Cinema com Rapadura

Colunas   segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Além da interatividade: como Bandersnatch explora a mitologia de Black Mirror

Falamos sobre como a série e seu novo filme interativo criam um universo distópico que aborda questões éticas e sociais de maneira crítica.

“Isso é muito Black Mirror!” 

Essa expressão se popularizou na internet e é utilizada para se referir a obras ou acontecimentos levemente surreais que surpreendem as pessoas. “Black Mirror é uma série de televisão britânica antológica de ficção científica criada por Charlie Brooker, focada em temáticas obscuras e satíricas cujo objetivo é fazer um exame da sociedade moderna e as consequências imprevistas das novas tecnologias. Seus episódios são trabalhados de forma individual, e normalmente se passam em um presente alternativo ou em um futuro não tão distante. E poucas coisas “são tão Black Mirror” quanto o mais novo filme da série, disponibilizado pela Netflix no último dia 28, “Black Mirror: Bandersnatch”.

Dirigido por David Slade (da série “Deuses Americanos”), o filme se passa em 1984 e mostra Stefan (Fionn Whitehead), um jovem programador que começa a questionar o próprio conceito de realidade enquanto adapta um romance de fantasia para videogame (o “Bandersnatch” do título). O grande diferencial da obra é o fato de se tratar de um filme interativo, ou seja, o público toma decisões no decorrer da trama, que influenciam e modificam os acontecimentos do filme, bem como seus múltiplos finais, que variam de acordo com as escolhas feitas pelo espectador.

Muito embora esse formato se trate de uma narrativa bastante comum em jogos de videogame, tais como “Until Dawn” e “Detroit: Become Human“, além dos jogos da produtora Telltale Games, ele nunca foi muito utilizado para filmes, tendo em vista a dificuldade e os desafios de implementá-lo nas tecnologias de mídia até então disponíveis. O próprio enredo do filme aborda a existência do livre-arbítrio e a limitação das próprias escolhas, em uma metalinguagem bastante evidente, porém diluída de maneira orgânica na trama.

O longa mantém, ainda, outros elementos característicos dos episódios da série, como a influência da tecnologia na vida das pessoas, o peso das escolhas (ou a obrigatoriedade delas) e suas consequências, além de questionamentos – com um quê de paranoia – sobre a própria realidade. No entanto, por se tratar do primeiro “episódio” ambientado em um passado definido, qual seja, a década de 80, “Black Mirror: Bandersnatch” abre um leque de discussões acerca do universo e da mitologia criados pela série.

Com o formato de antologia, no qual os episódios não se tratam de continuações diretas e possuem uma história fechada com personagens próprios, se mostrava bastante difícil saber se os capítulos se passavam em um mesmo universo. Por esse motivo, é bastante curioso que “Black Mirror: Bandersnatch” tenha diversas referências e easter-eggs dos episódios das temporadas anteriores anteriores, revelando fortes indícios de que estão todos conectados.

A principal teoria é de que “Bandersnatch” esteja situado no princípio da linha temporal da série, pois há diversas menções do surgimento de tecnologias que foram utilizadas em outros episódios. Em um dos diversos finais possíveis, é possível ver uma capa de jornal no qual aparece uma matéria sobre Stefan, e ao lado existem outras três matérias com referências a episódios diversos.

A primeira notícia anuncia uma “máquina de amor futurista”, possivelmente a tecnologia de encontros disponível no episódio da quarta temporada “Hang the DJ”; a segunda fala sobre a estreia do terceiro episódio da série Space Fleet, que aparece no premiado episódio “USS Callister”, também da quarta temporada; enquanto a terceira cita um “time de 15 milhões de talentos” que irá começar em um programa de caça talentos, em referência ao episódio “Quinze milhões de méritos“, da primeira temporada.

Em outro dos finais, aparece um jornal televisivo do futuro que informa que o jogo do Stefan está sendo recriado para a Netflix, enquanto nas notícias escritas na parte de baixo da tela é possível ler que a empresa “Granular está prestes a revelar um protótipo de drone polinizador”, em uma clara alusão aos eventos ocorridos no episódio final da terceira temporada, “Odiados pela nação”.

