Cinema com Rapadura

Colunas   quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Whodunnit, da literatura às telonas: o poder do “quem matou?” no cinema

Listamos sete filmes que exploram com maestria o mistério mais intrigante da ficção.

Há tempos, algumas das mais populares obras da ficção têm se ocupado em propor uma das perguntas mais enigmáticas de todas: “quem matou?”. A frase, por sua vez, embora curta, é suficientemente instigante para despertar um interesse especial quanto à resolução do mistério que ela evoca. Tanto assim, que, desde peças de teatro até às manifestações culturais mais massificadas, a questão continua sendo abordada em larga escala. Paradoxalmente, muito dessa curiosidade pode advir do fato de a humanidade tratar a realidade da morte como um verdadeiro tabu, ainda mais quando esta é intencionalmente provocada.

Na literatura, o autor americano Edgar Allan Poe, com o conto “Os Assassinatos na Rua Morgue” (1841) – que traz o detetive francês C. Auguste Dupin investigando a morte de duas mulheres numa rua de Paris -, praticamente deu início à literatura policial como a conhecemos hoje. Mais tarde, em 1887, Sir Arthur Conan Doyle, inspirado na obra de Poe, criaria seu mais icônico personagem, o detetive inglês Sherlock Holmes, que, por meio de sua admirável inteligência dedutiva, e através de investigações as mais diversas possíveis em Londres e por toda a Inglaterra vitoriana, tornar-se-ia um ícone cultural e trataria de mostrar ao seu fiel parceiro Watson, bem como aos leitores, o quão elementar para o sucesso de um romance policial é um bom e intrigante mistério.

No entanto, em que pese a importância de Doyle, Holmes e Watson para o gênero, foi mesmo com a escritora inglesa Agatha Christie que, no decorrer do século XX, as histórias policiais alcançariam o auge na escala de popularidade. A Dama do Crime, alcunha pela qual a autora britânica ficou conhecida, tornou-se a mais prolífica criadora desse tipo de história, imortalizando seu nome no imaginário popular. Christie, entre outros méritos, criou as figuras do detetive belga Hercule Poirot e da investigadora Miss Marple, além de ter desenvolvido obras aclamadas como “O Caso dos Dez Negrinhos” (rebatizado no Brasil de “E Não Sobrou Nenhum”), que serviu de inspiração para tantos outros autores ao longo dos anos. O êxito comercial dessas narrativas, logicamente, acarretou na adaptação dessas tramas para outras mídias.

Agatha Christie

A TV, por sua vez, é um dos veículos de massa mais propensos à exploração de casos policiais. Um exemplo disso é a proliferação de programas dessa natureza, que superabundam na grade das emissoras abertas, e que, muitas vezes, exploram a morte com um sensacionalismo que ultrapassa qualquer limite do bom senso, praticamente beirando à morbidez. De forma mais comedida, alguns canais fechados, por sua vez, por meio de documentários, dramatizações, etc., dedicam-se exclusivamente à abordagem, 24 horas por dia, dos mais diversos tipos de casos envolvendo homicídios. Curiosamente, alguns números recentes apontam para um aumento considerável da recepção positiva dada a esse tipo de conteúdo. E, curiosamente, as mulheres respondem pela parcela mais significativa dessa audiência.

Nesse sentido, há muitos anos, diversas séries e, principalmente, telenovelas – atrações geralmente direcionadas ao público feminino -, também têm lançado mão desse expediente – quem nunca ouviu a famosa pergunta “quem matou Odete Roitman?”, imortalizada pela telenovela “Vale Tudo” (1988), escrita por Gilberto Braga e exibida pela Rede Globo, em que o assassinato da personagem em questão tornou a referida frase algo extremamente emblemático. Esse recurso, porém, por ser considerado um meio eficaz para alavancar audiências em baixa, tem sido utilizado em grande escala, o que, certamente, tem contribuído para sua banalização e descaracterização. Em 1995, no entanto, o “quem matou?”, ao ser utilizado como mote principal numa novela, foi responsável por uma das criações mais ousadas da teledramaturgia brasileira, a elogiada telenovela “A Próxima Vítima” (1995) e seu “Assassino do Horóscopo Chinês”, escrita por Sílvio de Abreu e também exibida pela Rede Globo, reconhecida como um clássico do segmento e, entretanto, no que diz respeito ao gênero policial, praticamente um exemplar único na telinha.

