Cinema com Rapadura

Colunas   sexta-feira, 11 de junho de 2021

Para todas as idades: por que adultos têm assistido tanto a desenhos animados?

Antes vistos como "coisa de criança", séries de animação e desenhos animados vêm cada vez mais se firmando entre as preferidas dos adultos.

Em julho de 2020, “Avatar: A Lenda de Aang” entrou no catálogo norte-americano da Netflix. Quase que de imediato, a audiência do desenho no streaming alcançou números vertiginosos, e muita gente que não havia assistido à série quando criança passou a fazê-lo já adulta – o mesmo ocorreu com sua sequência, “A Lenda de Korra“, que chegou ao streaming em agosto. Em 2019, algo idêntico ocorreu quando a Netflix incorporou “Neon Genesis Evangelion” à sua programação.

Quando “Avatar” ou “Evangelion” chegaram ao streaming, muito se falou sobre as obras em si, e qual o apelo que ambas têm para as gerações que hoje são adultas. Ambos são clássicos de seus gêneros, têm qualidade inquestionável e inúmeros fãs, mas quando pensamos em desenhos, não imaginamos adultos na frente da televisão. Esse fenômeno não é restrito a estes dois exemplos, e vários outros desenhos e animações feitos para crianças vêm fazendo sucesso entre adultos, como, por exemplo, “She-ra e as Princesas do Poder“, “Gravity Falls“, “Hora de Aventura” e mais. É possível observar também que há cada vez mais animações sendo feitas para públicos mais velhos.

Para tentar entender esse fenômeno, refletimos sobre o que motiva um adulto a assistir a desenhos animados e animações. Por que adultos vêm assistindo tanto a este formato ultimamente? Quem faz parte desse “público adulto” atualmente? Como a indústria vem se adaptando?

“Bom, vamos começar?”

Desde quando adultos consomem desenhos?

Na verdade, desde que o cinema se consolidou como entretenimento. Os primeiros desenhos animados surgiram como prelúdio às sessões entre as décadas de 1910 e 1920, e não eram de jeito nenhum idealizados para o público infantil. Curtas como “Alice Solves the Puzzle” ou “Feline Follies” foram alguns dos pioneiros, com histórias cheias de referência a sexo e drogas, fazendo uso de linguagens adultas que, atualmente, poderiam facilmente ser enquadradas como apologia a assédio.

Isso ocorria porque não havia regulamentação desse tipo de mídia como havia com filmes em live-action. A situação começou a mudar com a introdução do chamado Código Hays nos EUA, que puxou a onda para o outro lado, proibindo qualquer tipo de menção a drogas, sexo, palavrões e afins em filmes, fosse animação ou não.

Coincidentemente (ou não), foi nessa época que personagens como Mickey, Pernalonga, Popeye e Tom e Jerry começaram a fazer sucesso, e animações queridas até hoje surgiram, como “Fantasia” (1940), da Disney. Foi então, também, que esses personagens passaram a ser usados como propaganda contra o nazifascismo durante a Segunda Guerra Mundial. Ou seja, apesar das restrições, o conteúdo em si continuava voltado para adultos.

Apenas no início dos anos 1950 essa mídia passou a ser direcionada ao público infantil. Leis antitruste nos EUA encareceram a produção de animações, e a popularização dos televisores levaram ao advento de uma instituição importante para a cultura americana: os desenhos de sábado de manhã. A ideia era manter as crianças entretidas com produções de baixo custo. Para o horário nobre, programas como “Os Flintstones” ganharam popularidade por tratarem de temas de família, permitindo que pais e filhos assistissem juntos. Por quase três décadas, portanto, desenhos eram produzidos com crianças em mente.

Até 1981, quando a MTV foi lançada na grade televisiva americana. Voltada para o público jovem e no início da vida adulta, a programação trazia 24h de entretenimento com muita música… e animações. O público alvo da emissora, afinal, crescera assistindo a desenhos no sábado de manhã, lembra? Tudo sem perder o foco na música, segundo o executivo Fred Seibert: “Desenhos eram o que havia de mais próximo no meio visual ao rock’n’roll. Queríamos criar, essencialmente, a ideia de uma capa de álbum em movimento“. O formato, inclusive, começou a aparecer em videoclipes no final dos anos 80, como em Money For Nothing (Dire Straits) e Take On Me (a-ha).