Nessa mesma cena ainda aparecem referências aos episódios “Momento Waldo”, com a notícia de que o personagem Liam Monroe entrou no Palácio de Buckingham, e de “Crocodile”, com a informação de que “a polícia britânica está testando um aparelho inovador de recuperação de memória”, além da menção ao primeiro episódio da série, “Hino Nacional”, com a notícia de o ex primeiro ministro Michael Callow venceu uma disputa de culinária.

No entanto, as principais ligações com os futuros episódios estão concentrados em elementos da própria narrativa de “Bandersnatch”, como no fato de que o local em que a psiquiatra de Stefan trabalha se chama Saint Juniper Medical Practice, em uma clara referência ao premiado episódio “San Junipero”, da quarta temporada.

Também é possível notar que a própria terapeuta de Stefan se chama Dra. R. Haynes, sobrenome esse que é o mesmo do Dr. Rolo Haynes, personagem do episódio “Black Museum”, e que também trabalhava em um hospital chamado Saint Juniper’s, demonstrando indícios de que ambos seriam parentes. Todavia, é na presença de elementos do episódio “White Bear” que foram gerados os principais debates de “Bandersnatch”.

No episódio da segunda temporada, surge uma mulher, que não se lembra de quem ela é, ao acordar em um lugar onde quase todo mundo é controlado por um misterioso sinal de televisão e junto com uma das poucas mulheres que não foram não afetadas, elas devem parar o transmissor White Bear enquanto algumas pessoas tentam matá-las. A grande surpresa aparece ao final do capítulo, quando a protagonista se vê em um palco e é revelado que ela é Victoria Skillane, condenada pelo sequestro e assassinato de uma criança junto com seu namorado. Victoria deu o tiro derradeiro na criança e dentro do palco lhe são mostrados vídeos que ela mesmo gravou durante o sequestro para enviar aos pais da refém.

Todo o ocorrido era, na verdade, um programa de entretenimento, que começou justamente quando ela acordou sem memória e saiu à rua onde acontece a perseguição. White Bear é um parque de diversões punitivo, onde criminosos são condenados a serem os protagonistas desse espetáculo sádico, e esse ritual é reproduzido infinitamente, criando na protagonista continuamente a sensação de medo e desespero. O episódio aborda uma revelante discussão acerca dos limites éticos do entretenimento, bem como entre a linha bastante tênue entre a justiça e a mera vingança.

A relação com “Bandersnatch” se dá em razão da aparição do mesmo símbolo utilizado em “White Bear”, e que aparece durante todo o filme, em especial em um momento no qual ocorre a quebra da quarta parede e o espectador revela a Estefan que ele na verdade faz parte de um programa do futuro, transmitido por um canal de streaming chamado Netflix, e que outras pessoas tomam suas decisões.

Vale ressaltar que em mais de um final, Stefan acaba matando o próprio pai e sendo preso, bem como em várias situações o espectador se vê obrigado a repetir escolhas anteriores. Com isso, o público passou a se questionar se na verdade Stefan estaria vivendo uma eterna e repetida punição pelo seu crime, sendo que o usuário que seria o responsável pelas escolhas que geram o sofrimento do personagem, em um interessante exercício metalinguístico que se mostra bastante característico da série. Esse tipo de punição também já foi mostrada anteriormente na série, no especial de natal “White Christmas”.

Essa teoria gera diversos questionamentos éticos e morais, tais como se seria justo manter Stefan em um sofrimento eterno como punição pelo seu crime, bem como se o público deve realmente se entreter de novo e de novo com o sofrimento do protagonista.

Esse tipo de abordagem narrativa utilizada na série já foi bastante utilizada, seja na TV, como no icônico programa “Além da Imaginação”, seja no cinema, com alguns filmes que “são muito Black Mirror”. Todos eles possuem alguns pontos em comum, como abordarem questões sociais, tecnológicas, existenciais, ou mesmo por contarem com plot twists – reviravoltas – inesperados.

Em “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” (2004), escrito por Charlie Kaufman e dirigido por Michel Gondry (“Rebobine, Por Favor”), o personagem de Jim Carrey busca remover as lembranças de sua ex-namorada, por meio de uma tecnologia especializada em apagar as memórias de antigos relacionamentos do cérebro do usuário.

