Cinema com Rapadura

Colunas   quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

10 verdades sobre o Snyder Cut: os bastidores do Liga da Justiça de Zack Snyder

Uma das maiores sagas hollywoodianas do passado recente, o Snyder Cut é muito mais que um filme: é o fim de uma campanha multimídia de anos, o triunfo de uma comunidade de fãs e um ciclo pessoal que se encerra na vida de uma artista

Foto por Clay Enos, divulgada pela Vanity Fair

Uma das coisas mais prazerosas para os fãs de cinema é, além de assistir um filme, ver o que há por trás dele. Enquanto obras de arte, cada obra é fruto de um conjunto de circunstâncias únicas, que não poderiam culminar em outro resultado senão aquele que está na tela. Diversos são os exemplos de produções que foram verdadeiras sagas e que resultaram em verdadeiros clássicos: o “Star Wars” original de George Lucas, o “Apocalypse Now” de Francis Ford Coppola, o “Tubarão” de Steven Spielberg…

Atualmente, o controle cada vez maior dos estúdios sobre cineastas tem feito com que tais sagas se tornassem cada vez mais raras – e os filmes cada vez menos ambiciosos. Há, no entanto, um caso que se destaca e causa polêmica a cada nova notícia: “Liga da Justiça” de Zack Snyder. Para o bem ou para o mal, o chamado Snyder Cut é um caso emblemático dos problemas do formato atual de produção de blockbusters, com interferência direta da Warner, troca de comando e tragédias pessoais.

Uma matéria da revista Vanity Fair publicada recentemente trouxe um novo olhar sobre o filme, com mais detalhes dos bastidores que levaram à versão lançada nos cinemas em 2017, da repercussão causada por seu fracasso de público e crítica, e de como os fãs, o elenco e o próprio Snyder se engajaram nessa que é uma das grandes sagas hollywoodianas do nosso tempo. Vamos aos pontos principais.

Uma tragédia pessoal

Em 2017, Zack Snyder acabou deixando a direção de “Liga da Justiça” junto a sua esposa e parceira de produção, Deborah. A dupla se viu na pior situação que qualquer pai ou mãe poderia imaginar: o suicídio de sua filha Autumn aos 20 anos, vítima de um quadro grave de depressão. Aguerrido, Snyder vinha resistindo à constante interferência da Warner no longa, mas a perda de sua filha deixou Deborah e ele sem forças para lidar com a situação, e o casal acabou desistindo do filme. É importante ressaltar que eles não foram demitidos, mas saíram voluntariamente por não terem apoio e nem forças para continuar.

Desconfiança e interferência

Antes de “Liga da Justiça”, Snyder havia começado a expandir o universo DC nos cinemas com “Batman vs. Superman: A Origem da Justiça“, lançado em 2016. O filme angariou uma série de críticas, principalmente sobre roteiro e duração, e comparações constantes com um dos carros-chefes da concorrência Marvel, “Capitão América: Guerra Civil“. Com isso, a Warner decidiu recrutar Geoff Johns e Jon Berg para supervisionarem “Liga da Justiça” – ou servirem como “babás”, como o próprio Snyder se refere à dupla. A missão dos dois era garantir que o filme não desviasse dos caminhos que pudessem ser considerados preocupantes para a ideia de sucesso do estúdio, já abalada após o fiasco de “Esquadrão Suicida“. Johns e Berg, no entanto, acabaram tumultuando ainda mais o ambiente, principalmente após Joss Whedon assumir a direção. O trio é o alvo principal das denúncias de conduta tóxica e antiprofissional feitas por Ray Fisher, intérprete do herói Ciborgue, durante as refilmagens pedidas por Whedon para sua versão do filme.

Whedon assume

À época da troca de comando, muito se disse que Joss Whedon teria sido escolhido a dedo por Zack Snyder para finalizar “Liga da Justiça”. Para muitos, aliás, Whedon parecia a melhor opção após comandar a conclusão de duas fases do universo da concorrente Marvel nos cinemas. Mas a escolha se deu muito mais por afinidade, já que Whedon estava desenvolvendo a ideia de um filme da heroína Batgirl junto a Geoff Johns. Recém empossado como “babá” de Snyder em “Liga da Justiça”, a decisão era simples para o executivo, que, em primeiro momento, convidou seu colega para reescrever partes do longa. Snyder, por sua vez, não viu problemas nisso: “eu achei que ele poderia escrever algumas cenas legais. Achei que poderia ser divertido“.

