Cinema com Rapadura

Colunas   domingo, 26 de maio de 2019

1999: um ano imortal para o cinema

Com produções que redefiniram gêneros e ainda são tidas como algumas das melhores obras da história, o ano de 1999 se destaca pela qualidade do cinema.

Um bom filme pode ser lançado a qualquer momento. Mas, eventualmente, alguns anos concentram uma grande quantidade de obras marcantes. Olhemos, por exemplo, para 1968. Só neste ano chegaram aos cinemas nada menos que “2001: Uma Odisseia no Espaço”, “Planeta dos Macacos”, “O Bebê de Rosemary” e “A Noite dos Mortos-Vivos”. Isso para citar apenas alguns. Naturalmente, é sempre pouco provável que ao longo de um ano inteiro, apenas um filme esteja acima da média. Mas em 1999, uma inspiração acima do normal atingiu os produtores, diretores e roteiristas, que responderam com uma quantidade invejável de bons filmes.

De certa forma, é possível dizer que, para o cinema, o século 21 começou em 1999. Vários destes filmes, não apenas se destacavam pela qualidade fora do normal, alguns traziam inovações tecnológicas ou apresentavam conceitos que revolucionariam seus gêneros.

“Matrix” é, provavelmente, o filme mais lembrado nesses dois sentidos. Primeiro por ter utilizado de forma nunca antes vista os efeitos especiais digitais. Aqui, eles não tinham apenas a função de acrescentar ou remover coisas que não estavam ou que não deveriam estar na tela. Pela primeira vez o uso dessa tecnologia foi usada com função narrativa dentro da própria trama, tanto para desenvolver personagens, quanto conceitos. Houve também o bullet time (o efeito da câmera lenta), recurso sempre lembrado por “Matrix” – que foi quando o termo foi cunhado –, mas que é quase tão antigo quanto o próprio cinema. Mas, mais uma vez, é aqui que ele ganha destaque, muito por conta do bom uso que as irmãs Wachowski fizeram em seu filme.

“Matrix” também foi um marco para a ficção científica, mostrando que o gênero tinha como caminhar para novos rumos, mesmo bebendo de fontes do passado. Como filho direto do enigmático “Neuromancer” (o primeiro grande clássico do cyberpunk), é aqui que nós podemos ver todo o potencial do que foi profetizado no passado por William Gibson. As Wachowski provaram ter entendido que o conceito do cyberpunk não é a tecnologia, mas o que nós nos tornamos graças a ela. E, principalmente, do que nós abrimos mão por ela.

Mas não seria apenas a ficção científica que iria ser impactada pelo fatídico ano de 1999. O terror também nos ofereceu um dos seus mais instigantes filmes: “A Bruxa de Blair”. Mais uma vez, vemos aqui um filme que se tornou célebre, não apenas por redefinir um gênero, mas também por apresentar um recurso de filmagem de forma inteligente. Se hoje os found footage estão se tornando cada vez mais batidos, em 1999 eles eram uma desculpa simples para fugir de um grande orçamento. Tendo custado cerca de 60 mil dólares, o filme faturou cerca de 1.5 milhões de dólares no seu primeiro final de semana, apenas nos Estados Unidos.

E esse sucesso de público não veio de graça ou por sorte. Há inúmeras qualidades em “A Bruxa de Blair” que ainda hoje influenciam o terror. Mesmo deixado de lado o found footage, o roteiro se sustenta em causar medo, não através do susto simples e óbvio, como por vezes o gênero costuma fazer. Ao contrário, aqui o medo é construído aos poucos, desde a primeira cena. E o clímax só é bem sucedido porque o público já se vê apegado às personagens em tela e teme por suas vidas, principalmente quando elas começam a desaparecer misteriosamente na floresta.

1999 também foi o ano em que o spoiler – ou o medo dele – abraçou o cinema. Afinal, foi neste ano que M. Night Shyamalan trouxe aos cinemas “O Sexto Sentido”. Se em 1980 “Star Wars, Episódio V: O Império Contra-Ataca” chocou o mundo com a informação de que Darth Vader era pai de Luke Skywalker, agora foi a vez de causar o mesmo efeito, mas de uma maneira mais inteligente (ao menos do ponto de vista narrativo). A construção de um filme que oferece constantemente informações para que o público perceba que o protagonista está morto é o principal mérito em “O Sexto Sentido”. Porém, aqui, esse recurso faz sentido com a trama que é apresentada e, ao mesmo tempo, é muito bem escondida. Quem foi ao cinema já sabendo dessa informação, certamente deixou de viver uma experiência única.