Durante o longa, o protagonista experimenta todos os sentimentos de dor e coração partido, em um belo estudo da forma que a mente humana lida e processa as alegrias de um amor e a dor de um término. Essa temática já foi abordada no episódio da primeira temporada de “Toda a História de Você, que se passa em uma realidade alternativa na qual a maioria das pessoas possuem um implante atrás de suas orelhas que registra tudo o que fazem, vêem ou ouvem. Ele permite que as suas memórias sejam reproduzidas na frente dos olhos da pessoa ou em uma tela, um processo conhecido como “re-do”.

Em “Shut Up and Dance” o personagem principal é hackeado e chantageado a cumprir uma série de ordens – sendo algumas até mesmo crimes -, sob a ameaça de divulgação de um vídeo íntimo, enquanto em “Nosedive”, a protagonista vive em um mundo no qual as pessoas podem avaliar a popularidade das outras em uma rede social, com notas que variam entre uma e cinco estrelas, sendo que essa classificação influencia nas chances de se conseguir um emprego e moradia.

Ambos são episódios da terceira temporada de “Black Mirror” e tratam do poder que a tecnologia e as redes sociais atualmente possuem sobre a vida das pessoas, que buscam a aprovação da sociedade e o julgamento online positivo. Eles também realçam o lado negativo que tais tecnologias podem ter sobre os indivíduos, que assumem uma persona exclusiva para serem vistos por todos, seja no ambiente real ou no virtual.

De maneira similar, “Nerve: Um Jogo Sem Regras” (2o16), apresenta um aplicativo chamado Nerve, um jogo online no qual as pessoas precisam executar tarefas propostas pelos próprios participantes. O jogo é dividido entre observadores e jogadores, sendo que os observadores decidem as tarefas a serem realizadas e os jogadores as executam e ganham prêmios em dinheiro ou desistem e perdem tudo que ganharam no jogo.

O longa se mostra “muito Black Mirror” a partir do momento em que os protagonistas são forçados a cumprir todos os desafios propostos pelo jogo, sob pena de serem expulsos e terem dinheiro roubado de suas contas bancárias e dados pessoais expostos pelos hackers criadores do jogo. Além disso, evidencia o lado ruim do ser humano ao se esconder atrás de uma personalidade virtual, abandonando qualquer tipo de empatia apenas em prol de seu próprio entretenimento.

Lançado em 2014, a ficção científica “Ex_Machina: Instinto Artificial“, dirigido por Alex Garland (“Aniquilação”), mostra um jovem programador de computadores (Domhnall Gleeson), que ganha um concurso na empresa onde trabalha para passar uma semana na casa do brilhante e recluso presidente da companhia. Após sua chegada, ele percebe que foi o escolhido para participar de um teste com a última criação de Nathan: Ava, uma robô com inteligência artificial revolucionária.

O filme propõe diversos questionamentos acerca do quanto o avanço da tecnologia e as interações entre o ser humano e as máquinas, cada vez mais desenvolvidas. O real significado de o que caracteriza um humano e a lembrança de que a tecnologia, por mais que possua afeto das pessoas, é apenas tecnologia.

Em sua segunda temporada, o episódio “Volto Já”, Martha (Hayley Atwell) e Ash (curiosamente, também Domhnall Gleeson) são um casal que decide morar juntos. Um dia depois da mudança, Ash se envolve num acidente de carro fatal. No funeral, uma amiga de Martha recomenda um serviço novo que ajuda pessoas em luto a lidar melhor com a situação, criando um Ash “virtual” que se comunica com ela através de informações e dados obtidos de mídias sociais e da internet como um todo. Ela acaba se inscrevendo no serviço e, a partir daí, começa a ter vários embates pessoais e morais sobre manter – ou não – essa relação com essa inteligência artificial.

O capítulo questiona o que realmente significa ser humano e o quanto a tecnologia pode suprir sentimentos, além de trazer à tona o fato de que o Ash artificial foi criado a partir da personalidade que o Ash real queria demonstrar na internet, não se tratando necessariamente de quem ele era de verdade.