Contudo, logo ficou claro que a Warner dava cada vez mais poder a Joss Whedon, que chegou a reescrever cerca de três quartos da produção. Enquanto Snyder bancava suas decisões sobre o filme e enfrentava o estúdio para defendê-las, Whedon cedeu às exigências da empresa, principalmente em relação a questões estruturais, como duração. “Como eu deveria apresentar seis personagens e um alienígena com potencial para dominação em duas horas? Digo, eu consigo, dá para fazer. Claramente foi feito, mas eu não vi”, argumenta Snyder.

Fracasso anunciado

A alta cúpula da Warner, claro, não ficou feliz com o corte de Joss Whedon para “Liga da Justiça”, nem com seu desempenho nas bilheterias mundo afora. Whedon regravara três quartos do filme, a expectativa era grande. Um dos executivos afirmou que, quando foram ver, acharam o resultado ridículo: “quando fomos ver o que Joss havia feito, ficamos estarrecidos. O momento do ladrão no telhado, tão pateta e horrível. A família russa, tão inútil e sem sentido. Todo mundo sabia. Foi muito desagradável, pois ninguém queria admitir a m**** que foi.” No fim, Whedon sequer teve crédito como diretor, apenas como co-roteirista.

O tamanho do prejuízo

O corte de “Liga da Justiça” lançado em 2017 foi um fracasso retumbante. O filme arrecadou apenas US$ 657 milhões mundialmente, o que, para um orçamento de US$ 300 milhões, não é um valor tão alto. Não obstante, Joss Whedon recebeu seus US$ 25mi, e a Warner gastou entre US$ 100mi e US$ 150mi em campanhas de marketing para promover o lançamento. Tirando as receitas para os cinemas, é um cenário de terra arrasada. Para seu corte, Snyder abriu mão de receber qualquer pagamento, pedindo apenas controle total sobre a produção do filme. A arrecadação gerada pelo Snyder Cut será revertida para organizações que atuam na prevenção contra o suicídio.

Triângulo amoroso polêmico

Uma das ideias iniciais de Zack Snyder para sua visão original de “Liga da Justiça” envolvia um possível relacionamento entre o Bruce Wayne de Ben Affleck e a Lois Lane de Amy Adams, que à época ainda estaria de luto pela morte do Superman (Henry Cavill). Mas mexer com a natureza de dois personagens tão icônicos e adorados pelos fãs não agradou à Warner, que vetou a ideia. Snyder diz:

“A intenção era que Bruce se apaixonasse por Lois e então percebesse que o único jeito de salvar o mundo seria trazendo o Superman de volta à vida. Então ele teria esse conflito interno insano, pois Lois, claro, ainda estava apaixonada pelo Superman. Tínhamos um discurso lindo, no qual Bruce falaria para Alfred: ‘eu nunca tive uma vida fora dessa caverna. Nunca imaginei um mundo para mim além disso. Mas essa mulher me faz pensar que, se eu conseguir juntar esse grupo de deuses, então meu trabalho está feito. Posso me aposentar. Posso parar.’ E, claro, isso não funciona para ele.”

Pelas palavras de Snyder, a principal motivação de Wayne aparenta ser mais uma admiração pela pessoa de Lois, travestida de atração amorosa para maior efeito dramático. Agora, após o veto da Warner, não há como saber como teria sido ver esse relacionamento proibido nas telonas.

Evitando mais frustrações

Um dos grandes cineastas em ação atualmente, Christopher Nolan é um dos produtores executivos de “Liga da Justiça”, assim como fora de “Homem de Aço” e “Batman vs. Superman“. Nolan também é a mente por trás da já clássica trilogia “O Cavaleiro das Trevas“, tida por alguns como o retrato definitivo do Batman nos cinemas. Com seu vasto repertório, o cineasta assistiu, junto a Deborah Snyder, um corte do filme ainda em 2017. O resultado: “eles saíram e apenas falaram ‘você não pode nunca ver isso.’” E até hoje Snyder não assistiu, o que certamente é para melhor.

