Do Riso ao Susto: A figura mítica do palhaço no cinema
Nem só da risada se alimentam os palhaços. Alguns preferem lágrimas, outros o medo. E nessa mistura de emoções, o público pode ser pego de surpresa com uma criatura que nem sempre deixa claro quais são suas intenções.
Poucas figuras carregam tantos significados e sensações quanto o palhaço. Seu visual exagerado e seu comportamento imprevisível podem ser responsáveis pelo riso bobo assim como pelo susto inesperado. É uma figura que existe apenas como personagem, mas ao mesmo tempo é presente no nosso cotidiano. Do limiar entre o real e o fictício, o palhaço parece pertencer aos palcos do mundo. E desse posto, as telas de cinema são a próxima parada.
Ao longo dos anos, fomos apresentados a diversas interpretações desta criatura mística. Do melódico palhaço Tito em “Ria, palhaço, ria” até o anárquico Coringa de “Batman: O Cavaleiro das Trevas”, o cinema sempre conseguiu aproveitar toda a variedade criativa dos palhaços. Talvez seja pela forma como o ambiente natural desta criatura (o circo) seja algo tão semelhante ao mundo da sétima arte. Federico Fellini (“A Doce Vida“, “Os Palhaços”) comenta sobre essas semelhanças em seu livro “Fazer um Filme”:
“E de fato o cinema, quero dizer, fazer cinema, não é como a vida no circo? Artistas extravagantes, operários musculosos, técnicos, especialistas estranhos, mulheres bonitas a ponto de nos fazer desmaiar, costureiros, cabeleireiros, gente que vem de todos os cantos do mundo e que se entende numa babel de línguas, e aquelas invasões típicas de um exército de patifes de praças e ruas, numa desordem caótica de convocações, gritos, irritações, brigas e silêncios repentino obtido por meio de um urro; e por trás dessa desordem aparente, um programa abandonado, um rolo de filme por milagre sendo respeitado, e o prazer de estar junto, de trabalhar junto e de viajar como uma família destruída realizando o ideal de convivência harmoniosa, de uma sociedade utópica… tudo isso, que é o que acontece de maneira prodigiosa durante a realização de um filme, não é a vida do circo?”
Então talvez seja por essa proximidade que o palhaço se sente tão à vontade no cinema. Seja para nos divertir, emocionar ou até mesmo para nos assustar. Vamos ver um pouco mais sobre como o cinema abraçou o palhaço, e como o palhaço influenciou o cinema.
Ria, Palhaço, Ria (1928)
Um dos primeiros casos marcantes do uso do palhaço no cinema é o do “Ria, Palhaço, Ria”. Dirigido por Herbert Brenon (“O Estranho Caso do Sargento Grischa”), o filme merece ser citado pela forma como o personagem é apresentado. Tito (o palhaço) encontra uma menina abandonada e a chama de Simonetta. Quando ela cresce, torna-se artista de circo até que um dia conhece o conde Luigi Ravelli, que se apaixona por ela. Algum tempo depois, Ravelli consulta um médico por conta de seus acessos incontroláveis de riso, e é aí que conhece Tito, que procura ajuda para seus acessos incontroláveis de choro.
Além do filme ter servido de inspiração para Alan Moore criar a piada do Pagliacci na HQ “Watchmen”, o filme questiona a figura sempre sorridente do palhaço. E, ao mesmo tempo, nos permite refletir sobre a forma como tantos comediantes sofrem de depressão. Como se a comédia os impedisse de ter seus próprios momentos de tristeza.
Os palhaços que nos fazem chorar
Uma das formas mais interessantes de se usar um palhaço é através do drama. Mesmo sendo conhecidos por nos fazer dar risada, muitas vezes é através das lágrimas que eles se comunicam com o público.
No drama mudo de 1924, “Lágrimas de Palhaço”, o diretor sueco Victor Sjöström (“A Carruagem Fantasma”) conta a história de um cientista que, após ser traído por seu patrono ridicularizado diante da comunidade científica, resolve se tornar um palhaço, executando um número que consiste em ser esbofeteado por todos os outros palhaços a cada vez que tenta falar alguma verdade.
O filme é uma adaptação da peça do dramaturgo russo Leonid Andreyev, e conta com uma maravilhosa atuação de Lon Chaney (“O Corcunda de Notre Dame”) no papel principal. Além de ser uma das grandes inspirações para o também sueco Ingmar Bergman, este filme que aborda temas típicos da cultura nórdica, como a humilhação, a tragédia individual e o tom amargo e pessimista foi o primeiro longa metragem da MGM.