Pouco depois, a Fox também resolveu apostar no formato com “Os Simpsons“, marcada por seu humor ácido e irônico, colocando desenhos de volta ao horário nobre. Esse foi o tom dos desenhos e animações nos anos 90, com clássicos como “Beavis e Butthead“, “Daria“, “South Park” e mais. A tendência do consumo de desenhos por adultos se consolidou, definitivamente, em 2001, quando o Cartoon Network lançou o canal Adult Swim, que deu origem a desenhos como “Space Ghost – Costa a Costa“, “The Boondocks“, “Archer” e, claro, “Rick and Morty“.

E hoje em dia?

Ao olhar os tipos de desenhos e animações que o público adulto consome atualmente, é preciso levar três fatores em consideração: a existência de diversos gêneros dentro do guarda-chuva das animações, as motivações por trás da decisão de se assistir a um desenho e não uma série ou filme, e quais os meios disponíveis para se fazer isso.

Ainda que estejamos tratando de ambos da mesma forma aqui, desenhos animados e animações em CGI não são a mesma coisa. O primeiro consiste na movimentação de imagens de apenas duas dimensões, enquanto o segundo incorpora a noção de profundidade de forma mais clara. É muito frequente associar desenhos ao público infantil, mas obras como “Rick and Morty” e “Evangelion” fogem completamente a esse padrão. Nas animações, séries como “The Clone Wars” dão o tom.

Mas apesar de existirem desenhos e animações voltadas para adultos, como vimos, mesmo assim boa parte dos Millennials e da Geração Z ainda consomem conteúdo voltado primeiramente para crianças. Isso não é demérito algum – todos são adultos e têm autonomia para assistir ao que quiserem -, e mostra muito sobre o impacto que o mundo e a sociedade atuais exercem sobre essas gerações.

Primeiro, boa parte deles assistia a desenhos quando criança. O formato é familiar e reconfortante, e tem um apelo tão grande quanto o de uma comédia para se consumir depois de um longo dia de trabalho ou de estudos. Inclusive, um fenômeno interessante é o conceito de “comédias da hora do almoço” (que é exatamente o que o nome diz e também vem sendo aplicado ao jantar), algo que seja de fácil absorção e não exija uma dedicação tão grande do espectador. Certos animes e desenhos infantis, por exemplo, são perfeitos para isso, por tocarem em temas complexos, mas a partir de abordagens simples e diretas.

O que nos leva ao terceiro ponto, que é a facilidade em encontrar desenhos e animações de qualidade. Se antigamente dependíamos exclusivamente da grade horária dos canais de televisão, hoje podemos assistir ao que quisermos, quando, quisermos, onde quisermos. Tudo graças ao streaming. Na Netflix, o catálogo de desenhos e animes é amplo e conta até com produções originais, como “Castlevania“. E já existem até serviços especializados no formato, como o Crunchyroll. Com tanta facilidade para se encontrar um bom desenho ou uma boa animação, por que não?

Representatividade importa?

Poder enxergar-se em um personagem ou tirar uma lição para si a partir de uma história fictícia são fatores que vêm levando não só adultos a partir do final da Geração X, mas principalmente Millennials e a Geração Z, a recorrer aos desenhos animados. Ainda que existam séries em live-action voltadas para minorias e públicos anteriormente negligenciados pela indústria, alguns desenhos animados fornecem elementos importantes.

Ao pensar em representatividade, ainda há quem torça o nariz e ache que o tema trata de narrativas “lacradoras” ou queira “doutrinar” alguém. Mas públicos como o LGBTQIA+ são enormemente subrepresentados nas obras do mainstream, e mesmo pessoas mais intolerantes podem ser pegas consumindo conteúdo muito mais aberto do que costumam pensar.

“Você vai arrasar esse bicho?”

“Primeiro, eu sempre arraso, querida. Segundo, sim.”

Rick and Morty“, por exemplo, trata mais de uma vez da sexualidade do protagonista Rick Sanchez, como no episódio Auto Erotic Assimilation, em que ele tenta reatar com sua ex-namorada Unity, uma alienígena sem forma que se manifesta através da assimilação por consciência coletiva. No caso dessa série (que, aliás, quase nunca é referida por seus fãs como “desenho” ou “animação”, o que diz muito sobre o que eles pensam do formato), muitos fãs enxergam Rick como um modelo do politicamente incorreto e idolatram sua postura hedonista e niilista, mas fazem vista grossa para sua pansexualidade e para o quão liberal ele realmente é em seus relacionamentos.

