Cinema com Rapadura

Colunas   sexta-feira, 16 de novembro de 2018

A Balada de Buster Scruggs e o autêntico faroeste dos irmãos Coen

Para Ethan e Joel Coen, o faroeste é um gênero que transcende lugares e época, presente até mesmo nos dias atuais.

Quando se fala em faroeste, é inevitável não formar a imagem na cabeça: um grande deserto, salpicado de pequenas vilas e bolas de feno. Um lugar povoado por foras-da-lei cheios de charme e mistério, xerifes dedicados, empresários gananciosos e donzelas inocentes, entre outros estereótipos. Em terras de fronteira, a linha entre lei e caos, certo e errado, é sempre tênue – e é nela onde os maiores cineastas do gênero gostam de andar.

Mas poucos deles sabem explorar tão bem os limites dessa temática como Ethan e Joel Coen (“O Grande Lebowski“). Com o lançamento de “A Balada de Buster Scruggs“, é de se surpreender que este seja apenas o segundo filme da dupla classificado como faroeste. No entanto, a temática da terra de fronteira, onde as pessoas estão por conta própria e à mercê da sorte, sempre foi algo muito presente em seus trabalhos. Isso e, claro, humor e reviravoltas. Para entender melhor o fascínio dos irmãos Coen pelo faroeste e como o gênero sempre figurou em seu trabalho, o Cinema Com Rapadura visita agora para as principais obras da dupla. Vamos a elas!

Gosto de Sangue (1984)

Agora, lá na Rússia, eles podem até ter tudo certo para todo mundo se ajudar. Pelo menos em teoria, de qualquer forma. Mas pelo que eu conheço do Texas e das terras aqui embaixo… Você está por conta própria“.

Logo em seu primeiro filme, Ethan e Joel deixam as regras do jogo bem claras: não há regras. Ao vermos essas palavras sendo ditas pelo detetive Visser (M. Emmet Walsh) um homem de chapéu e trajes de cowboy, o cenário ao seu redor logo se assemelha àquele do Velho Oeste, quando, na verdade, trata-se do Texas dos anos 1980. Aqui, os tempos podem até ter mudado, mas a essência continua a mesma. Ninguém vai cobrir nada por você, a menos que haja algo em troca. Contratado por um marido traído para assassinar sua esposa Abby (Frances McDormand) e o respectivo amante Ray (John Getz), Visser não tem escrúpulo nenhum: “se pagar bem e estiver dentro da lei, eu faço”, que rapidamente corrige e simplifica para “se pagar bem, eu faço”. Pode até ser que as leis existam e, em algum lugar, elas sejam respeitadas, mas no sul do Texas a fronteira entre civilização e barbárie não é tão bem definida. Aqui, cada um faz a própria lei, e elas costumam ser simples como a de Visser.

Arizona Nunca Mais (1987)

Se você precisar encontrar um fora-da-lei, então contrate um fora-da-lei. Agora, se quiser encontrar um Dunkin’ Donuts… Aí chame um policial“.

Nem só de más intenções vivem os foras-da-lei do Oeste. Pelo contrário, alguns deles só querem ter uma família e um cotidiano simples – dentro do que a vida permitir, claro. No caso de H.I. “Hi” McDunnough (Nicolas Cage) e sua esposa Ed (Holly Hunter), ela não permitiu: Ed é estéril e o casal não pode adotar uma criança por conta do histórico criminal de Hi. Ele é um criminoso sem nenhuma habilidade especial e ela, uma policial. O desejo por uma família, no entanto, é maior que ambas as ocupações (ou falta de). A solução é simples: roubar um bebê de uma família que acaba de ter gêmeos quíntuplos. Se uns têm muito, não vão sentir falta, não é mesmo? Mas o mundo já não permite que espíritos livres como Hi simplesmente cometam crimes e saiam impunes – o Oeste não é mais Velho, ainda que sua essência permaneça. Não por leis ou restrições, mas porque “quem tem” nunca deixará “quem não tem” brincar com o que é seu.

Fargo (1996)

Ali no chão era a sra. Lundegaard. E imagino que fosse o seu cúmplice lá no triturador. E aquelas três pessoas em Brainerd. E pelo quê? Por um pouco de dinheiro? Há mais na vida do que dinheiro, sabe. E aqui está você, e é um dia lindo. Bom, eu simplesmente não consigo entender“.