#SnyderCut

Após a catástrofe de 2017, muitos fãs passaram a pedir nas redes sociais o lançamento do corte inicial de Zack Snyder para “Liga da Justiça”. À época, não eram conhecidos os tumultos de bastidores e nem confirmada a existência de tal versão do filme, mas o movimento começou a ganhar ainda mais força em novembro de 2019, quando o próprio Snyder e o elenco principal passaram a tuitar com a #ReleaseTheSnyderCut.

Atenta, a Warner entrou em contato com o diretor através do executivo Toby Emmerich, oferecendo uma nova chance a Snyder. A ideia era que ele lançasse apenas a suposta versão “crua” do filme, que o cineasta tinha guardada em seu laptop desde a época em que deixou a produção. E Snyder negou, por três motivos.

A Warner estava sob ataque dos fãs de Snyder nas redes, cuja devoção é renomada internet afora, e os executivos só queriam achar um jeito de se livrar de tamanha atenção negativa. Ao mesmo tempo, por oferecer essa chance a Snyder, eles queriam se sentir justificados, como se estivessem fazendo a coisa certa, mesmo depois de terem mantido uma postura errada no passado. E por fim, ao lançarem uma versão inacabada do filme de Snyder, eles queriam apontar e dizer “viram? Não é tão bom assim, estávamos certos”.

Após os lados negociarem, um acordo foi firmado com o orçamento de US$ 70mi para que o Snyder Cut fosse devidamente concluído, com controle total de Snyder sobre o produto final.

Participação especial e formato de tela inusitado

Entre os ajustes promovidos por Snyder em sua versão completa do filme está a participação de personagens que não estiveram no corte de Joss Whedon em 2017. Entre eles está o Coringa de Jared Leto, que apareceu pela primeira vez em “Esquadrão Suicida”. Mas o diretor também regravou o final com um cameo de um personagem que a matéria da Vanity Fair promete que irá “explodir a cabeça” dos fãs mais ávidos. Já foi indicado que essa “surpresa”, no entanto, já teria sido revelada.

Uma informação inusitada, no entanto, é que o formato quadrado 4:3 que temos visto nos trailers do Snyder Cut será também a forma que o filme será exibido no HBO Max, e nas plataformas digitais. A intenção é que, um dia, ele possa ser aproveitado em IMAX, e assim o formato já estaria preparado.

O fim de um ciclo

A essa altura, é praticamente impossível não pensar no Snyder Cut sem lembrar de um dos fatores que deu início a essa saga: a morte de Autumn Snyder. De seus oito filhos, apenas ela demonstrava interesse pelos projetos e o trabalho de Zack. Ela adorava ficção científica e a construção de mitos e heróis – o que é largamente abordado no trabalho de Snyder – e estudava para se tornar uma escritora. Seu pai diz:

“Seus personagens principais estavam sempre em uma batalha com coisas de outra dimensão que ninguém consegue ver. Mas é uma guerra séria. E uma guerra que estava acontecendo com ela todos os dias. Eu acho que tantas pessoas estão passando por essa batalha, e eles sorriem e acenam para você.”

Não é spoiler que o Snyder Cut de “Liga da Justiça” termina com Hallelujah, de Leonard Cohen – a própria matéria da Vanity Fair revela. A versão usada, contudo, não é o clássico de Cohen, mas uma interpretação de Allison Crowe, amiga de Autumn que também cantou em seu funeral. Essa era sua música favorita, e agora seu pai a transformou em uma elegia. Se para os fãs o Snyder Cut é um pedido antigo, talvez para Snyder seja a chance de encerrar um ciclo em sua vida, e tornar Autumn uma memória presente para todos aqueles que assistam o filme. “Sem ela, nada disso teria acontecido“, diz.

Independente de como seja recebido, das críticas que receba ou dos sucesso que faça mundo afora, o corte de Zack Snyder para “Liga da Justiça” já é uma das maiores histórias de Hollywood no passado recente. É o fim de uma campanha multimídia de anos, o triunfo de uma comunidade de fãs e um ciclo pessoal que se encerra na vida de uma artista. “Se eu fosse um artesão, faria alguma obra para buscar um caminho de passar por isso. Mas sou um cineasta, então vocês ficam com esse filme gigante.”

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O “Liga da Justiça” de Zack Snyder será lançado em 18 de março no HBO Max, nos Estados Unidos. No Brasil, o filme será disponibilizado no mesmo dia via PVOD nas plataformas digitais.

Julio Bardini
@juliob09

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