ser inserida dentro do documento — e “Falcão e o Soldado Invernal” voltou a deixar minha relação com Zemo confusa.

Mas em 2016, isso não passaria de um leve incômodo. Ainda recém-inserida no mundo do entretenimento, cobrindo apenas notícias para o Rapadura sem a necessidade de opinar, eu não precisava justificar meus sentimentos. E além disso, “Guerra Civil” nos presenteou com um novo Homem-Aranha, e um Peter Parker perfeito. “De Volta ao Lar” viria logo mais, me cobrindo com toda uma nova sensação de empolgação, “Thor: Ragnarok” faria eu me importar com um personagem que nunca chamou minha atenção, além de me apresentar o gênio que é Taika Waititi, e “Pantera Negra” seria a revolução que foi.

Esses foram os anos de ouro. Os últimos anos de uma certa paz.

Parte da jornada é o fim… E se eu não gostar do novo começo?

Respondendo a um tweet meu recentemente, alguém perguntou, mais por escárnio do que por real curiosidade, “já parou pra pensar que talvez você só não goste de filmes de heróis?”. A pergunta vem mais de um ano depois de eu ter começado a cobrir o universo Marvel de forma ativa, participando de vídeos semanais, podcasts, e escrevendo textos. Para exercer essa função, tive de colocar minha análise crítica como prioridade, deixando de lado o entretenimento por entretenimento. Uma pergunta como essa no Twitter pareceria absurda em 2019, no ápice do meu amor pela Marvel, mas em 2022 ela me faz hesitar. Será?

Antes de responder isso, vamos entender o que aconteceu nesses três anos.

Ao assistir “Vingadores: Ultimato” pela primeira vez, achei que meu coração ia explodir de felicidade. Não tinha como esse filme não ser adorado por todos os fãs, não havia defeito algum ali! A Marvel realmente conseguiu fechar sua Saga do Infinito de forma brilhante.

Mas ao sair da sala de cinema e entrar nas desgastantes discussões, percebi que as pessoas simplesmente não conseguiam aproveitar o filme e depois seguir a vida. O eterno loop de “Natasha não deveria ter morrido”, sempre tão eficaz em acabar com minha paciência; a ciência por trás do retorno de Steve à vida com Peggy, que nem mesmo os diretores e roteiristas concordaram sobre como funcionava, e a minha incessante teimosia em explicar à todos como linhas do tempo funcionam no MCU; o debate desnecessário sobre “Guerra Infinita” ser melhor que “Ultimato” (são filmes que precisam um do outro, por que estamos discutindo sobre isso?)… Enfim, um caos.

É como se o fato de a Marvel ter sido tão bem-sucedida em criar um universo compartilhado exigisse que ele fosse constantemente colocado à prova. E não pelos críticos da franquia, mas pelos próprios fãs. E o pior é que eu estava sendo sugada para dentro disso, e seria difícil ver inconsistências do MCU com um olhar indulgente. Tudo devia seguir a cronologia apresentada, as regras introduzidas, e os personagens deviam sempre ser fiéis a suas personalidades e princípios.

Eis o maior pesadelo para quem estava com esse estado de espírito: “Loki”. De início uma das promessas mais empolgantes para o fã, a série teria como objetivo apresentar conceitos superimportantes para o agora Multiverso Cinematográfico da Marvel, além de ter um dos personagens mais adorados por todos como protagonista. No entanto, a obra também se mostrou como uma provação para quem estava tentando catalogar regras sobre viagem no tempo, linhas do tempo, variantes, e multiverso. Não só isso, a cada episódio, Loki — talvez o personagem mais consistente em sua pseudovilania e constante redenção — se tornava cada vez mais apenas um fantasma de quem conhecíamos. Foi difícil.

No final das contas, ainda foi possível aproveitar a série, mas todos esses incômodos permaneceram relevantes a cada vez que uma nova discussão sobre o futuro da Marvel surgia. Afinal, o último episódio foi tão incompetente em explicar o multiverso e diferentes realidades, que precisei eu mesma criar uma resposta que fizesse sentido para poder partir para o próximo capítulo da franquia, porque tudo que viesse depois precisaria dos eventos da série. Enquanto escrevo esse texto, produtores e executivos da Marvel continuam explicando — ou tentando explicar — como a morte de Aquele Que Permanece interferiu em todo o caos multiversal. E quando o evento mais importante para o funcionamento de uma Fase inteira não está claro, e o próprio Kevin Feige tem que se pronunciar sobre o assunto a cada novo lançamento, como fica a mente de quem está tão preocupada com uma continuidade perfeita? Em frangalhos.

Esse era meu estado de espírito em julho de 2021, depois de assistir três séries e sabendo que teria que ver mais outras duas — que outros horrores me aguardariam? E nem falemos sobre “Viúva Negra”. Até minha empolgação para as novidades de “Shang-Chi” e “Eternos” definhava. O que estava acontecendo? Eu não gostava mais da Marvel?

O que tinha acontecido com aquela pessoa que gastou tanto tempo fazendo o divertido e absurdo Guia para Vingadores: Guerra Infinita/Ultimato?

A verdade é: eu estava cansada. O MCU nasceu quando eu tinha 13 anos, e agora com 26 ele já faz parte de metade da minha vida. Se eu não sou nem a mesma pessoa que era há um ano, quanto mais 13 anos atrás. Pessoas mudam, sentimentos mudam, gostos mudam. Mas mais do que isso, coisas que eram todo o seu mundo quando você era adolescente, vão sendo cada vez menos importantes quando você cresce. Calma, não estou dizendo que o MCU serve apenas a um público! Mas sim que é impossível manter a mesma visão sobre algo tanto tempo depois. E ignorar isso é um erro.