Entre Facas e Segredos (2019)

No cinema, esse recurso, chamado de whodunnit (ou Who Done It), consiste basicamente no assassinato de, no mínimo, um dos personagens da trama, de modo que tenha início uma investigação a fim de revelar a identidade do responsável pelo crime. Posto isso, ao longo das décadas, muitos bons filmes com essas características foram produzidos: “O Caso de Hilda Lake” (1933), “O Vingador Invisível” (1945), “Noite Tenebrosa” (1946), “Sherlock de Saias” (1963), “E Não Sobrou Nenhum” (1965), “O Fim de Sheila” (1973), “Assassinato por Morte” (1976), “A Maldição do Espelho” (1980), “Assassinato Num Dia de Sol” (1982) e “Assassinatos na Rádio WBN” (1994). Até mesmo filmes não declaradamente whodunnit apresentam em sua estrutura elementos desse subgênero policial, como, por exemplo, o marcante “Os Suspeitos” (1995) e até o terror “Jogos Mortais” (2004), entre outros.

É com toda essa bagagem na mente, que o diretor Rian Johnson (“Star Wars: Os Últimos Jedi”), por meio de um roteiro totalmente original, criou o seu “Entre Facas e Segredos”. E, para entrarmos no clima dessa grande produção, listamos abaixo alguns dos melhores longas whodunnit produzidos pela sétima arte.

Assassinato no Expresso do Oriente (1974)

Em meados da década de 1970, o diretor Sidney Lumet (“12 Homens e Uma Sentença”) adaptou para as telonas uma das obras mais aclamadas de Agatha Christie: “Assassinato do Expresso do Oriente”, publicada em 1934. Na trama, o detetive Hercule Poirot está a bordo do famoso Expresso do Oriente, quando ocorre um violento assassinato. A vítima é um dos passageiros, que, como não poderia deixar de ser, tinha muitos inimigos. Para piorar, uma nevasca terrível impede o trem de prosseguir viagem, e Poirot terá, então, que esclarecer o crime antes que o autor ataque novamente, ou o trem volte a funcionar e, consequentemente, o culpado consiga desembarcar no destino desejado, saindo impune. Quando todos os demais passageiros são interrogados, segredos terríveis que conectam cada um deles ao morto serão revelados. A solução do mistério, enfim, traz aquela que, talvez, seja a revelação mais surpreendente entre todas as escritas pela Dama do Crime.

Com grande êxito, Lumet consegue trazer à narrativa de “Assassinato no Expresso do Oriente” uma das reinterpretações mais fantásticas que a literatura já pôde desfrutar na sétima arte. Para isso, também contribui um elenco recheado de estrelas, que inclui nomes como Ingrid Bergman, ganhadora do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante pelo papel de Greta Ohlsson, Lauren Bacall, Sean Connery, Anthony Perkins, Jacqueline Bisset, Vanessa Redgrave e Albert Finney, este último indicado ao Oscar de Melhor Ator pela interpretação como Poirot. O longa também recebeu indicações à estatueta dourada nas categorias de Roteiro Adaptado, Fotografia, Figurino e Trilha Sonora.

Morte Sobre o Nilo (1978)

Logo depois que “O Assassinato do Expresso do Oriente” fora sucesso de público e crítica em 1974, o interesse por novas adaptações da obra de Agatha Christie prosseguiu ao longo da década. Dessa forma, “Morte Sobre o Nilo” chegou às telonas no final dos anos 1970, dessa vez com Peter Ustinov como Hercule Poirot, personagem que o ator interpretaria ainda outras seis vezes. Trazendo nomes como Bette Davis, Mia Farrow, Angela Lansbury – que, curiosamente, viveria Miss Marple em “A Maldição do Espelho” (1980) – e Maggie Smith, o longa, dirigido por John Guillermin (“Inferno na Torre”), acabou não colhendo os mesmos louros do filme anterior, mas, em compensação, proporcionou uma interessante sinergia entre seu elenco e uma história simples e bastante divertida. A produção, que ganhou o Oscar de Melhor Figurino, ganhará uma nova versão nos cinemas em breve.

