Cinema com Rapadura

Colunas   segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Um Cão Andaluz e o surrealismo no cinema

O surrealismo provocou inúmeros artistas a inovar e experimentar novas técnicas ao incentivar a exploração do inconsciente, dos sonhos e das emoções. O cinema se provou um forte chamariz a este movimento, que teve em "Um Cão Andaluz" um de seus representantes mais famosos.

O surrealismo foi um movimento artístico da primeira metade do século XX. Com um manifesto escrito pelo poeta francês André Breton, que muitos tomam como o lançamento oficial desta onda, artistas inspirados pelos conceitos de psicanálise de Freud mergulharam na representação do subconsciente, dos sonhos. Tais anseios os levaram a quebrar com a narrativa linear comum do cinema clássico e produzir obras sem (aparente) nexo.

Em seu manifesto, Breton tece o conceito de supra-realidade, onde o véu entre sonho e realidade cai, criando esta nova e absoluta realidade. Fica óbvio o valor dado aos sentimentos, emoções, instintos e elementos irracionais, de onde a arte deveria nascer. O movimento buscava quebrar com o status quo da sociedade, procurando reconstruí-la com as emoções e desejos de seus habitantes, os quais eram convidados à autoanálise e à autodescoberta.

Cena de “Um Cão Andaluz”

Ao produzir filmes que fogem das regras clássicas de espaço e tempo, os surrealistas convidam a plateia para ter suas próprias interpretações das imagens em tela. Neste movimento, não há respeito às estruturas de espaço e tempo, exemplos de como o surrealismo acabava quebrando as regras de narrativa do cinema clássico. Ao fugir da linearidade da contação de histórias e investirem na subjetividade das interpretações de seus espectadores, os cineastas compõem odes aos sentimentos e aos sentidos, criticando a hipocrisia da sociedade da época que oprime sua própria humanidade e seus desejos, com o objetivo de libertá-la de tais amarras impostas por tradições tidas como ultrapassadas e ultraconservadoras.

Um dos grandes representantes do surrealismo no cinema é “Um Cão Andaluz”, produzido em 1929 escrito e dirigido pelo espanhol Luis Buñuel, que divide o roteiro com um dos maiores expoentes artísticos do movimento, Salvador Dalí. Ambos também aparecem no filme.

Não há como dar algum tipo de sinopse, já que o filme basicamente se resume a um conjunto de várias cenas perturbadoras juntas, como uma representação visual de um pesadelo. Com sua quebra de paradigmas da estrutura narrativa clássica, esta obra causou estranheza e gerou um importante debate sobre o que deve e pode ser considerado um produto da sétima arte.

Formigas saindo de um buraco em uma mão, sem aparente conexão com a narrativa

Há muito simbolismo em “Um Cão Andaluz”, como desejos sexuais reprimidos pelas instituições religiosas e moralmente conservadoras representados quando um dos personagem não consegue avançar na mulher que deseja por estar “preso” às cordas que o prendem a elementos religiosos e que representam a burguesia da época, acusando a hipocrisia da mesma. Aliás, a famosa cena do olho cortado pode representar uma proposta de eliminar o que se é visto na sociedade em si, para voltar seu olhar para dentro. Há uma grande ode à subjetividade.

Um dos exemplos de como o cinema surrealista quebrava as regras clássicas de narrativa, que mostrava conflitos com começo, meio e fim, é a cena em que uma personagem abre a porta de sua casa, que possui uma janela para um centro urbano, mas imediatamente após cruzá-la se encontra numa praia. Antes do surrealismo, haveria um corte que indicaria a passagem de tempo para que a moça se deslocasse até a praia. Outra amostra é numa cena intercalada por uma cartela com os dizeres “dezesseis anos antes”, mas que não muda nada do que está acontecendo. Os personagens estão no mesmo lugar e a cena segue como se a cartela não existisse.

Salvador Dalí (direita) em “Um Cão Andaluz”

Essa estrutura onírica é uma ótima representante do que o surrealismo se propunha, usando as abordagens freudianas da psicanálise para criar metáforas visuais que ilustravam sentimentos e conflitos emocionais dos personagens. Ao assistir filmes surrealistas, o espectador deve evitar procurar lógicas narrativas, mas sim buscar sentir as emoções propostas.

Justamente por ter tal proposta, não é uma obra de fácil digestão. Entretanto, há valor a ser encontrado na arte que procura provocar pensamentos com o intuito de melhoria e evolução social, onde os indivíduos tenham mais liberdade para serem quem são, livres de julgamento e amarras impostas por tradições e costumes que acabam oprimindo aqueles que os seguem. Também é inegável que tal movimento trouxe avanços cinematográficos significativos advindos de artistas que abraçaram a ideia de pensar fora da caixa da narrativa clássica e experimentar diferentes maneiras de lidar com obras audiovisuais. Até hoje, início do século XXI, há inúmeros cineastas influenciados pelo surrealismo que procuram trazer elementos do mesmo para seus projetos. David Lynch é um dos exemplos mais famosos.

O surrealismo trouxe interessantes propostas de quebra de realidade para que, com isso, o ser se desconstrua e se descubra. É uma ode àqueles que ousam enxergar o mundo de outra maneira e, assim, descobrir formas de melhorar a sociedade em que se encontra. Para quem quiser entender um pouco do que este movimento se propunha, “Um Cão Andaluz” pode ser facilmente encontrado no YouTube. É uma obra curta, de pouco mais de vinte minutos, e, gostando dela ou não, não há como negar que é de suma importância para a história do cinema.

Bruno Passos
@passosnerds

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