Cinema com Rapadura

Colunas   quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Entre o terror e o drama: o equilibrista Mike Flanagan

Com 20 anos de carreira, o cineasta americano de 42 anos coleciona trabalhos impressionantes que comprovam sua habilidade em construir dramas aterrorizantes e emocionalmente carregados.

Após um período infértil para o cinema de horror com reboots e fórmulas que não se preocupavam em ir muito além dos famosos jump scares, a última década tem visto surgir realizadores ambiciosos, jovens e criativos, capazes de injetar conteúdo às suas narrativas, estimulando o público a pensar e interpretar, além de – ocasionalmente – promover o debate após a sessão. Exemplos são diretores como Ari Aster (“Midsommar”) com seus pesadelos angustiantes, Jordan Peele (“Corra!”) e seu comentário social afiado e Robert Eggers (“O Farol”) com seus misteriosos contos folclóricos. Mas poucos desses novos autores do terror foram tão prolíficos ou consistentes (e surpreendentemente tristes) nos anos 2010 como Mike Flanagan.

Nascido em Salem, Massachusetts, Flanagan morou por pouco tempo na cidade, mas tempo o suficiente para despertar o interesse tanto sobre julgamentos das bruxas de Salem quanto em tópicos como histórias de fantasmas e ficção de terror. Aluno da Escola Secundária Archbishop Spalding, Flanagan acabou indo parar em Maryland, onde estudou na Towson University. Ele se formou com bacharelado em Mídia Eletrônica e Filme e especialização em Teatro. Orientado mais pelo drama no início da carreira com os filmes “Makebelieve” (2000) e “Still Life” (2001), foi com “Ghosts of Hamilton Street” (2003) que o cineasta começou a flertar com o mistério. A seguir, vamos fazer uma rápida viagem pela carreira de Flanagan, partindo de 2011, momento em que o terror apareceu em sua vida.

Absentia (2011)

Financiado por meio de uma vaquinha virtual e filmado no próprio apartamento em que Flanagan morava na época, o longa conta a história de Tricia (Courtney Bell), uma mulher grávida que, sete anos depois do desaparecimento de seu marido Daniel, decide finalmente declará-lo morto para que ela possa tentar seguir em frente com sua vida. Mas, ao fazer isso, ela se vê assombrada por sua imagem, e sua irmã Callie (Katie Parker) sente que seu desaparecimento está relacionado a uma misteriosa passagem subterrânea local.

O primeiro filme de terror de Mike Flanagan é um thriller psicológico eficiente, daqueles de virar a cabeça. Aqui, o diretor já dava indícios de sua habilidade com o gênero, apresentando uma porção de momentos surpreendentes e o melhor de tudo, sustos inteligentes. Além disso, “Absentia” é impulsionado pelas boas atuações de Katie Parker e Courtney Bell. Nascia ali aquele que viria a ser um dos expoentes do terror.

O Espelho (2013)

Com base no curta-metragem “Oculus: Capítulo 3 – O Homem com o Plano”, lançado em 2006 e produzido pelo próprio Flanagan, o filme narra a história de Tim e Kaylie, jovens que cresceram em meio a acontecimentos assustadores, aparentemente provocados por um espelho assombrado, que acabou levando à morte de seus pais. Como adulto, Tim (Brenton Thwaites) deixa um hospital psiquiátrico não acreditando mais que suas mortes foram sobrenaturais – mas Kaylie (Karen Gillan) apenas se tornou mais convencida e também localizou o espelho.

A título de comparação, é um filme tão assustador quanto “Invocação do Mal”, que ganha força nas atuações de Katee Sackhoff e Rory Cochrane. Escrito e dirigido por Mike Flanagan, “O Espelho” apresenta uma narrativa complexa e inteligente, mas não a ponto de confundir o espectador. Uma novidade que começava a surgir era a aptidão de Flanagan em combinar o terror com o drama, trabalhando com personagens traumatizados por eventos sobrenaturais. Um longa enxuto, sem firulas e com o dom para ir sempre mais afundo.

Hush: A Morte Ouve (2016)

Provavelmente um dos primeiros hits do realizador, o longa nos apresenta à escritora surda Maddie Young (Kate Siegel), que vive em uma remota casa na floresta onde está tentando terminar seu último romance. Mas ela se vê perseguida por um assassino mascarado com uma besta, enfrentando a grande desvantagem de não poder ouvi-lo chegando.

