Além do legado: por que Star Wars também precisa de novos pontos de vista
Ao contratar alguém que nunca havia visto "Star Wars" para sua sala de roteiristas em "The Acolyte", Leslye Headland acabou se tornando notícia pelos motivos errados.
Na última semana, uma entrevista da roteirista Leslye Headland fez a comunidade de fãs de “Star Wars” acender o sinal de alerta. Falando ao The A.V. Club, ela contou sobre sua experiência como showrunner da série “The Acolyte“, que está produzindo dentro do universo da franquia para o streaming Disney Plus. Entre as novas informações, a que deixou parte dos fãs preocupados foi ela ter contratado para sua sala de roteiristas uma pessoa que nunca tinha assistido nada de “Star Wars”.
O fandom de “Star Wars” é notadamente um dos mais tóxicos da cultura pop, e a repercussão da informação seguiu essa tendência. De gente criticando Headland por sua orientação sexual e ideológica até tentar ressuscitar seu passado como assistente na The Weinstein Company para desqualificá-la, deu para ver de tudo. Mas a roteirista é fã declarada da franquia iniciada por George Lucas, tem bagagem para falar dela além dos filmes e justificou exatamente o porquê de contratar alguém que não teve contato com a ópera espacial antes. Segue sua fala:
“Teve uma [roteirista] que literalmente falou, ‘nunca vi nenhum deles, nunca vi nenhuma mídia de ‘Star Wars.’ […] Foi ótimo, pois eu gostaria muito de saber a opinião de alguém que não está imerso nesse fandom o que ela achou da apresentação que fizemos. Então, enquanto ela fazia o trabalho dela e fazia muita pesquisa, ao mesmo tempo ela era alguém que poderíamos chegar e perguntar, ‘okay, se tirarmos todos os significados, e isso for a versão ‘Star Wars’ de X, o que significa para você?’ E ela poderia me dar feedback: ‘bom, fico pensando no que está acontecendo com esse personagem, e, nessa cena, me pergunto por que Fulano não está falando não-sei-o-quê.'”
Sendo assim, é realmente um pecado tão grande Leslye Headland contratar alguém com uma perspectiva nova sobre “Star Wars”? O histórico recente de produções da franquia mostra, na verdade, que não, e que um olhar que não esteja viciado como o dos fãs pode sim fazer muito bem.
“Parece que não vou a lugar nenhum.”
Lembra de ‘Rogue One’?
Desde a aquisição da Lucasfilm pela Disney, é raro uma produção cinematográfica de “Star Wars” não precisar passar por mudanças de bastidores ou troca no comando. Vários exemplos saltam à memória de imediato, de “Han Solo” a “A Ascensão Skywalker“, mas vamos focar no mais bem sucedido deles: “Rogue One“.
O filme de Gareth Edwards precisou passar por extensas refilmagens e teve o final alterado de forma significativa – Ben Mendelsohn, que interpreta o vilão Orson Krennic, chegou a afirmar que “existem versões completamente diferentes“. Cenas impactantes dos trailers, como Jyn Erso (Felicity Jones) encarando um TIE Fighter, sequer apareceram na versão final.
Mas, para bem ou para mal, o filme foi sucesso de público e crítica, e isso se deve à intervenção de uma pessoa que também nunca se interessou por “Star Wars”: Tony Gilroy. Ele foi chamado para ajustar o roteiro do terceiro ato e coordenar as refilmagens, transformando “Rogue One” no sucesso que é. Segundo ele, inclusive, sua abordagem em relação ao que precisava ser feito foi bem simples e objetiva:
“Nunca me interessei por ‘Star Wars’, na verdade. Então não tinha nenhuma referência para isso. Não tinha medo nenhum. […] Mas esse é o tipo de filme em que, gente, olha só, todo mundo vai morrer. Então é uma história sobre sacrifícios.”
Não vem ao caso se alguma das versões que Mendelsohn cita teria sido melhor ou pior do que a que foi lançada nos cinemas – graças à Força não há ninguém por aí fazendo campanha por um “Edwards Cut” ou coisa do tipo. O fato é que o “Rogue One” que assistimos foi um sucesso graças à intervenção de Gilroy, alguém versado na arte de contar histórias e distante o suficiente de “Star Wars” para olhar friamente para a situação e constatar o que era preciso fazer. Deu tão certo, aliás, que ele é o showrunner da série spin-off sobre o espião Cassian Andor (Diego Luna), para o Disney Plus. Você acha isso ruim? Não? Nem eu.
Olhares viciados
Atualmente, “Star Wars” é visto como um case de muito sucesso no streaming com “The Mandalorian“, mas como um fracasso nos cinemas com a Trilogia Sequel. A primeira soube utilizar a mitologia da série e construir algumas das histórias mais empolgantes dessa galáxia muito, muito distante, enquanto a outra acabou se perdendo na reverência ao material original e relegando sua própria história a algo secundário.
Não valorizar a própria história que se pretende contar é talvez o maior pecado que um artista do ramo pode cometer. Isso não é exclusividade de “Star Wars”, aliás. A franquia “Animais Fantásticos” vem sofrendo do mesmo problema nas mãos de J.K. Rowling. Ela própria a criadora daquele universo com “Harry Potter” e trabalhando com a mesma equipe desde sempre, não é de se espantar que “Os Crimes de Grindelwald” acabasse se resumindo a revelações familiares como “Fulana é uma Lestrange” ou “Beltrano é um Dumbledore”. Quase como “A Ascensão Skywalker“, desesperado para amarrar todos os personagens do único jeito que “Star Wars” parece saber, que é pelo sangue.
“Muito eu esperei… Para minha neta vir para casa.”
