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Colunas   segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Antes de What If…? e Star Wars: Visions – Animatrix e a origem das antologias de animação

Com Marvel e "Star Wars" lançando séries aguardadas como "What If...?" e "Visions", vale relembrar a origem do formato, idealizado pelas visionárias irmãs Wachowski.

Apesar de todos os pesares, 2021 promete entrar para a história como um ano de consolidação de novos modelos de produção e consumo na indústria do entretenimento. Ao pensar nessas tendências, logo vem à cabeça o revival de grandes franquias do cinema – na última semana, por exemplo, “Matrix Resurrections” quebrou a internet com seu primeiro trailer. Para quem cresceu nos anos 2000 (ou mesmo quem gosta de bons filmes, não precisamos ir longe), o retorno de Neo (Keanu Reeves) será um dos eventos do ano.

Outra tendência interessante e praticamente já consolidada é o remake em live-action de clássicos de animação, como “Aladdin“, “A Bela e a Fera“, etc. Mas, curiosamente, o movimento contrário também vem se firmando, com grandes franquias como o os filmes da Marvel e “Star Wars” se aventurando no campo da animação, mas em um formato bem específico, o de antologias. “What If…?” é a série da Marvel que explora possibilidades alternativas para cada decisão do MCU, enquanto “Star Wars: Visions” irá contar novas histórias ambientadas naquela galáxia muito, muito distante.

O que une essas duas tendências é justamente “Matrix“. Apesar da sensação de novidade, o formato de antologias de animação não é nada novo, e foi algo explorado pelas irmãs Lilly e Lana Wachowski em 2003 com “Animatrix“, pouco antes da estreia do segundo capítulo da trilogia em live-action, “Matrix Reloaded“. Por isso, colocamos as cartas (ou melhor, as pílulas azul e vermelha?) na mesa para analisar o impacto de “Animatrix”, mais uma prova de como Lilly e Lana Wachowski estão à frente de seu tempo.

O que foi “Animatrix”

Muito pouco falado, “Animatrix” é uma antologia de animação criada pelas irmãs Wachowski no início da década de 2000. A obra compila nove curtas, cada um explorando um aspecto diferente da Matrix e de como os humanos a vivenciam do lado de dentro e tentam derrubá-la do lado de fora. Apesar de contar com breves participações de Neo e Trinity – com as vozes dos próprios Keanu Reeves e Carrie-Anne Moss -, nenhum dos segmentos é sobre eles.

Todos os curtas expandem o universo da franquia de alguma forma. Um atleta que leva seu corpo ao limite e, com isso, vê brevemente imagens que não parecem fazer parte de seu mundo; crianças que encontram uma casa onde objetos flutuam; um grupo de humanos no mundo real que tenta converter robô para sua causa… Além da própria origem do conflito entre humanos e máquinas. O objetivo é utilizar conceitos estabelecidos nos filmes, por menores que sejam, e expandi-los de forma criativa.

A ideia de uma obra nesse formato surgiu quando as Wachowski visitaram o Japão para promover o primeiro filme da franquia “Matrix”. Lá, elas puderam conhecer muitos dos estúdios responsáveis pelos animes que consumiam quando crianças, e decidiram que uma forma de trabalhar com eles seria criar os curtas que viriam a compor “Animatrix”. O projeto todo foi supervisionado pelas duas, que chegaram até a escrever quatro dos nove longas. Mas a ideia era que cada estúdio utilizasse seu estilo próprio para contar suas histórias, com liberdade total. Entre os animadores estavam Shinichiro Watanabe (“Cowboy Bebop“), Koji Morimoto (“Akira“) e Mahiro Maeda (“Neon Genesis Evangelion“).

À época, o consumo de obras como “Animatrix” era completamente diferente, claro. Estamos falando do início dos anos 2000, quando filmes eram exibidos nos cinemas e séries ficavam na televisão. “Animatrix”, no caso, não era bem nem um, nem outro – e ainda tinha a agravante de ser animação, algo que até hoje enfrenta certa resistência de boa parte do público adulto. Quatro dos curtas foram lançados no site oficial da franquia, outros chegaram à televisão pelo canal Adult Swim (e, no Brasil, brevemente pelo SBT) e alguns foram exibidos nos cinemas antes de sessões dos filmes principais de “Matrix”.

Inovação ou influência?

“Há um pouco de ficção em sua verdade, e um pouco de verdade em sua ficção.”