Na trama, Jacqueline (Mia Farrow) fica inconforma ao ser abandonada pelo namorado, que a trocou por uma herdeira riquíssima, Linnet (Lois Chiles). Ela, então, os segue em uma viagem num navio luxuoso pelo Rio Nilo, a fim de estragar a lua-de-mel dos pombinhos. A bordo do mesmo navio está Hercule Poirot (Ustinov), o famoso detetive – que, como sempre, está no lugar certo e na hora certa -, viajando com seu amigo, o Coronel Race (David Niven). Além deles, viajam uma milionária ranzinza (Bette Davis), com sua dama de companhia (Maggie Smith), um grosseirão (George Kennedy), um jovem com profundo desprezo pelos ricos (Jon Finch), e uma escritora de romances baratos (Angela Lansbury). A primeira a morrer é Linnet, seguida de outros. De maneira interessante, o roteiro apresenta as cenas conforme os testemunhos colhidos por Poirot. A trilha sonora é de Nino Rota (“O Poderoso Chefão”).

Clue (1985)

Certamente, misturar suspense e comédia na mesma narrativa não é tarefa das mais fáceis, mas Jonathan Lynn (“Meu Primo Vinny”) tirou de letra. Com “Clue” (também conhecido no Brasil como “Os 7 Suspeitos”), o diretor adaptou para o cinema, com grande habilidade, o famoso jogo de tabuleiro Detetive, transformando uma história de assassinato num dos filmes mais divertidos, engraçados e inventivos da década de 1980, e que, inclusive, contou com roteiro assinado por John Landis, o diretor de “Um Lobisomem Americano em Londres” (1981). “Os 7 Suspeitos” tornou-se um clássico tão marcante que um remake está a caminho.

Em 1954, seis estranhos são convidados a uma festa numa mansão isolada na Nova Inglaterra e recebem pseudônimos para protegerem suas verdadeiras identidades: Sr. Green (Michael McKean), Coronel Mostarda (Martin Mull), Sra. Peacock (Eileen Brennan), Professor Plum (Christopher Lloyd), Srta. Scarlet (Lesley Ann Warren) e Sra. White (Madeline Kahn). Uma vez lá, eles são atendidos pelo mordomo Wadsworth (Tim Curry), que lhes apresenta a casa. Durante o jantar, o sétimo convidado, Sr. Pessoa (Lee Ving), chega. Após o jantar, Wadsworth revela aos convidados que o Sr. Pessoa é quem os está ameaçando de revelar seus segredos mais sombrios. Logo, para que não seja punido por esse crime, o Sr. Pessoa dá armas para os convidados, e os convence de matar Wadsworth, pois ele é o único além dos outros que sabe das chantagens, e poderia entregá-los à polícia. Para preservar esses segredos, o Sr. Pessoa apaga a luz e sugere que matem o mordomo neste momento. No entanto, quando a luz é acesa, o assassinado é o próprio Sr. Pessoa. À medida que os convidados tentam encontrar o assassino pela mansão, mais mortes ocorrem, cada qual com uma arma diferente e em um cômodo diferente. No final, nada menos que três desfechos alternativos são apresentados.

Assassinato em Gosford Park (2001)

Em 2001, Robert Altman (“O Jogador”) dirigiu aquele que, sem dúvidas, é um dos melhores filmes da década passada. Na trama, ambientada em 1932, Sir William McCordle (Michael Gambon) e a sua mulher, Lady Sylvia (Kristin Scott Thomas), convidam um grupo de familiares e amigos para passarem um fim de semana numa suntuosa casa de campo em Gosford Park, na Inglaterra. Eis que uma série de acontecimentos envolvendo o encontro de classes, gerações e histórias pessoais, culmina num assassinato em plena propriedade, e os convidados e funcionários viram todos suspeitos. Entre os primeiros, estão uma condessa, um herói da Primeira Guerra Mundial e um produtor cinematográfico americano.

“Assassinato em Gosford Park”, que, merecidamente, venceu o Oscar de Melhor Roteiro Original, traz um elenco gigantesco, que ainda inclui nomes como Maggie Smith, Jeremy Northam, Alan Bates, Richard E. Grant, Helen Mirren, Emily Watson, Clive Owen, Tom Hollander e Charles Dance.

Identidade (2003)

James Mangold, graças a filmes como “Logan” (2017) e “Ford vs Ferrari” (2019), apenas recentemente viu seu nome ganhar maior projeção em Hollywood. Mas, na verdade, o talentoso diretor já havia dado sinais de seu virtuosismo num passado não muito distante, com obras como o drama “Garota, Interrompida” (1999) e o faroeste “Os Indomáveis” (2007). Com “Identidade” (2003), no entanto, o cineasta aventurou-se na seara do suspense, e o resultado foi um filme que, embora pequeno em tempo de projeção, apresenta uma história interessantíssima, e que, infelizmente, não é muito lembrada nos dias de hoje.