Conhecido do grande público após sua inclusão no catálogo da Netflix, “Hush: A Morte Ouve” é um filme rápido, eficiente e angustiante. À primeira vista, a história de uma pessoa isolada em uma casa afastada da civilização e que começa a ser ‘incomodada’ por um tipo assassino não parece muito original, a não ser pelo fato da deficiência auditiva da protagonista que coloca aí um grande obstáculo, aparentemente intransponível. Somada a isso, a direção de Flanagan torna o confronto numa dinâmica caça-caçador bem empolgante – com sua câmera sempre ao lado da personagem principal – e repleto de armadilhas espertas. O terror fica mais de lado neste thriller contagioso e imprevisível.

O Sono da Morte (2016)

Mark e Jessie Hobson (Thomas Jane e Kate Bosworth) estão de luto pela morte acidental de seu filho e decidem criar o jovem Cody (Jacob Tremblay). Quando os sonhos do menino começam a ganhar vida, os Hobsons ficam encantados – até que seus terríveis pesadelos também começam a se materializar.

Ainda que tenha toques de horror, Flanagan mergulha numa fantasia assombrosa e melancólica nesse filhote de Guillermo del Toro. Menos cerebral e apostando nos devaneios de um garotinho firmemente interpretado por Jacob Tremblay – depois que este despontou em “O Quarto de Jack” -, este não é o trabalho mais consistente do diretor, embora traga algumas passagens memoráveis, atuações tocantes e muitas ideias. Em “O Sono da Morte” ele continua sua trajetória como cineasta que não investe apenas em impactar a audiência com solavancos, mas sim em contar histórias emocionantes.

Ouija: Origem do Mal (2016)

2016 foi um ano bem produtivo para Flanagan. Completando sua trinca de filmes, o diretor encara um desafio nada tranquilo: produzir uma sequência de um longa que não fez lá muito sucesso. “Ouija: Origem do Mal” se passa em 1967, em Los Angeles, onde uma mãe viúva e suas filhas acrescentam uma nova façanha para reforçar seu negócio de golpes em sessões espíritas, convidando uma presença maligna para sua casa, sem perceber o quão perigoso é.

O cineasta consegue uma proeza não muito comum em Hollywood, que é fazer com que uma sequência seja melhor que seu original. Com um horror de casa assombrada e um garoto possuído, Flanagan desfila referências, prestando homenagem a filmes como “O Exorcista”. Aqui, ele mostra que, mesmo com armadilhas mais convencionais, pode inventar sustos eficazes e perfeitamente sincronizados sem esquecer de toda a carga dramática que envolvem os personagens. Este terror marca ainda o início da parceria com Henry Thomas, o garotinho de “E.T: O Extraterrestre”.

Jogo Perigoso (2017)

Ainda que tivesse flertado com o estilo Stephen King em obras como “O Espelho” e “Hush”, Flanagan nunca tinha adaptado um livro do escritor, até “Jogo Perigoso”, baseado num dos romances menos conhecidos do mestre do terror. Na tentativa de apimentar sua vida sexual, o casal Gerald (Bruce Greenwood) e Jessie (Carla Gugino) viajam para uma cabana na floresta durante um fim de semana. Como parte de um jogo sexual, Gerald algema Jessie na cama – e então sofre um ataque cardíaco fatal, deixando sua esposa presa e lutando pela sobrevivência.

Inteiramente filmado dentro de um quarto, a produção poderia cair no marasmo, mas graças a direção inventiva de Mike Flanagan, o longa ganha camadas e se destaca como um ótimo thriller psicológico. Enquanto tenta encontrar maneiras de escapar daquele pesadelo, a protagonista se vê provocada por visões do marido e memórias de uma infância abusiva. Flanagan oferece momentos nauseantes e viscerais de violência e alguns sustos verdadeiramente aterrorizantes, pois o diretor não faz um drama sem um terror e vice-versa. Emocionalmente carregado, “Jogo Perigoso” é um dos grandes feitos de Flanagan. Ele transforma um livro menos conhecido de King numa grande adaptação.

A Maldição da Residência Hill (2018)

Chegamos então a aquele que é o maior sucesso do cineasta e onde ele trabalha suas habilidades com sintonia fina. “A Maldição da Residência Hill” chegou tímida, mas em pouco tempo o boca a boca das redes sociais transformaram essa antologia numa das queridinhas da Netflix, ao lado de séries como “Stranger Things”. No verão de 1992, a família Crain – os pais Hugh (Henry Thomas) e Olivia (Carla Gugino) e seus filhos Steven, Shirley, Theo, Luke e Nell – vivenciam eventos sobrenaturais crescentes na assustadora mansão Hill, culminando em diferentes traumas. Como adultos, as crianças Crain – que lidaram com aquele verão de uma maneira diferente – são atraídas de volta para casa por uma perda repentina.