E falando em Bergman, o diretor foi responsável pelo filme “Na Presença De Um Palhaço”, de 1977. No longa, que se passa em 1925, o engenheiro Carl Åkerblom, fervoroso admirador do compositor Schubert, é internado em um hospital psiquiátrico em Uppsala. De seu quarto, ele alimenta o revolucionário projeto de inventar o cinema falado. Com a ajuda do professor “louco” Osvald Vogler, o diretor Åkerblom improvisa uma história de amor contando os últimos dias de Schubert. Além de ter uma inspiração de “Lágrimas de Palhaço”, o título refere-se a uma visão da morte que toma a forma de um palhaço, que persegue o personagem principal.
Os palhaços que nos fazem rir
Mas é no riso que está a verdadeira identidade do palhaço. Desde dos tempos mais longínquos, o objetivo principal desta criatura está focado em nos provocar uma gargalhada. E se não for possível, nos tirar de uma situação difícil, mesmo que temporariamente, pode ter o mesmo efeito.
É o caso do filme “Sonata Silenciosa” de 2010. Dirigido por Janez Burger, o filme conta a história de um homem que mora sozinho com seus filhos em uma casa aos pedaços. Sua esposa foi morta durante uma batalha militar e ele está à espera de um novo ataque. Mas ao invés disso, uma caravana errante chamada Circus Fantasticus se estabelece próxima a sua casa. O filme é inteiro sem diálogos, o que torna ainda intensa cada uma das cenas. Apesar do alívio ao momento de tensão que a família vive ser causado por todo o circo, a figura dos palhaços é significativa, causando belas reações do público.
Os palhaços que nos assustam
Apesar da figura do palhaço ser conhecida por causar o riso, o cinema parece se aproveitar de um detalhe muito mais sinistro: o potencial para o medo. São diversos os filmes que se aproveitam desse lado do arlequim, mas não é ao acaso. O medo de palhaço, ou coulrofobia, é muito comum e não tem como negar que por trás daquele sorriso existe algo de muito assustador.
Desse potencial, surgem diversos filmes. É o caso de “O Homem Que Ri”, dirigido por Paul Leni (“A Borboleta Dourada”). Baseado no livro homônimo escrito por Victor Hugo, este filme mudo de 1928 conta a história de Gwynplaine, herdeiro de um ducado que, quando garoto, foi sequestrado e desfigurado por ordem do rei. O resultado deixa-o com o rosto esculpido num perpétuo sorriso macabro.
Além de inspirar a criação de outro famoso palhaço, o Coringa da DC Comics, o filme também é referenciado por Brian De Palma em “Dália Negra” (2006). Apesar de hoje não ter o mesmo efeito, na época o filme foi considerado como um dos grandes filmes de horror, e a atuação de Conrad Veidt (“Casablanca”) como Gwynplaine é marcante.
Outro filme a ser citado é o “Palhaço Assassino” de 1989. O longa faz parte do último respiro da onda de Slasher Movies da década de 1980 e conta a história de três assassinos profissionais que, após se apropriarem das roupas de palhaços, passam a aterrorizar a vida de dois jovens. Apesar de já ter nascido no final de uma geração, este filme tem sua relevância e ótimos momentos em que a figura ambígua do palhaço nos deixa sem saber qual será a reação dos assassinos. Isso faz com que a obra consiga criar uma boa atmosfera de tensão.
Outros dignos de citação: “Palhaços Assassinos do Espaço Sideral” (1988), com uma interessante sátira aos gêneros de ficção e terror; “Rejeitados Pelo Diabo” (2005) e “100 Tears” (2007).
It, o palhaço que se alimenta dos nossos medos
E por fim temos ele, Pennywise. Criado por Stephen King em seu clássico livro “A Coisa”, este palhaço na verdade não tem apenas essa forma. Ele se manifesta dos medos das pessoas para assim poder se alimentar. Trata-se de uma criatura vinda de outra dimensão, mas que se adaptou muito bem por aqui.
O livro – o mais longo em volume único escrito por King – foi adaptado pela primeira vez como uma minissérie de dois episódios, em 1990. Tim Curry (“Caçada ao Outubro Vermelho”) assumiu o manto de Pennywise e conseguiu entregar um palhaço inocente e assustador ao mesmo tempo (muito próximo do que é descrito no livro). A minissérie buscou se focar no medo a partir de cenas assustadoras. Apesar de ter seus méritos, hoje é uma obra relativamente datada e o final é muito criticado.
A nova adaptação, dividida em dois filmes, buscou se manter mais fiel ao terror como criado no livro, construindo cada um dos personagens e apresentado seus temores. Assim, o medo que é criado se baseia muito mais no envolvimento do que no susto. Bill Skarsgård (“Atômica”) é o Pennywise desta vez, e numa versão muito mais macabra. Seu visual causa incômodo e ele com certeza não é um palhaço que você gostaria de ter por perto.
Sentiu falta de mais algum palhaço? Qual te assusta mais ou qual mais te fez rir? Vai ter coragem de assistir o novo longa nos cinemas? Deixe um comentário!