Mesmo “The Mandalorian“, apesar de todo o frescor e liberdade que o streaming lhe proveu, sofre um pouco desse mal. Por mais legal que seja ver Luke Skywalker de novo (e é legal demais, veja bem), colocá-lo em qualquer história ambientada entre a Trilogia Original e as Sequels é quase como matar uma formiga com um tiro de canhão, tudo para alcançar uma catarse tão grande que acaba tirando o brilho da história do Mandaloriano (Pedro Pascal) e de Grogu, que é a que importa ali.
Talvez a questão aí seja a criatividade. Em um artigo ao Bustle defendendo “Cruella” como um dos filmes mais divertidos do ano, a escritora Dana Schwartz levantou um ponto interessante a esse debate: “o fato de um filme ser baseado em uma propriedade já existente não o torna menos criativo“. E ela está certíssima, pois mesmo “The Mandalorian” joga luz a facetas importantes de “Star Wars” que vinham sendo ignoradas pelos filmes.
Vale apontar, contudo, que o oposto também vale, e mesmo uma história contada em um universo já estabelecido como esse também tem responsabilidade de trazer coisas novas à mesa. “The Mandalorian“, por exemplo, não faz parte da Saga Skywalker, mas agora está irrevogavelmente ligada a ela, já que, em último caso, Luke Skywalker pode sempre salvar o dia.
“Sou Luke Skywalker, estou aqui para te resgatar.”
Conteúdo novo, velhas mazelas
Mesmo criando conteúdo novo, o chamado “Filoni-verse” – que engloba as séries de “Star Wars” para Disney Plus chefiadas por Dave Filoni e Jon Favreau – está ambientado em uma era da galáxia que já conhecemos e para a qual já temos referências. Estamos próximos demais da Trilogia Original, e já sabemos que tudo vai culminar na ascensão da Primeira Ordem nas Sequels.
Não é o caso com “The Acolyte”. A série de Leslye Headland será ambientada cerca de 50 anos antes de “A Ameaça Fantasma“, em uma era completamente nova para “Star Wars” chamada Alta República, que ainda está sendo construída pela Lucasfilm através de livros e quadrinhos. Tudo que sabemos sobre ela até agora é que irá contar uma história do Lado Sombrio da Força no momento em que os Jedi estão no ápice de seu poder. É uma oportunidade de ouro de explorar novas possibilidades para esse universo, e é quando histórias bem contadas e bem amarradas se fazem ainda mais importantes, pois não há figurões atrás dos quais se esconder para disfarçar a falta de criatividade.
“Eu sou todas as vozes que você já ouviu na sua cabeça.”
Houvesse alguém do lado com um olhar fresco e não tão apegado aos símbolos de “Star Wars”, quem sabe J.J. Abrams tivesse abraçado o pé-na-porta narrativo que Rian Johnson propôs com “Os Últimos Jedi” em vez de ressuscitar cadáveres que pudessem servir de muleta para um filme ruim, como fez com Palpatine em “A Ascensão Skywalker“. O pecado das Sequels não está no ato de ousar e tentar ser criativo – até porque isso foi tentado, sim, com o filme de Johnson -, mas em se preocupar com a forma que nós, o público, lidamos com o que vemos, já que, atualmente, entramos nos cinemas com sete pedras na mão, prontos para jogá-las na tela quando o fator “criatividade” não nos agradar.
A mesma chance que “The Acolyte” tem agora, as Sequels já tiveram, mas jogaram fora por medo da repercussão gerada por uma parcela pequena, mas barulhenta do fandom. Leslye Headland é uma roteirista experiente, com a série de sucesso da Netflix, “Boneca Russa”, marcada pela fuga do convencional, e o fato de ela trazer alguém que nunca teve contato com “Star Wars” para sua sala de roteiristas é mais uma prova dessa que é sua principal característica – algo que sempre vai incomodar quem tem medo de coisas novas.
As portas da galáxia
Falando em oportunidade de ouro, é importante mencionar uma das características mais legais de “Star Wars”: essa é uma franquia para a qual existem diversas portas de entrada. Em uma simples busca na internet é possível encontrar pessoas que se identifiquem mais com as séries de animação do que com os filmes, por exemplo, ou que, apesar dos pesares, têm as Sequels como a “sua” trilogia dos cinemas. Por isso, não convém limitar o escopo da série a sempre os mesmos mitos e personagens.
Para uma série como “The Acolyte”, ambientada em uma parte da galáxia sobre a qual sabemos tão pouco, a melhor coisa é ter alguém desapegado na sala de roteiristas, que foque no que é importante para se contar uma boa história. Porque, mesmo sem conhecer “Star Wars” a fundo, essa pessoa continua sob supervisão de uma fã de carteirinha como Leslye Headland (se bem que, a essa altura, podem ficar tranquilos, essa pessoa certamente já se inteirou pelo menos do essencial).
Poucas marcas atualmente têm um potencial de expansão tão grande quanto “Star Wars”. A maior prova disso é que, mesmo após um fracasso, ela continua relevante a ponto de levantar manchetes sensacionalistas internet afora por algo tão pequeno quanto “alguém não assistiu aos filmes” vir à tona. Se Headland não tivesse mencionado isso, provavelmente nem teríamos ficado sabendo, e os fãs mais raivosos teriam que encontrar outros motivos para não gostar do seu trabalho.
“Eu não ligo.”
Mas, se quiser se manter relevante no futuro, agora é a hora de “Star Wars” investir nessa que é uma nova porta de entrada para sua galáxia. É a hora de expandir, enquanto “The Mandalorian” se contém. É hora de olhar para fora, para não repetir o erro da Trilogia Sequel de olhar demais para dentro. É hora de contar novas histórias, e não há ninguém melhor para fazer isso em “The Acolyte” do que uma pessoa aberta como Leslye Headland e sua sala de roteiristas.
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