Adaptando o romance clássico de Shirley Jackson, Flanagan lançou uma série cativante e assustadora, que só foi possível devido aos anos dedicados ao aperfeiçoamento de sua arte do terror e de sua capacidade de contar histórias familiares emocionantes e com várias nuances. São 10 episódios onde o equilíbrio entre o terror e o drama mantém o espectador em um tipo de suspense agoniante. As atuações são brilhantes e a estrutura da narrativa – que vai e volta em flashbacks inteligentes e agregadores -, é fluida neste robusto drama familiar sobre medo, amor, tristeza e frustrações. E caso tenha dúvidas sobre o virtuosismo de Flanagan, preste bem atenção ao episódio 6: uma pequena aula nessa verdadeira obra-prima de terror.

Doutor Sono (2019)

Até aqui, Flanagan tinha no currículo uma ótima sequência de um original sem graça, uma adaptação bem-sucedida de um livro pouco conhecido de Stephen King e uma minissérie de êxito extraordinário. O que faltava então? A direção da sequência de “O Iluminado”, um clássico do cinema dirigido por Stanley Kubrick com base na obra do mestre do terror. Depois de suas experiências no Overlook Hotel quando criança, o adulto Dan Torrance (Ewan McGregor) encontrou uma maneira de manter os fantasmas afastados, mas enfrenta o mesmo vício em álcool que atormentou seu pai anos atrás. Quando a jovem Abra (Kyliegh Curran), que tem a habilidade ‘Brilhante’ em um grau incrivelmente poderoso, contata Dan psiquicamente, ele tenta protegê-la da nefasta Rose The Hat (Rebecca Ferguson) e sua gangue de imortais.

Abençoado por King, Mike Flanagan centraliza a direção, o roteiro e a montagem, e com tamanho domínio das ações conduz com facilidade uma jornada melancólica com toques de terror, que minimiza o suspense e abraça o sobrenatural, assemelhando-se em muitos aspectos à série “A Maldição da Residência Hill“, sua obra de maior sucesso. Embora consiga imprimir sua marca com louvor ao longo da sessão, e use as diversas referências para encorpar a narrativa, Flanagan encontra espaço para tecer gratas homenagens quando é hora de retornar ao Overlook (vide, por exemplo, o modo como filma Dan empunhando o clássico machado). Contando com o trio McGregor, Ferguson e Curran afiado e envolvente, “Doutor Sono” – apesar do início cambaleante – desperta interesse do público, não se prende ao seu antecessor, equilibra-se entre o clássico e o novo graças a um realizador criativo e dá mostras de que o universo em questão tem muito mais a dizer.

A Maldição da Mansão Bly (2020)

De volta à Netflix e ao estilo antológico, o criador Mike Flanagan, baseado no livro “A Volta do Parafuso”, do escritor Henry James, traz a história da au pair americana Dani Clayton (Victoria Pedretti), que viaja até Londres para trabalhar na mansão Bly, cuidando das crianças órfãs Flora (Amelie Bea Smith) e Miles (Benjamin Evan Ainsworth). Mas há acontecimentos assustadores com todos ligados a Bly – especialmente em relação à morte da ex-governanta Sra. Jessel (Tahirah Sharif) e seu amante desaparecido Peter Quint (Oliver Jackson-Cohen).

Em mais uma prova de suas habilidades em equilibrar o drama e o terror, Flanagan retorna aos contos de fantasmas, mas não como em “A Maldição da Residência Hill”, quando os fantasmas surgiam de fora para dentro. Aqui, os fantasmas crescem no interior de cada um, embalados por traumas e histórias de amor. Entregando o medo, mas priorizando um drama mais pesado, “A Maldição da Mansão Bly” tem sim algumas derrapadas ao optar por resoluções simples. Mesmo assim, não deixa de ser aflitiva e envolvente ao buscar fugir do convencional para impactar (vide o final que vai contrariar expectativas). Uma produção esteticamente impecável, com atuações persuasivas, calmamente desenvolvida e que deixará o público inquieto, ansiando por mais.

O que vem depois?

Ao longo de sua curta, mas prolífica carreira, Mike Flanagan tem evidenciado que não se preocupa apenas com sustos. Ele gosta de injetar conteúdo dramático – por meio de traumas e paixões -, para ampliar o terror e sua obra mostra que é possível fugir do convencional e permanecer eficaz. Espelhando-se em diretores renomados, Flanagan alia criatividade, ousadia e coerência para explorar os medos de seus personagens e provocar o espectador. Se o trabalho dele nos últimos dez anos é alguma indicação do que está por vir,  então devemos preparar nosso cérebro e nosso coração, pois o novo mestre do terror veio para ficar.

Renato Caliman
@renato_caliman

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