De início, a trama é a mais básica possível: num motel de beira de estrada no meio do deserto de Nevada, dez pessoas que nunca se viram antes são obrigadas a pernoitarem em virtude de uma tempestade que os deixa ilhados no local. É quando, então, uma série de mortes bizarras começa a acontecer, colocando um hóspede contra o outro. Em paralelo, o filme mostra um caloroso debate entre um juiz, dois promotores, um advogado de defesa e um psiquiatra, que discutem a possibilidade de cancelar a execução de um doente mental acusado de cometer vários crimes, execução essa que está às vésperas de ser realizada. Quando a história começa a estabelecer uma relação coerente com essas duas narrativas aparentemente desconexas, desenrola-se um dos mistérios mais enigmáticos já vistos nas telonas. Isso porque, se, por um lado, a premissa é simples, por outro, não se pode dizer o mesmo da resolução, uma das mais complexas e surpreendentes da história do cinema – e, ao mesmo tempo, uma das mais inventivas desde sempre, sendo capaz, inclusive, de dar um verdadeiro nó na cabeça de alguns espectadores.

No elenco de “Identidade” estão nomes como John Cusack, Amanda Peet, Ray Liotta, John Hawkes, Alfred Molina e Rebecca De Mornay. E, embora não oficialmente creditada, a influência de Agatha Christie no desenvolvimento do roteiro é escancarada, sobretudo no que diz respeito à obra “O Caso dos Dez Negrinhos”, publicada em 1939, e que é referenciada quase nominalmente por um dos personagens do filme. Mangold, de quebra, ainda utiliza-se de elementos hitchcockianos – a ambientação num motel, lembrando o clássico “Psicose”, não é à toa – para construir uma atmosfera tensa e verdadeiramente assustadora. Fechando com chave de ouro, “Identidade” ainda apresenta uma ótima trilha sonora assinada por Alan Silvestri (“De Volta Para o Futuro” e “Vingadores”).

A Casa Torta (2017)

Dirigido por Giles Paquet-Brenner, “A Casa Torta” é a adaptação do livro homônimo de Agatha Christie. Na trama, a família Leonides – cujo patriarca é o imigrante grego, rico e com 80 anos, Aristide (Gino Picciano) – mora numa mansão na Inglaterra. Depois que Aristide é assassinado, todas as suspeitas recaem sobre sua esposa, que é 50 anos mais jovem. As circunstâncias suspeitas em torno da morte do idoso são investigadas pelo detetive particular Charles Hayward (Max Irons), que deve encontrar o assassino antes de Scotland Yard intervir e expor segredos obscuros de família.

No elenco de “A Casa Torta” estão nomes como Christina Hendricks, Gillian Anderson e Glenn Close.

Assassinato no Expresso do Oriente (2017)

Valendo-se da mesma premissa do original de 1974, “Assassinato no Expresso do Oriente” (2017), do diretor Kenneth Branagh (“Thor”), é um remake igualmente estrelado, embora não tão marcante quanto seu predecessor. Ainda assim, é cinema de alta qualidade, que trouxe de volta ao grande público, considerando o sucesso de bilheteria, o interesse por histórias de mistério e suspense ao estilo Agatha Christie.

A história se passa em 1934, dentro de um luxuoso trem de passageiros. A tranquila viagem, no entanto, é interrompida por conta de um assassinato. Hercule Poirot (vivido pelo próprio Branagh), um conceituado e famoso detetive criminal está na composição. Ele, então, dá início a uma minuciosa investigação para tentar descobrir o responsável pelo crime.

No elenco ainda estão nomes de peso como Michelle Pfeiffer, Penélope Cruz, Judi Dench, Daisy Ridley, Willem Dafoe e Johnny Depp.

A nova versão já mencionada de “Morte no Nilo” servirá como sequência desta história, e seguirá o Poirot de Branagh em uma nova aventura. O filme já teve elenco confirmado e tem estreia prevista para outubro de 2020.

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O mais recente whodunnit, “Entre Facas e Segredos”, está conquistando renome entre os críticos e sucesso de público. O novo filme de Rian Johnson foi indicado ao Globo de Ouro de Melhor Filme de Comédia ou Musical, e teve Daniel Craig e Ana de Armas com indicações em atuação. A obra já está em cartaz nos cinemas brasileiros. Leia nossa crítica e assista ao trailer.

Fernando Gomes
@rapadura

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