Por fim, “Ela” (2013), filme de Spike Jonze estrelado por Joaquin Phoenix, talvez seja “tão Black Mirror” quanto a própria série, mostrando um futuro próximo, e explorando a necessidade humana de ser amado e sua relação com as máquinas. A trama do filme segue um escritor solitário, que acaba de comprar um novo sistema operacional para seu computador. Para a sua surpresa, ele acaba se apaixonando pela voz desta inteligência artificial, dando início a uma relação amorosa entre ambos.

Repleto de questionamentos, o longa indaga qual seria o próprio conceito de relacionamento, e o quanto seria possível se apaixonar por uma inteligência artificial e o quanto esse sistema é capaz de reagir ou se somente segue um roteiro pré-definido. O que se torna o relacionamento apresentado em “Ela” assustadoramente real é o fato das relações contemporâneas e suas interações se darem cada vez mais através da tecnologia.

Todas essas obras, embora causem algum choque entre o público, acabam sendo tratadas de forma geral como mero entretenimento, situado em futuro distante e distópico. Talvez por esse fato elas não causem o desconforto que deveriam, bem como não consigam transmitir a verdadeira mensagem que é: esse futuro já é a realidade. O que “Black Mirror” e as demais criações fazem é somente exacerbar uma determinada característica por meio de uma representação alternativa, porém sempre deixando claro que aquela história poderia claramente ser ambientada nos tempos atuais.

As próprias escolhas efetuadas pelo espectador durante a experiência de “Bandersnatch” são tratadas de forma totalmente fria, meramente um meio para descobrir mais daquele enredo, mesmo que essa escolha seja entre enterrar ou esquartejar um corpo.

O próprio criador da série e roteirista da maior parte dos episódios, Charlie Brooker, já confirmou que sua inspiração para a série vem do presente, e não da possibilidade de um futuro:

“Se a tecnologia é uma droga, e parece mesmo uma droga, então quais são os seus efeitos secundários? Esta zona, entre o prazer e o desconforto, é onde ‘Black Mirror’ opera. O “black mirror” (espelho negro) do título é o que encontramos em todas as paredes, em todas as secretárias, na palma de todas as mãos: a tela fria e brilhante de uma televisão, de um monitor, de um smartphone”.

Além disso, existe uma grande preocupação se o constante avanço tecnológico – que passa a sensação para o ser humano de que ele possui cada vez mais liberdade sobre suas escolhas – não estaria, na verdade, diminuindo o livre-arbítrio. Obras como “Matrix” (1999) e o “O Show de Truman – O Show da Vida” (1998) já lidaram com esses temas e a possibilidade de consciência e libertação.

O historiador Yuval Noah Harari, ele próprio um grande fã de “Black Mirror”, já expressou suas apreensões com o tema. Para ele, é um desatino que as pessoas abram mão tão facilmente de seus dados e privacidade para os aplicativos de relacionamento, vendas ou busca. Além disso, Harari teme que a idolatria da informação pode substituir o humanismo liberal e tornar-se a “religião” do século 21, com grave ameaça para aquilo que a ciência não consegue explicar com seus algoritmos: a consciência.

A própria série resolveu abordar essas indagações de forma mais direta em “Bandersnatch”mostrando como Stefan avança cada vez mais fundo nos questionamentos sobre livre-arbítrio, independente das escolhas efetuadas pelo espectador. Esse pensamento é perfeitamente representado pela fala do personagem Colin, que menciona o jogo Pac-Man e afirma que ele somente possui a ilusão da escolha, tendo na verdade apenas que consumir e fugir de seus próprios demônios, para seguir pela única saída e retornar para onde estava.

E o próprio usuário, seja lá quais escolhas efetue ao longo da experiência, possui apenas a ilusão de livre-arbítrio, já que o próprio filme admite ter “escolhas certas”, fazendo com que o espectador retorne para esses momentos para fazê-las. Então, por meio da tecnologia já existente (o próprio serviço de streaming), o ser humano segue por uma experiência na qual possui a ilusão de fazer escolhas, apenas vendo o sofrimento de um personagem fictício, quando na realidade apenas está vendo uma própria representação de si mesmo abrindo mão das próprias escolhas em prol de uma maior interação tecnológica.

E isso, é muito Black Mirror.

Fique ligado no Cinema Com Rapadura e leia nossa crítica sobre “Black Mirror: Bandersnatch”!

Giovanni Mosena
@giovannimosena

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