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Colunas   sexta-feira, 07 de fevereiro de 2020

[COLUNA] A crítica político-social de Parasita e o histórico de Bong Joon-Ho com o tema

Como o diretor sul-coreano trata a temática da desigualdade social em sua filmografia.

Vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 2019, indicado na categoria Melhor Filme do Oscar 2020, aclamado pelo público e crítica especializada, e considerado um dos melhores filmes da última década. Somente com essas qualificações, “Parasita” já poderia ser considerado um fenômeno, no entanto, o longa do diretor sul-coreano Bong Joon-Ho vai além do mero rótulo de filme estrangeiro de sucesso.

Ao misturar gêneros cinematográficos e abordar a relação de classes, a obra se destaca com uma forte crítica política à desigualdade social. Essa consciência política é uma característica constante na filmografia do diretor, em obras como “O Hospedeiro” (2006), “Expresso do Amanhã” (2013) e “Okja” (2017). Nessa coluna, abordaremos alguns desses aspectos mais presentes em “Parasita” e nos seus outros filmes mais famosos.

***Cuidado! O texto abaixo pode conter spoilers dos filmes!***

A presença de protagonistas de classes inferiores

Em todos os seus filmes, Joon-Ho sempre escolhe como protagonista(s) um indivíduo ou uma família pertencente a classes menos abastadas. Em “O Hospedeiro”, Kang-du (Song Kang-ho) vive com sua família na beira de um rio, tirando sustento com as vendas de uma pequena barraca de comida; já em “Expresso do Amanhã”, Curtis (Chris Evans) é um representante da população miserável que mora nos últimos vagões do Snowpiercer; por sua vez, em “Okja”, a jovem Mija (Seo-Hyun Ahn) mora com seu avô no interior da Coreia do Sul e são responsáveis por criar a porca geneticamente modificada que dá nome ao filme. Do mesmo modo, em “Parasita”, a família Kim mora na periferia de Seul em uma casa semi-subterrânea, dobrando caixas de pizza para sobreviver.

Mais do que escolher protagonistas pobres, Joon-Ho faz questão de destacar esse fato, escrevendo um roteiro que destaque organicamente a qualidade de vida daquele indivíduo e de como isso ajudou a moldar as suas escolhas que serão mostradas no longa. Além disso, todas suas obras possuem em comum o fato de que a origem menos favorecida do personagem colabora de forma direta para movimentar a trama, usualmente entrando em conflito com os representantes das classes superiores ou mais poderosas (tópico este que será abordado mais adiante).

“O Hospedeiro”

O Curtis de “Expresso do Amanhã” fica cansado das horríveis condições as quais os membros dos últimos vagões são obrigados a suportar, e dessa indignação acaba surgindo como um líder improvável de uma revolta contra o status quo daquela sociedade singular. A família de “O Hospedeiro” é abandonada pelo governo de seu país, sofre ataque de armas químicas e se vê obrigada sair em busca do familiar desaparecido, enfrentando o temido monstro no processo. Em “Parasita”, por sua vez, após diversos fracassos e desilusões, a família Kim busca uma vida digna e uma mudança de classe social, encontrando no fingimento e na infiltração junto a família Park o único meio de alcançar esse desejo.

A consciência de classe (ou a falta dela) dos personagens mais pobres

Ao lidar majoritariamente com personagens de classes inferiores, a filmografia de Joon-Ho aborda de maneiras diversas, porém sempre interessantes, o conceito de consciência de classe. Em um conceito técnico, “consciência de classe” é um termo bastante utilizado nas ciências sociais e na teoria política, em especial no marxismo, para designar as crenças e atitudes de uma pessoa a respeito de sua classe social ou condição econômica, inclusive quanto aos interesses e à estrutura de sua classe social.

Nas obras de Joon-Ho, é possível notar que seus personagens apenas possuem essa consciência quando o ambiente ou a situação ao redor deles escancara de forma bastante explícita essa realidade, o que fica claro em filmes como “Expresso do Amanhã” e “O Hospedeiro”. No primeiro, há uma clara divisão territorial entre as classes, no qual os mais pobres ficam relegados aos últimos vagões, passando fome e dormindo amontoados, além de estarem impossibilitados de sequer pisar e visualizar como é a vida nos vagões mais à frente. Já no segundo, a população da região mais pobre que está sofrendo o ataque do monstro se vê isolada pelo governo, sob o argumento de que a criatura seria portadora de um vírus mortal.

“O Expresso do Amanhã”

Em ambos os casos, os personagens conseguem visualizar de maneira bem clara a sua inferioridade, bem como conseguem enxergar a necessidade de se unirem para tentar modificar a realidade em que vivem. No caso de “Expresso do Amanhã”, apenas essa união possibilita a revolta, enquanto em “O Hospedeiro”, possibilita a criação e efetivação de um plano para matar o monstro.