Mas não há necessidade de se imaginar alienígenas transdimensionais ou coisa do tipo para visualizar relacionamentos fora de nossa bolha. Há obras que fazem isso de forma muito mais simples, como o sucesso “She-ra e as Princesas do Poder“, da Netflix. Baseando-se no desenho original dos anos 1980, a criadora Noelle Stevenson concebeu a princesa Adora, antes mais conhecida por ser “a irmã do He-Man”, como uma heroína independente e que faz tudo e até mais do que heróis homens fazem, contemplando um público de meninas que agora podem ter um modelo positivo que as mostre que elas podem ser o que quiserem e amar quem quiserem.

Justamente por ancorar-se em tais premissas, “She-ra” conquistou adultos carentes de representação, principalmente por meio da complexa dinâmica entre Adora e a antagonista Catra e por apresentar personagens livres de qualquer molde ou rótulo. Nem mesmo entre a malévola Horda há quem se preocupe com questões tão pequenas quanto fiscalizar quem é o quê ou quem gosta de quem. Para as crianças que assistem, é uma ideia do mundo que elas poderão criar; para adultos, é quase uma libertação.

A tal da maturidade

Infelizmente, até hoje muita gente enxerga desenhos como um conteúdo “simples”, algo de fácil digestão para pessoas que ainda estão crescendo ou que simplesmente não teriam um senso crítico refinado. Normalmente, quem pensa dessa forma é que não tem um tino muito bom para entender o que acontece ao redor. Mídia e linguagem estão em evolução constante, e deveria ser óbvio o tipo de subtexto presente no que se assiste.

Quando “Evangelion” chegou à Netflix, por exemplo, muitos dos que foram assistir esperavam um bom e velho anime de robôs gigantes batendo em monstros, não um drama sobre crescimento e saúde mental. É fácil desconsiderar um simpático monge adolescente voando em um bisão felpudo, mas “Avatar” apresenta temas complexos, como autoritarismo, segregação e mais. Por outro lado, o espectador médio de “Rick and Morty” costuma subestimar quem não gosta do desenho por supostamente “não entendê-lo”, mas fez escândalo em 2017 atrás do molho que Rick mencionou em certo episódio. Maturidade.

“Eu quero aquele molho de nuggets de ‘Mulan’!”

Em outros casos, a opção por contar uma história em animação é simplesmente a escolha por um meio que permita ao artista se expressar. “Star Wars“, por exemplo, é uma franquia gigante nos cinemas, mas muitas de suas melhores histórias estão em animações como “The Clone Wars” e “Star Wars Rebels“. Tentar diminuí-las dizendo que são produtos para crianças é negligenciar o impacto da franquia no mundo atual, já que o próprio George Lucas nunca escondeu que os próprios filmes também eram.

A pergunta, no caso, é outra: é possível contar com o elenco de “Star Wars” para uma série de sete temporadas? Aliás, é possível reproduzir os efeitos especiais de ponta de forma sustentável por tanto tempo? Claro que não. Animação e desenho são simplesmente meios que permitem empreitadas que, em outro formato, seriam inviáveis, e permitem a construção de histórias e circunstâncias que a tecnologia atual ainda não permite ao live-action. A série “The Mandalorian” até utiliza efeitos dignos de cinema, mas esse é o tipo de inovação que só está disponível a estúdios com muito dinheiro.

“Eu não tenho tais fraquezas.”

Pensando nisso, é possível ir ainda mais fundo. Quantas vezes vimos filmes de animação concorrendo ao Oscar de Melhor Filme? Apenas três: “A Bela e a Fera” em 1992, “Up – Altas Aventuras” em 2010 e “Toy Story 3” em 2011. Expoentes do formato, como “Divertidamente” e “Homem-Aranha no Aranhaverso“, conquistaram os Oscars na categoria de Melhor Animação, mas o que exatamente os desqualifica a ponto de não render um indicação a Melhor Filme senão uma noção pré-concebida de que “animações são para crianças”?

Há inúmeros motivos para se assistir a animações e desenhos, seja um desenho infantil ao voltar no trabalho ou uma animação adulta no final de semana. Mas não assistir por achar coisa de criança, bem… É todo um gênero artístico que se está desprezando. Não há como ser mais limitado. Melhor encerrar com uma sábia frase de C.S. Lewis: “quando me tornei homem, deixei de lado coisas infantis, incluindo o medo da infantilidade e o desejo de ser adulto demais“.

E para quem, mesmo assim, é muito maduro e continua achando que desenho é coisa de criança, bom…

“Parabéns!”

Julio Bardini
@juliob09

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