Como um sopro de alegria, “Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis” veio para me tirar dessa crise e me lembrar do que ainda permanece verdadeiro sobre meu amor pela Marvel. Não perfeição, mas coração — mais sobre isso nesse texto.

Isso foi importante para mim na época, mas é ainda mais significativo hoje em dia. “Já parou pra pensar que talvez você só não goste de filmes de heróis?”. Já. Já parei para pensar como certos filmes zombam da minha inteligência e esperam que eu aceite motivações fracas, as mesmas lutinhas e efeitos visuais cansativos de novo e de novo. Mas também parei para lembrar da minha infância com Homem-Aranha e X-Men, da minha descoberta com o Batman de Nolan, da possibilidade de diferentes heróis se juntarem em um propósito só com o MCU, e concluí que eu gosto disso.

Eu só não devia me importar tanto assim.

O Multiverso da Loucura que é acompanhar uma franquia de 28 filmes e 6 séries (e contando…)

Quando me preparava para a cobertura de “WandaVision”, decidi ler alguns quadrinhos com arcos que poderiam ser relevantes para a série. Encontrei tramas bem interessantes como o clássico “Dinastia M”, e o “Visão” de Tom King, mas também explorei histórias mais antigas, confusas e bizarras, que não teriam espaço em um universo cinematográfico. Ao menos foi o que pensei, mas e se na verdade o MCU estiver caminhando para mais perto de sua essência na mídia dos quadrinhos?

Homenagens a uniformes clássicos estão sempre acontecendo, as histórias flertando cada vez mais com o bizarro, e os retcons surgindo aos montes. Mesmo que não intencional, a trajetória do MCU agora caminha para ser mais similar aos gibis por simplesmente ser uma franquia gigante, com centenas de personagens, e que não possui previsão de chegar ao fim. Consumidores casuais terão cada vez mais dificuldade de consumir esse conteúdo, e por outro lado, os fãs terão basicamente uma enciclopédia inteira só formada pelo que já foi estabelecido no MCU. É como uma série de história em quadrinhos que já está bem longe de seu primeiro volume, e que exige que você não só siga a linha principal, mas acompanhe também os vários derivados.

Assim, uma escolha deve ser feita por mim: ou me esforço para acompanhar tudo como uma aluna que estuda para a prova, ou deixo esse preciosismo de lado e volto a me divertir.

Essa foi a reflexão que “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” trouxe. Dirigido por Sam Raimi, o filme prometia (e cumpriu) ser o primeiro terror da Marvel, trazendo a Feiticeira Escarlate como uma verdadeira bruxa e infelizmente — e novamente — vilã. Essa discussão é bem aprofundada no RapaduraCast da semana, então não vou me estender aqui, mas depois de “WandaVision”, ver Wanda como uma vilã tão exagerada, cega pela obsessão por seus filhos, é frustrante, embora não inteiramente sem sentido. Ela foi, de fato, corrompida pelo Darkhold, mas tal corrupção não é mostrada em tela, e a conclusão é que, enquanto o Stephen Strange de sua realidade sempre busca meios sensatos de resolver problemas (“Sem Volta Para Casa” discorda, mas enfim), Wanda enlouquece e começa a matar todo mundo.

Essa falha não seria tão chamativa, não fosse “WandaVision”. Estamos bem acostumados à Marvel não sabendo o que fazer com personagens femininas, e eles realmente nunca souberam o que fazer com Wanda. Torná-la uma vilã — de verdade desta vez — seria uma conclusão óbvia e visualmente bem interessante, como Sam Raimi provou. Mas a primeira série Marvel Studios fez o público se importar com os traumas de Wanda, entendê-la, aceitá-la, e ao fim, aprender com ela sobre o luto e o amor. E nem adianta trazer a problemática de Westview à tona, quando nem mesmo o próprio Doutor Estranho se importa com isso. Mais do que ficar do lado dela, os fãs a apoiam… mesmo em um caminho de matança. É tarde demais para vê-la de outra forma, e forçar isso na narrativa é chamar o público que se importou com “WandaVision” de idiota.

Foi assim que me senti enquanto assistia “Multiverso na Loucura”. Até que o momento de “libertação” veio e eu entendi que se eu não deixasse esse preciosismo de lado, eu não conseguiria mais aproveitar o universo Marvel. Larguei disso, e embarquei na insanidade que é o terceiro ato deste filme de Sam Raimi.

Está na hora de pararmos de nos importar tanto com esta franquia. E isso não quer dizer deixar de acompanhar, deixar de amar, deixar de vibrar. Mas parar de brigar constantemente sobre o que é certo ou errado, ou não conseguir se divertir por estar tão preocupado com o que tal evento pode significar para um futuro que nem sabemos se chegará. Como alguém que tem de analisar criticamente estas obras, será uma tarefa difícil, mas necessária para que eu possa aproveitar tudo aquilo que ainda está por vir. Afinal, um novo Quarteto Fantástico está a caminho, os novos mutantes (não aqueles) um dia darão o ar de sua graça, meus heróis favoritos voltarão, e outros serão apresentados. Ainda há muito por vir. E que bom!

Talvez, uma outra Louise daqui a 13 anos estará reclamando sobre os novos problemas da terceira Saga do MCU. Espero que ela, assim como eu, entenda a mensagem que o subestimado “Doutor Estranho” (2016) tentou nos passar…

“Não é sobre você”.

Louise Alves
@louisemtm

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