Já em “Parasita”, Joon-Ho deixa essa segregação um pouco menos evidente e, consequentemente, acentua a desunião entre os indivíduos mais pobres, com exceção para os Kim, que são capazes de se manter unidos, com cada um buscando uma forma para que todos escapem da situação em que se encontram. Apesar de demonstrar sutilmente por meio de escadas e níveis da cidade, quem são as pessoas “inferiores” e as pessoas “superiores”, o diretor também permite que aquelas – representados pela família Kim – consigam acessar a casa destes – da família Park -, além de conseguirem fingir pertencimento e passarem, inclusive, a conviver entre si.

Essa possibilidade acaba gerando a ilusão nos protagonistas de que pertencem àquela realidade, e a única forma de sentirem dignos desse sucesso disso é tratando os demais como inferiores – mesmo que eles próprios não gostassem de ser tratados dessa forma quando estavam do outro lado da relação. Essa dificuldade de enxergar a própria posição social – ausência de “consciência de classe” – fica escancarada na cena de um dos principais plot twists do filme. Quando a matriarca da família Kim descobre que o marido da antiga governanta estava vivendo no porão, passa a tratá-la como inferior e indigna de pena, situação esta que se inverte a partir do momento em que a antiga governanta percebe se tratar de uma família de trapaceiros. Nenhuma das duas é capaz de se unir e perceber que pertencem a mesma classe social, com os mesmos problemas financeiros.

A questão da desigualdade social e uma necessária reflexão sociológica no âmbito do capitalismo no séc. XXI

Em uma entrevista, Joon-Ho afirmou que “Estamos vivendo uma época em que o capitalismo é a ordem reinante e não temos alternativa. Isso no mundo inteiroNa sociedade capitalista de hoje, existem castas que são invisíveis aos olhos. Nós tratamos as hierarquias de classe como uma relíquia do passado, mas a realidade é que ainda existem e não podem ser ultrapassadas“. Basta analisar alguns dados de fácil acesso, para constatar a veracidade da declaração do diretor: um relatório da Oxfam de 2018 evidenciou que as 26 pessoas mais ricas do mundo detêm uma riqueza equivalente à mais de 50% do restante da população.

E o diretor incorpora esse pensamento crítico em seus filmes, seja de maneira subjetiva ou de maneira explícita, em especial – e de formas contrastantes – em “Parasita” e “Expresso do Amanhã”. Com base nos dados acima, é possível concluir que o sistema capitalista atual permite que as famílias mais ricas somente possam viver dessa forma em razão da exploração e do empobrecimento da maior parte da população.

“Okja”

Essa metáfora fica clara em “Expresso do Amanhã”, com sua divisão clara de classes por vagões, com os mais pobres sustentando o estilo de vida dos mais ricos, chegando a passar fome e praticar o canibalismo por absoluta necessidade. Em “Parasita”, o diretor aborda essa dualidade de forma muito mais sutil, contudo, continua evidente que a família Park apenas possui a vida que tem em razão da exploração de famílias como os Kim.

Não faltam críticas de Joon-Ho a outros males da sociedade capitalista moderna, como em “O Hospedeiro”, no qual ele brinca com uma ocorrência real, de despejo de lixo tóxico por autoridades americanas em um rio da Coreia do Sul. Claro, o diretor extrapola essa visão em forma de sátira, ao colocar como consequência a criação de um monstro nos moldes de Godzilla, porém, a crítica política ao nacionalismo dos EUA está lá. A intervenção americana no território coreano, justificada pela suposta transmissão de um vírus pelo monstro, e o ataque inconsequente com armas químicas, acentuam ainda mais o posicionamento político do roteiro.

Até mesmo a indústria da carne e seu consumo desenfreado já foram alvos do sul-coreano, com “Okja”. No filme, o diretor se utiliza de personagens caricatos para criticar as grandes empresas e indústrias, que se maquiam de boas aparências e fazem uso de discursos aparentemente progressistas e sustentáveis para atrair o público, mas que, no fim, buscam apenas o lucro desenfreado sem pensar nas consequências.

“Parasita”

Contudo, é com “Parasita” que Joon-Ho parece ter alcançando um ponto de equilíbrio entre o entretenimento e o conteúdo, unindo diversas comentários presentes em seus filmes anteriores de maneira ainda mais sutil. Tudo isso culmina na escolha do título do longa, o qual pode causar estranhamento à primeira vista. A princípio, pode-se interpretar que a família Kim é uma espécie de parasita dos Park, contudo, ao se considerar a costumeira crítica capitalista do diretor, os mais ricos é que são os verdadeiros parasitas da sociedade.

Nas palavras do próprio Bong Joon-Ho:

“Há pessoas que esperam viver com outras de uma forma coexistente, mas isso não funciona, então elas são empurradas para uma relação parasitária. É um título irônico”.

“Parasita” é assim, uma abordagem completamente original e criativa do abismo entre as classes, com uma surpreendente dose de violência. Porém, o diretor sempre deixa claro, mesmo que nas entrelinhas, que não são os personagens que são violentos. Violento é o sistema no qual eles vivem. Ou seja, a própria lógica capitalista a que todos nós estamos obrigatoriamente submetidos, faz de todos parasitas.

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“Parasita” concorre em 6 categorias no Oscar 2020, que acontece neste domingo, 9 de fevereiro.

Giovanni Mosena
@giovannimosena

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