E já que a franquia da família Skywalker foi citada, não se pode ignorar que 1999 também foi o ano que ela retorna ao cinema com “Star Wars, Episódio I: A Ameaça Fantasma”. Hoje, o filme é mal visto pelos fãs, que muitas vezes preferem ignorar sua existência (assim como toda a trilogia), mas quando chegou aos cinemas, o filme aqueceu o coração de quem ama a franquia e criou uma nova geração de pessoas interessadas pelo universo de “Star Wars”. A popularidade em torno da saga cresceu e, talvez, parte do sucesso que vemos hoje tenha iniciado neste ano, quando George Lucas decidiu voltar com sua grande obra. Muitas vezes, um resultado abaixo do esperado não implica em um fracasso e este filme pode ser a maior prova disso.

E com tantos filmes bons sendo lançados em apenas um ano, sobrou até para Stephen King. Muitas vezes citada como uma das suas melhores adaptações ao cinema, “À Espera de Um Milagre” é um filme que impressiona tanto pela beleza narrativa, quanto pela intensidade dramática. Algo parecido com o que ocorre em outro filho de 1999: “Meninos Não Choram”. Ambos os filmes se constroem pelo poder do que não é dito. No primeiro, vemos um negro com poderes (ou com uma maldição) para falar sobre racismo e esperança. No segundo, um garoto transexual é protagonista para falar sobre medo e sobre a sexualidade como um fenômeno social. Não distante deles, “Garota, Interrompida” (também de 1999) trata de um tema delicado para falar sem precisar contar – neste caso sobre o tabu que cerca as doenças mentais. São narrativas construídas nos detalhes, no que está implícito e precisa ser compreendido pelo público.

Mas, se por um lado, aquele foi um bom ano para chorar com histórias densas, também foi um bom ano para se apaixonar por histórias divertidas e carismáticas. Acima de tudo, foi o ano em que a comédia romântica adolescente mostrou que não era um (sub)gênero inferior. O sempre agradável “10 Coisas que Eu Odeio em Você” foi a obra que definiu o que seria um bom filme adolescente. Esta adorável adaptação de Shakespeare ainda soa moderna em diversos sentidos, seja pela forma como aborda as duas personagens femininas principais, seja no teor que o filme dá à paranoia e superproteção paterna.

Tivemos ainda “Clube da Luta”, com suas ácidas críticas à sociedade de consumo (e mais um filme com um inteligente plot twist no final). Nos emocionamos com “Beleza Americana” satirizando o estilo de vida americano. Fomos pegos de surpresa com o experimentalismo narrativo de “Magnólia”. Demos adeus a um dos maiores gênios do cinema com “De Olhos Bem Fechados”. Resumir o que foi o ano de 1999 para o cinema é uma tarefa difícil. O mundo estava diante de novas formas de se contar uma história. E de novas histórias a serem contadas.

Nem mesmo a animação ficou para trás. Enquanto a Pixar lançava “Toy Story 2”, Brad Bird nos entregou “O Gigante de Ferro”. A animação se destaca pela originalidade, não da trama principal, mas pela maneira como ela é desenvolvida. Ela ainda conta com uma técnica de animação sublime, ao misturar computação gráfica com traços mais clássicos. A arte é trabalhada para enfatizar detalhes e estabelecer padrões dentro do próprio filme. Além de favorecer e enaltecer a figura do robô.

“Quero Ser John Malkovich”, “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça”, “A Múmia”. A lista parece nunca acabar. Não faltam exemplos de filmes icônicos tanto pela qualidade do roteiro, quanto pela ousadia da técnica. 1999 foi um ano imortal para o cinema. De certo modo é como se ele ainda não tivesse acabado. Ainda vamos atrás de referências que foram estabelecidas em todas essas obras. O cinema, naturalmente, mudou e evoluiu. Mas olhar para o passado e ver essa concentração de filmes, todos em um único ano, não deixa de ser uma prova de que para o cinema, nunca haverá limites.

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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