Cinema com Rapadura

Colunas   sexta-feira, 19 de junho de 2020

Como elementos cinematográficos tornaram A Máfia dos Tigres um fenômeno

Série "documental" da Netflix pegou emprestado conceitos da sétima arte.

“A Máfia dos Tigres”, série pseudo-documental lançada pela Netflix em abril, se tornou um fenômeno pop. A produção, disponível em sete episódios no streaming, apresenta a história de Joe Exotic, o excêntrico e controverso dono de um zoológico para grandes felinos nos Estados Unidos. Por meio da atração, somos informados de como Joe, uma figura indiscutivelmente polêmica, passou de sua confortável posição de “protetor dos animais” à indesejável condição de condenado da justiça – graças ao envolvimento na tentativa de assassinato de Carole Baskin, uma empresária rival.

Posto isso, “A Máfia dos Tigres” é narrada a partir de depoimentos colhidos dos principais envolvidos com o empreendimento de Joe Exotic. Dessa forma, a série conta com os relatos de funcionários que trabalharam no zoológico – enquanto este ainda estivera sob o comando de Joe -, bem como de outras pessoas envolvidas em seu círculo íntimo, o que inclui namorados – Exotic é assumidamente gay -, um produtor de TV, um coordenador político – Joe candidatou-se a governador do estado de Oklahoma e também a presidente da república -, sócios etc. Além do mais, a própria Carole Baskin, também proprietária de um zoológico para grandes felinos, contribuiu com o documentário ao conceder diversas declarações a respeito de suas intermináveis brigas na justiça com seu desafeto e das constantes ameaças à sua vida feitas por este inimigo declarado.

No terceiro episódio de “A Máfia dos Tigres”, o público é apresentado a um mistério instigante: o que teria acontecido ao marido de Carole Baskin? A questão surge porque é revelado que, a certa altura dos anos 1990, o esposo de Baskin desaparecera repentinamente. Entretanto, algumas evidências fizeram com que a polícia conduzisse as investigações do sumiço praticamente como um caso de assassinato – embora não houvesse corpo -, o que automaticamente colocara a então “viúva” da vítima sob suspeita.

Dessa forma, ao gerar, no expectador, desconfiança em relação ao caráter de Carole Baskin – até então apresentada com certa aura de heroísmo -, a narrativa de “A Máfia dos Tigres” acerta ao subverter expectativas. Isso porque, a dubiedade acrescentada à persona de Carole torna sua jornada de fato imprevisível. Tal elemento, por si só, é fator suficientemente capaz de despertar na audiência um significativo interesse quanto ao desenrolar dos fatos que culminarão na conclusão do arco desenvolvido.

O episódio de Carole Baskin, na verdade, apesar de periférico à trama central, funciona como uma espécie de MacGuffin que impulsiona a narrativa principal. Isso porque, é a partir desse acontecimento que se dá o grande plot twist da história: a revelação da real natureza de Joe Exotic, o verdadeiro protagonista de “A Máfia dos Tigres”. Nesse sentido, as tresloucadas tentativas de culpar Carole por assassinato terminam por evidenciar traços intrigantes da própria e esquizofrênica personalidade de Joe, mascarados pelas extravagâncias de um comportamento que, de tão espalhafatoso, mantinha sua obscura essência em estado latente e camuflada sob um verniz carismático. Como num típico filme noir, Carole é a femme fatale que “seduz” o reprovável herói a um infame destino.

Em suma, “A Máfia dos Tigres” é uma obra cuja narrativa tem seu desenvolvimento amplamente calcado na estruturada basilar do gênero policial – não sendo exatamente um whodunnit -, no qual estão presentes elementos como crime, investigação e mistério. Todavia, conforme a trama vai avançando, podemos perceber influências também do thriller psicológico e, até mesmo, e sobretudo no “ato final”, do tradicional thriller jurídico. Assim, considerando todos os elementos cinematográficos utilizados em toda a sua concepção, fica impossível negar que “A Máfia dos Tigres” deve muito de seu grande êxito a conceitos tomados emprestados diretamente da sétima arte.

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Com o enorme sucesso de público de “A Máfia dos Tigres”, a Netflix decidiu por produzir um especial sobre a série – uma espécie de oitavo episódio, em que alguns dos participantes retornam para conceder entrevistas, nas quais descrevem a experiência de fazer parte dessa produção de enorme e inesperada repercussão. Além disso, uma série ficcional de TV, tendo Nicolas Cage no papel de Joe Exotic, foi anunciada recentemente. Por fim, fica a recomendação para a leitura da crítica de “A Máfia dos Tigres”.

Fernando Gomes
@rapadura

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