Cinema com Rapadura

Colunas   quinta-feira, 19 de novembro de 2020

[Coluna] Filmes sobre esperança, redenção e preservação da dignidade humana

"A Cor Púrpura", "O Homem Elefante" e "Um Estranho no Ninho": três longas cujos legados transcendem sua importância como obras cinematográficas.

A fim de propor reflexões a seus apreciadores, a arte sempre se vale de instrumentos capazes de potencializar o alcance e o impacto de suas mensagens. Nesse sentido, o cinema é um veículo bastante eficaz. A busca por redenção, por sua vez, tem sido um dos principais assuntos abordados nas telonas e, em obras marcantes e poderosas, está sempre atrelado ao conceito de esperança. Dessa forma, da chamada Sétima Arte, algumas das jornadas mais tocantes e emblemáticas que abordam os temas em questão têm o poder inegável de sensibilizar até despertar o mais íntimo instinto de compaixão.

Ao longo de décadas, muitos filmes têm empregado em suas narrativas elementos que fazem o público se identificar com inglórias e solitárias jornadas rumo a uma tão almejada redenção. O curioso é que, na maioria dos casos – por que não em todos -, nenhum dos postulantes à salvação consegue alcançar seu objetivo sem a providencial ajuda de outro ser humano que, de alguma maneira, sinta-se impulsionado pela vontade de amparar e trabalhe em prol do bem-estar de seu semelhante. Em comum a tais produções está a mensagem de que a essência da compaixão é reconhecer-se no próximo.

Abaixo, uma lista com três filmes cujos legados transcendem sua importância como obras cinematográficas, sendo verdadeiros manifestos à preservação da dignidade humana.

A Cor Púrpura

Baseada no livro homônimo de Alice Walker, a adaptação cinematográfica de “A Cor Púrpura”, lançada em 1985 e dirigida por um inspirado Steven Spielberg, traz a sofrida história de Celie (Desreta Jackson), uma adolescente negra do sul dos Estados Unidos do início do século XX. Celie, depois de ser estuprada pelo próprio pai e de ter os dois bebês gerados desses frequentes abusos arrancados de si, é vendida a Albert (Danny Glover) para ser sua esposa. Albert, por seu lado, é um homem bruto que humilha e maltrata Celie, e a quem ela, de forma subserviente, refere-se como Mister.

Nessa condição, o único alento de Celie é seu relacionamento puro e quase infantil de amizade e cumplicidade com Nettie (Akosua Busia), sua irmã. Todavia, as duas são separadas por Mister, que não aceita o fato de ser rejeitado pela cunhada. Distante da irmã, e sem ninguém a quem possa recorrer, Celie passa seus dias e anos servindo de escrava doméstica para Mister. Ao chegar à fase adulta – quando é vivida pela estreante Whoopi Goldberg -, Celie tem como único escape a escrita de cartas, primeiro remetidas a Deus, e depois a Nettie, na esperança de ter notícias suas.

Celie então conhece Shug, uma cantora de jazz & blues vivida por Margaret Avery, que, para tratar de uma enfermidade, hospeda-se na casa de Albert, seu amante. Ao ser alvo da docilidade e amabilidade de Celie, Shug começa a perceber nela o real valor que por anos fora ocultado sob menosprezo e desdém. Celie, estimulada por Shug, começa a descobrir em si própria uma feminilidade que nem mesmo sabia possuir, e perceber sua enorme importância às pessoas ao seu redor. Quando a transformação na vida de Celie tem início, ela se torna um elemento catalisador de mudanças na vida de todos, até mesmo de Mister, seu algoz.

Em “A Cor Púrpura”, que difere muito de seus tradicionais projetos, Spielberg – que à época já dirigira blockbusters como “Tubarão” (1975), “Os Caçadores da Arca Perdida” (1981) e “ET” (1982) – está fora de sua zona de conforto. No entanto, provando mais uma vez o talento que o fez uma lenda do cinema, o diretor realiza um de seus trabalhos mais maduros, dando carisma a uma trama que carrega no drama sem perder a necessária leveza. Contribuem para isso a enternecedora trilha sonora de Quincy Jones e a encantadora fotografia, que expõe a beleza bucólica das paisagens rurais da Geórgia, em cujos campos se destacam as flores de cor púrpura referenciada pelo título da obra.