Se o Oeste não é mais Velho, às vezes nem mesmo a coordenada geográfica se mantém. Se transportarmos o enredo de “Fargo” a qualquer estado do sudoeste americano na metade do século XIX, ele se encaixará perfeitamente. No entanto, ele se situa em Minneapolis, terra fria e nevada no norte dos Estados Unidos, ainda que tenha uma ajuda de oriundos da cidadezinha que dá nome ao filme, na Dakota do Norte. Jerry Lundegaard (William H. Macy) é casado com a filha de um grande empresário na capital de Minnesota. Mas as coisas não vão bem financeiramente, e seu orgulho não permite pedir ajuda ao sogro. A solução, para ele, é ir até Fargo e contratar dois criminosos para sequestrarem sua esposa. Com o dinheiro do resgate, tudo se resolveria. Como é de se esperar, as coisas acabam tomando rumos totalmente contrários ao planejado por ele, e assumem contornos cada vez mais trágicos. Ainda que, no fim, tudo se resolva graças a uma policial grávida (Frances McDormand), Minnesota e Dakota do Norte também já foram a fronteira um dia, mas o que as torna terras às quais a lei não chega são seus próprios homens.

Onde Os Fracos Não Têm Vez (2007)

O que você tem aí não é novidade. Essa terra é dura com as pessoas. Você não pode conter o que está vindo. Nada vai ficar esperando por você. Isso é vaidade“.

O senhor poderia ficar parado, por favor?

Existem lugares maus e sombrios, independente do quão forte esteja o Sol no céu. Para o xerife Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones), esse é o caso do oeste do Texas, onde ele se sente sobrecarregado pela violência das pessoas. No Oeste contemporâneo, negócios ilícitos ocorrem com maior frequência, e assassinos estão cada vez mais implacáveis, usando métodos mais sofisticados para matar – como pistolas de ar comprimido, por exemplo. Em “Onde os Fracos Não Têm Vez”, o caçador Llewelyn Moss (Josh Brolin) se torna a caça ao pegar para si o dinheiro que achou no local onde uma venda de drogas deu errado. Atrás dele, o assassino Anton Chigurh (Javier Bardem) – um dos maiores e mais assustadores vilões do cinema – deixa um rastro de destruição. O xerife Bell faz o possível para tomar as rédeas da situação, mas as forças em ação são mais poderosas que ele, que a sorte de Moss ou mesmo a sede de sangue de Chigurh. Em uma terra onde as pessoas são más por natureza, não há nada que um homem da lei possa fazer.

Bravura Indômita (2010)

Bill Waters é o melhor rastreador. […] O mais cruel é Rooster Cogburn, um homem sem compaixão, durão em dobro. Medo nem lhe passa pela cabeça. Mas diria que o mais justo é L.T. Quinn, que sempre traz seus prisioneiros vivos, ainda que deixe passar um ou…

E onde eu acho esse tal Rooster?

Único faroeste autodeclarado dos Coen antes de “Buster Scruggs”, “Bravura Indômita” é o remake de um clássico de John Wayne da década de 1960. A adolescente Mattie Ross (Hailee Steinfeld) está a procura de alguém que possa ajudá-la a vingar a morte de seus pais, assassinados por um homem chamado Tom Chaney (Josh Brolin). Sua única exigência é que Chaney sofra, o que a leva a contratar o US Marshall Rooster Cogburn (Jeff Bridges), conhecido por ser impiedoso e destemido. Durante a jornada, a dupla ganha a companhia do Texas Ranger LaBouef (Matt Damon), em busca de Chaney por crimes cometidos no Texas. Sem a necessidade de analogias ou subtextos, aqui as coisas estão mais evidentes. Enquanto Ross busca apenas vingança – algo que, aos olhos de uma adolescente, parece uma visão confusa sobre justiça -, Cogburn quer apenas saciar sua sede de sangue, tendo que lidar com o exato oposto à sua índole em LaBouef: um homem que constantemente fala de leis e usa termos em latim para justificar suas opiniões.

Seja quando for, para os irmãos Coen o faroeste vive e se faz presente o tempo todo. Não se trata apenas de um lugar ou uma época, mas sim de proporcionar que a natureza humana se manifeste sem amarras. Em “A Balada de Buster Scruggs”, a promessa é de que isso permaneça ao longo das seis histórias que compõe sua antologia – afinal, não se cria um protagonista conhecido como “o misantropo” por nada, não? -, agora aliado ao típico humor ácido que é outra das marcas registradas dos irmãos.

Fique ligado no Cinema Com Rapadura e leia nossa crítica sobre “A Balada de Buster Scruggs”!

Julio Bardini
@juliob09

Compartilhe


Conteúdos Relacionados