Cinema com Rapadura

Colunas   quinta-feira, 08 de outubro de 2020

[Artigo] Violência, terror e catarse no cinema de Bacurau

A catarse pela violência une filmes como "Bacurau" e "Era Uma Vez Em... Hollywood" e exerce uma função social ao permitir que os espectadores experimentem na segurança do cinema a tensão e o alívio sombrio da vingança.

“Bacurau, oeste de Pernambuco, daqui a alguns anos”. Assim começa a brasileiríssima obra de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. “Bacurau” é um canto de defesa ao norte do Brasil representado pelos habitantes da pequena fictícia cidade nordestina. Misteriosos invasores estão por trás de um plano para isolar Bacurau do resto do mundo. Com isso, o objetivo dos forasteiros é então transformar o vilarejo em uma praça de guerra, caçando cada morador à queima-roupa.

Um dos aspectos impecáveis de “Bacurau” é a construção mítica por trás da cidade, preparando o terreno para um conto de resistência contra forças externas dominadoras. Como qualquer boa obra de fantasia ou ficção científica, o significado por trás da história permite variadas discussões. Porém, interpretações à parte, há algo marcante e universal em seu desfecho: o desejo de vingança.

Quando um filme constrói a identificação do público por personagens oprimidos, o esperado “troco” contra os opressores chega de forma catártica. É o momento em que os espectadores trancam os dentes e fecham os punhos ao ver os heróis virando o jogo. Tal situação é muito comum no cinema, entretanto, às vezes ela vem com um certo “sal” a mais. Especialmente em filmes violentos ou de terror, o público se cansa de ver tanto sofrimento até o ponto de desejar o mesmo aos antagonistas. Olho por olho, dente por dente. A moral rompida pelos vilões passa a inexistir no campo dos mocinhos. É quando justificamos a violência pela violência.

É claro que torcemos quando Harry Potter vence Voldemort ou quando Thanos é derrotado pelos Vingadores. Porém, há “teclas” no alcance emocional do público que só são tocadas quando há extrema violência. Dessa forma, filmes como “Bacurau”, que se permitem serem mais agressivos visualmente, são pratos perfeitos para quem busca experiências catárticas.

Curiosamente, “Bacurau” compartilhou público nos cinemas com “Era Uma Vez Em… Hollywood“, de Quentin Tarantino, que é famoso por criar situações semelhantes como em “Django Livre” e “Os Oito Odiados“. Em “Bastardos Inglórios“, Quentin nos oferece o gostinho de vingança contra Adolf Hitler, desvirtuando completamente os fatos históricos. No entanto, especialmente em “Era Uma Vez Em… Hollywood“, Tarantino vai além. Neste filme ele homenageia um momento da história do cinema misturando personagens fictícios com reais. Ele também direciona o desfecho da narrativa para o marcante e traumático assassinato da atriz Sharon Tate (interpretada por Margot Robbie) por seguidores de Charles Manson, justamente no aniversário de 50 anos do crime. Porém, não só ele muda os fatos, como nos entrega uma fantasia de vingança. Assim, presenteia o público com a destruição dos criminosos antes que eles completassem seu objetivo.

“Bacurau” tenta fazer o mesmo. Os diretores pacientemente constroem a união dos habitantes da cidade como a maior arma de resiliência. No entanto, o que eles deixam como surpresa para o clímax é que o vilarejo não é tão indefeso quanto parece. Afinal, “Bacurau é um pássaro brabo”. O primeiro inesperado ato de resistência chega com a explosão de uma cabeça. É o momento de virada que inicia a sequência climática e dita o tom da violência a seguir.

Neste ponto do filme, o público está do lado dos moradores sedentos por sangue. Entretanto, para espectadores acostumados com a maneira Tarantinesca de entregar vingança, Kleber e Juliano são um pouco mais comedidos. Eles inclusive permitem que alguns dos vilões sejam mortos pelos próprios comparsas. Assim, impedem que a vingança catártica de Bacurau aconteça plenamente. A montagem também deixa muita coisa implícita – a nossa imaginação recria o que a câmera não mostra. Ainda assim, o impacto do terror para quem não está acostumado com o gênero ainda é muito forte.

É interessante notar que o tipo de catarse pelo terror de “Bacurau” é algo difícil de construir mesmo nos filmes de horror. Há obras criadas com um semelhante propósito de crítica social, como a franquia “The Purge – Uma Noite de Crime” ou “O Albergue“. Porém, não mexem com o coração da mesma forma que o estômago do espectador. A violência explícita também não é ingrediente necessário, como na esplêndida cena da piscina de “Deixa Ela Entrar“.

Por outro lado, ela é aspecto imprescindível no clímax de filmes como “O Labirinto do Fauno“, de Guillermo Del Toro, e o francês “Vingança“. Aproveitando a deixa deste último, vale mencionar que o Novo Extremismo Francês, um dos recentes movimentos do horror, não carrega exatamente essa qualidade. Apesar de apresentar violência gráfica com tons de comentários sociais (o famoso torture porn), a construção do envolvimento emocional do espectador para então libertá-lo pela catarse não é foco.

Também não é preciso carregar o terror como estigma para então apresentar brilhantes momentos de catarse pela violência. Por exemplo, um dos grandes momentos do cinema brasileiro mexeu com sentimentos semelhantes – a cena de “Tropa de Elite 2” em que Capitão Nascimento (Wagner Moura) espanca o então Secretário de Segurança (Adriano Garib). A obra de José Padilha não se enquadra como terror apesar de ter alguns temas perturbadores. Porém, esta sangrenta cena não esconde a brutalidade dos golpes (quase vinte entre socos, chutes e empurrões) e acompanha o alívio catártico de quem está do lado do mocinho. Algo parecido também acontece em “Dogville“, de Lars Von Trier. Em um inesperado momento de vingança depois de quase três horas de tortura psicológica da protagonista interpretada por Nicole Kidman. Novamente, este não é filme de horror, mas em busca de justiça sentimos prazer na reviravolta.

Seria injusto definir “Bacurau” como obra de horror, pois não se trata de um filme com elementos de um só gênero. Há ficção científica, drama social e uma forte fotografia árida, como um faroeste brasileiro. O poder da catarse pelo terror também não é a sua melhor qualidade. Acima disso, há a metáfora de um país dividido e assim exposto à exploração. Bacurau é Brasil e nossa cultura resiste. Da mesma forma que os habitantes do filme defendem sua cidade.

William Sousa
@williamsousa

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