Contando com a atuação soberba de Whoopi Goldberg – que, de maneira sutil, confere a Celie ingenuidade suficiente para querermos abraçá-la -, o desempenho intenso de Danny Glover e a excelente participação de Oprah Winfrey – que, como Sofia, nos faz rir e chorar na mesma medida -, o elenco é um deslumbre à parte. Ademais, o filme está repleto de momentos marcantes, sejam eles dramáticos, divertidos ou emocionantes, com destaque para a sofrida separação entre Celie e Nettie, a emblemática cena na igreja ao som de Maybe God Is Tryin’ To Tell You Somethin’, e a pitoresca cena final. Em suma, “A Cor Púrpura” é uma verdadeira poesia em forma de longa-metragem e um dos momentos mais singelos da história do cinema, sendo reconhecida com 11 indicações ao Oscar e rendido até mesmo um musical na Broadway.

O Homem Elefante

Em “O Homem Elefante”, de 1980, David Lynch opta por não fazer uso abundante do onirismo pelo qual o cineasta é tradicionalmente conhecido. Na maior parte do tempo, porém, o diretor conduz sua narrativa baseado nos eventos reais da vida de Joseph Merrick, cidadão britânico que viveu na Inglaterra vitoriana – aqui recriada com primor por uma fotografia preto e branco imersiva – e passou à História conhecido como o Homem Elefante, alcunha derivada de sua aparência física anômala, esta decorrente de uma doença congênita. No longa, entretanto, Joseph é chamado de John Merrick.

Na trama, John Merrick (John Hurt) é um homem deformado e doente, explorado de forma impiedosa como uma aberração de circo pelo vil Senhor Bytes (Freddie Jones). Interessado na enigmática figura, o dr. Frederick Treves (Antony Hopkins), médico anatomista, decide abrigá-lo em um renomado hospital londrino, no intuito de estudar sua condição fisiológica. Tratada como uma descoberta revolucionária e recebida com espanto pelos funcionários da instituição, aos poucos, a situação degradante de Merrick, que na maior parte do tempo se cobre com uma capa e um chapéu a esconderem sua famigerada imagem, comove tanto o médico quanto a maior parte daqueles que de início o haviam repelido. Tendo nestes agora um grupo de aliados dispostos a lhe darem uma condição de vida mais amena e confortável, John começa a revelar aspectos profundos e sensíveis de sua própria personalidade, até então camuflados sob escárnio e repulsa.

As palavras de John Merrick resumem sua vitória final: “Eu ganhei o mundo, pois ganhei a mim mesmo”.

É com essa premissa que, com uma das histórias de vida mais impressionantes já conhecidas e retratadas nas telonas, “O Homem Elefante” é um verdadeiro triunfo cinematográfico e um dos filmes mais poderosos já feitos. Assisti-lo faz bem à alma, pois nos faz refletir sobre o modo como julgamos pela aparência, e como somos capazes de tratar nossos semelhantes com absoluta crueldade – às vezes disfarçada de simples curiosidade (mórbida). No fim das contas, se há uma recomendação definitiva a ser feita sobre “O Homem Elefante”, é que talvez este seja, sem exageros, o filme mais capaz de fazer de alguém um ser humano melhor – a experiência, de fato, é enriquecedora.

Contudo, fica o aviso: prepare um lencinho; você vai precisar. A jornada de John Merrick, além de dar um nó na garganta, emociona de forma quase contínua durante a projeção. Se o espectador não tiver uma pedra em lugar do coração, verterá uma verdadeira torrente de lágrimas dos olhos como nenhum outro filme já foi ou será capaz de provocar. A última cena em particular, ao som de Adagio for Strings, de Samuel Barber, é o golpe de misericórdia a qualquer insensibilidade que teime em resistir.