O que as Wachowski não deviam suspeitar era que, apesar da pouca repercussão, elas haviam acabado de trazer à tona um novo formato de produção para grandes franquias… Quase duas décadas antes da tendência se consolidar. Se à época distribuir os nove curtas de “Animatrix” era um desafio e acabou prejudicando sua visibilidade – além, claro, da ideia retrógrada de que animação não era exatamente um meio que valesse o esforço para se assistir -, hoje existe um ambiente ideal para esse tipo de projeto: o streaming.

É onde entram duas das séries que vêm sendo mais comentadas nas mídias sociais atualmente, “What If…?” e “Star Wars: Visions”. A primeira explora o conceito de multiverso dentro dos filmes da Marvel e permite que histórias com desfechos alternativos sejam contadas sem interferir nos filmes da franquia. Já a segunda não tem uma ferramenta como o multiverso, mas também explora novas histórias na galáxia de “Star Wars” sem interferir no cânone da saga, em contos completamente avulsos.

Apesar de não seguirem exatamente o mesmo molde, “What If…?” e “Visions” são boas formas de se expandir universos já consolidados no imaginário popular atual sem interferir nas linhas principais de ambas as franquias. E, ainda melhor: tudo com uma liberdade criativa que não pode se aplicar a esses produtos principais, justamente por eles precisarem seguir um padrão narrativo que unifique e amarre tudo.

Isso tudo fica claro, inclusive, visualmente, através do estilo de animação empregado. A Marvel nunca havia se aventurado no campo da animação, e usá-lo para uma antologia como “What If…?” é uma forma de colocá-la como uma obra à parte. Apesar de usar um único estilo – baseado nas obras do artista americano J.C. Leyendecker, segundo o chefe do departamento visual Ryan Meinerding -, a proposta é clara no sentido de expandir um mesmo universo com diversas possibilidades de desfecho. O produtor Bryan Andrews revelou que até foi cogitado empregar estilos diferentes, mas a facilidade e a coesão do estilo único pesaram na hora de decidir.

No caso de “Visions”, “Star Wars” já tem séries de animação de amplo sucesso como “The Clone Wars“, “Rebels” e, mais recentemente, “The Bad Batch“. A aposta, agora, é justamente no estilo, com sete estúdios de animação japoneses ficando responsáveis por nove contos independentes, que começam e se encerram em si mesmos, explorando mais a fundo a influência da cultura japonesa na franquia. Se cineastas como Akira Kurosawa sempre foram referências latentes em “Star Wars”, agora veremos ainda mais facetas dessa relação.

Tanto “What If…?”, quanto “Visions” carregam “Animatrix” no DNA. Em sua estrutura, em seu estilo… A principal diferença, no caso, acaba pela dimensão dos estúdios por trás e, claro, pela distribuição. Fosse algo mais recente, talvez a obra das Wachowski gerasse tanta repercussão quanto as outras duas com o alcance que a HBO Max proporciona. Mas esse é o fardo de se ver tão longe no futuro. Para nossa sorte enquanto espectadores e fãs, Marvel e Lucasfilm souberam amparar-se nos ombros dos gigantes corretos.

Além das grandes franquias

Um dos maiores apelos de “Matrix” enquanto franquia é tratar da relação das pessoas com a tecnologia. Os filmes são uma clara alegoria para libertação de amarras sociais, algo confirmado pela própria Lilly Wachowski para ilustrar a transição dela e se sua irmã Lana enquanto mulheres transsexuais. A tecnologia, caso não tenha ficado claro, é a metáfora para as tais amarras, impondo padrões de comportamento e estéticos até a quem simplesmente não se encaixa. Não tem nada a ver com milionários iludidos com pílulas vermelhas ou teorias da conspiração, ok?

O uso da tecnologia como metáfora não é exclusividade de “Matrix”, mas pode-se afirmar tranquilamente que foi potencializado após a conclusão da trilogia em 2003. Basta olhar para o furor que séries como “Black Mirror” causam quando ganham novas temporadas (até meme já virou).

Apesar de ser filmada em live-action, “Black Mirror” também atesta o impacto de “Animatrix” na cultura pop atual não apenas pela abordagem em relação a nossos costumes e relacionamento com o mundo tecnológico, mas também pelo formato de antologia. Outra série influenciada é a aclamada “Love, Death & Robots“, essa sim uma antologia de animação abordando questões até de identidade, como manda o manual das Wachowski.

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“Animatrix” atualmente faz parte do catálogo da HBO Max, e tem também seus segmentos disponíveis no Youtube. “What If…?” vai ao ar às quartas-feiras no Disney Plus, e a coleção de “Star Wars: Visions” será disponibilizada na íntegra em 22 de setembro no mesmo streaming. Já “Black Mirror” e “Love, Death & Robots” podem ser assistidas na Netflix.

Julio Bardini
@juliob09

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