Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 02 de dezembro de 2019

Entre Facas e Segredos (2019): mistério exemplar

Extremamente criativo e alicerçado por um excelente elenco, o filme se apoia nos clássicos da grande escritora Agatha Christie para fornecer uma imperdível mistura entre humor e suspense.

A escritora Agatha Christie produziu obras inesquecíveis ao longo de sua notável carreira. Responsável pela criação de clássicos intrigantes, a autora era especialista na construção de mirabolantes mistérios, de narrativas permeadas por personagens de difícil decifração e conduzidas por um carismático investigador. Do marcante “Assassinato no Expresso do Oriente“,  protagonizado por seu incomparável Poirot, ao igualmente excelente “E Não Sobrou Nenhum”, suas habilidades lhe renderam o merecido título de “Rainha do Crime”, imortalizando-a como uma inegável influência para a sétima arte. Dessa forma, não foram poucos os que se aventuraram no desenvolvimento de adaptações e histórias inspiradas no estilo da grande mestre. Poucas delas conquistaram o mesmo charme e originalidade de “Entre Facas e Segredos”, delicioso exemplar do subgênero whodunnit (quem matou?).

Ao completar oitenta e cinco anos, o novelista criminal Harlan Thrombey (interpretado por um adorável Christopher Plummer, de “Todo Dinheiro do Mundo“) resolve reunir sua família para uma grande festa em sua mansão. Em meio a falsas cortesias e conversas banais, a celebração corre tranquilamente, reservando leves e prazerosos momentos. Bem, pelo menos é o que se segue até a manhã do dia seguinte, quando o otimismo da noite anterior é destruído pela descoberta do corpo do poderoso patriarca. Diante desse tenebroso acontecimento, a polícia se vê obrigada a trabalhar com o prestigiado detetive Benoit Blanc (papel do excelente Daniel Craig, o atual 007), restando ao último responder as incógnitas por trás da peculiar morte. Saída diretamente de uma boa partida do jogo “Detetive”, a trama do diretor Rian Johnson (“Star Wars XIII: Os Últimos Jedi“) pode até não ser inédita, mas encontra no seu desenrolar uma encantadora identidade.

Extremamente direto na apresentação de suas personagens, o cineasta utiliza com muita eficiência as caricaturas por trás de alguns membros do elenco. Para tal, ele baseia seu primeiro ato nos interrogatórios exigidos pelos policiais, explorando a personalidade de cada um dos familiares e fornecendo diferentes pontos de vista acerca do desenrolar do aniversário. Sendo assim, transparece com muita clareza as segundas intenções que movimentam os parentes e são capazes de embaralhar a mente do espectador com uma breve introdução de cada um deles. Além disso, a direção amplifica as dúvidas com uma ótima exploração visual do vasto casarão, desdobrando com a câmera corredores e passagens escondidas que expandem as possibilidades por trás do crime. Vale destacar também que esse aspecto ainda se beneficia da dinâmica montagem de Bob Ducsay, que alterna entre o presente e os flashbacks de forma bastante agradável.

Evitando esgotar esse artíficio, o cineasta não tarda em desviar o foco para o desenvolvimento da dupla principal, constituída pelo sagaz Benoit Blanc e pela ótima Marta Cabrera (Ana de Armas). Enfermeira, amiga e confidente pessoal de Harlan, a protagonista – cujas origens latinas também se encontram no papel – acaba por se inserir em uma complexa situação, sendo ao mesmo tempo uma das principais suspeitas e a única em quem o detetive pode verdadeiramente se apoiar. Insegura e vista pela nobre família como uma mera servente, ela contrasta com o determinado e hilário investigador para formar uma parceria improvável, moldada por incríveis atuações. Uma vez estabelecidas as lideranças, entram em cena as surpreendentes reviravoltas, encadeadas de modo a proporcionar um ótimo ritmo narrativo. Em meio a essas qualidades, o diretor e roteirista ainda merece ser creditado pela cômica inserção de um importante subtexto encontrado nos choques entre os conservadores parentes – cujas conquistas vêm exclusivamente da fortuna do personagem de Christopher Plummer – e a criada estrangeira. Daí, surgem importantes questionamentos sobre caráter e lealdade.

Não é só Rian Johnson ou a dupla central que merecem reconhecimento, visto que seria uma enorme injustiça ignorar os demais integrantes do excepcional elenco. Por ser muito numeroso, era inevitável que os Thrombeys dividissem o tempo de tela. Entretanto, a característica é completamente compensada pela devastadora química entre eles. Por conta disso, é impossível não se deixar seduzir por cenas em que lendas vivas como Jamie Lee Curtis (“Halloween”) e Tony Colette (“Hereditário”) interagem com novos grandes atores como Katherine Langford (“13 Reasons Why”) e Jaeden Martell (“It- Capítulo 2”). Assim, o conjunto contribui para uma magnética sequência de discussão familiar, indo muito além dos traços caricatos de suas personas. Como se não bastasse, são também dignas de elogios as performances individuais de Michael Shannon (“A Forma da Água”), ator que trabalha Walt Thrombey como um homem incapaz de se desvencilhar da sombra do falecido pai; e de Chris Evans que impressiona por mostrar que o neto Ransom Drysdale o faz ir além do papel de Capitão América que tanto o popularizou. Em conclusão, é o exemplar conjunto que torna a experiência tão prazerosa, rendendo risadas a cada minuto.

Por fim, resta falar da contagiante trilha sonora de Nathan Johnson, inequecível ao misturar com perfeição toques clássicos e misteriosos. Inspirado no estilo da inigualável “Rainha do Crime”, “Entre Facas e Segredos” é um original conto sobre assassinato e relações familiares. Trazendo personagens que transbordam carisma dentro de um elenco fortíssimo, o longa equilibra com maestria o suspense, o humor e uma quantidade considerável de plot twists na construção de uma experiência indispensável. Repleto de criatividade, o mistério é delicioso de se assistir com dúvidas na cabeça e um sorriso estampado no rosto.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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