Do ponto de vista artístico, “O Homem Elefante” foi reconhecido com 8 indicações ao Oscar, entre elas as de Melhor Filme, Melhor Ator (para John Hurt), Melhor Diretor e a belíssima trilha sonora assinada por John Morris. No elenco, que conta com a notável participação do ícone do cinema Anne Bancroft, Anthony Hopkins nos prestigia com mais uma de suas elegantes performances. Enquanto isso, John Hurt, auxiliado pelo magnífico trabalho de maquiagem – que recria os traços anatômicos e fisionômicos de John Merrick com absoluto requinte – é a alma e o coração do longa, dando a seu personagem e, sobretudo, à memória de Joseph Merrick, a dignidade por eles amplamente merecida.

Um Estranho no Ninho

Jack Nicholson sempre teve fama de “louco”. Em “Um Estranho no Ninho”, no entanto, Randle P. McMurphy, vivido com grande disposição e entusiasmo pelo astro de filmes como “Chinatown” (1974) e “O Iluminado” (1980), a despeito de ter sua trama ambientada num hospício, mostra-se, por pura ironia, o mais são de todos os personagens. A produção, dirigida por Miloš Forman, é, por sua vez, a adaptação do livro homônimo de autoria de Ken Kesey, ícone da geração beatnik que escreveu sua obra inspirado em experiências vividas como funcionário de uma instituição para veteranos de guerra.

McMurphy, ao ser levado sob custódia a um manicômio a fim de ter sua situação clínica analisada – na verdade, com o intuito de cumprir pena longe do sistema prisional, o malandro simula insanidade -, acaba, com seu jeito despojado e extrovertido, mudando a rotina dos internos, que, contagiados pela energia vibrante do novo membro, começam a questionar as práticas às quais são submetidos e a maneira como são avaliados. Todavia, eles terão a forte oposição da cínica e sádica enfermeira-chefe Mildred Ratched, vivida com perfeição hipnótica por Louise Fletcher.

Aqui, diferente do que ocorre com os protagonistas anteriormente citados, que alcançam sua redenção através da ação do outro, McMurphy, com sua incessante busca por liberdade, é que serve de impulso condutor para levar seus colegas de confinamento a um processo de ressignificação de suas individualidades, sobretudo em relação aos seus desejos e vontades. Assim, a obra faz uma crítica pesada ao sistema manicomial americano da época, bem como aos seus métodos cruéis de tratamento, que incluíam, entre outras, a infame prática da lobotomia.

Lançado em 1975, “Um Estranho no Ninho”, que tem entre seus produtores a figura ilustre do ator Michael Douglas, tornou-se, de imediato, um verdadeiro sucesso de crítica e um dos filmes de “arte” mais populares de todos os tempos – sua cena final, por exemplo, é uma das mais emblemáticas desde sempre. Tanto que, recentemente, essa popularidade levou a Netflix a lançar a série “Ratched”, uma espécie de spin-off não oficial dedicado a servir de prequel à estória da enfermeira que é considerada uma das maiores vilãs da história do cinema, e que aqui é interpretada pela atriz Sarah Paulson.

Em 1976, ano seguinte de sua chegada às telonas, o longa conquistou as estatuetas referentes a todas as cinco principais categorias do Oscar – Melhor Filme, Melhor Ator (para Jack Nicholson), Melhor Atriz (para Louise Fletcher), Melhor Diretor e Melhor Roteiro Adaptado -, feito esse que o igualava ao clássico “Aconteceu Naquela Noite” (1934), e somente depois alcançado pelo excelente “O Silêncio dos Inocentes” (1991). “Um Estranho no Ninho”, de quebra, ainda tem a maravilhosa trilha sonora de Jack Nitzsche e um dos melhores elencos de coadjuvantes jamais vistos no cinema, que inclui nomes como Danny DeVito, Sidney Lassick, William Redfield, Vincent Schiavelli, William Duell, Scatman Crothers, a atriz e cantora Mews Small, os estreantes Christopher Lloyd e Brad Dourif – este último indicado ao Oscar de Ator Coadjuvante por seu elogiável trabalho como Billy Bibbit -, e Will Sampson na pele do icônico Chefe Bromden.

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Enfim, cada filme citado neste artigo contribuiu a sua maneira para fazer da arte um chamado à reflexão sobre questões fundamentais e, através de jornadas de esperança e busca por redenção, fazer do cinema um verdadeiro manifesto de belas e edificantes mensagens que podem, por que não, nos ajudar a evoluir como humanidade.

Fernando Gomes
@rapadura

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