O expediente de incertezas e a jornada cinematográfica da Ancine
Os anseios e receios da instituição responsável por fomentar o cinema brasileiro.
“Não posso admitir que, com dinheiro público, se façam filmes como o da Bruna Surfistinha. Não dá!”. A fala do Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, em julho deste ano, acendeu um debate complexo sobre o papel do Estado como fomentador de cultura e os limites desse incentivo: qual é a importância da Ancine para o cinema nacional e qual impacto que a eventual extinção do órgão poderia causar para a cultura do País?
1º ato: A Central do cinema no Brasil
O cinema brasileiro é secular. As primeiras produções nacionais foram rodadas entre 1897 e 1898, encabeçadas pelo cinegrafista italiano Affonso Segretto. As imagens da Baía de Guanabara (RJ) filmadas pelo cineasta deram origem à celebração da data 19 de junho como Dia do Cinema Brasileiro. Naquele dia “Vista da Baía de Guanabara” dava início a uma história épica, digna de roteiros conspiratórios hollywoodianos.
O tempo se passou e aos poucos a produção se estabilizou. Em 1908, já existiam vinte salas de cinema no Rio. Naquela época, os primeiros filmes de ficção começavam a ser realizados, normalmente pelos próprios proprietários desses cinemas – frequentemente adaptações de crimes divulgados pela imprensa. Apesar da vanguarda, até a Primeira Guerra Mundial o cinema mundial era ocupado majoritariamente pela Europa e o Brasil seguia a tendência. Foi só depois da Guerra que os Estados Unidos, enfim, ganharam mercado.
Ambientados nesse universo amplamente dominado pelo produto estrangeiro, o cinema brasileiro enfrenta, desde sempre, dificuldades. Mas alguns momentos foram de perspectiva e esperança. No começo dos anos 1930, por exemplo, quando os filmes falados surgiram, as produtoras internacionais enfrentaram dificuldades de infraestrutura das salas e de idioma para se consolidar no Brasil.
Houve até um certo momento de fortalecimento da produção nacional, mas foi rápido. Não demorou para que as distribuidoras norte-americanas investissem dinheiro na adaptação dessas salas e o povo brasileiro, resiliente como é, logo se acostumasse a ler legendas.
Entre o final dos anos 1930 e dos anos 1950, a fé no cinema nacional reapareceu. A Chanchada, com produções de baixo custo e um empurrãozinho de Luiz Severiano Ribeiro, dono do maior circuito de cinema da época, ganha espaço. As comédias musicais, com grande apelo popular e artistas de renome da rádio, como Oscarito, Grande Otelo, Sílvio Caldas e Emilinha Borba, conquistaram o público.
No entanto, o desgaste do gênero por décadas, alinhado ao desenvolvimento da TV no País e ao surgimento do Cinema Novo fizeram as chanchadas perderem espaço. Novamente, entre as décadas 1960 e 1970, um novo alento. Impulsionado pela parcela mais jovem da população, o Cinema Novo apresentava o Brasil de forma crua e realista. A famosa estética da fome se notabilizou pela crítica social e por ganhar reconhecimento em diversas premiações internacionais.
Houve, também, uma série de acontecimentos relacionados à produção nacional fora do eixo Rio-Paulo, mas, assim como os blockbusters hollywoodianos, o roteiro de suas trajetórias foi semelhante. Empolgação inicial, produções capengas, certo sucesso local e, finalmente, a derrota para o produto estrangeiro dominante no Brasil.
Neste cenário de intensa disputa entre muitos atores, o Estado, para o bem ou para o mal, nunca esteve indiferente. “Em todos os momentos de significativa industrialização do cinema brasileiro, aconteceram em paralelo a – ou estimulados por – atuações estatais”, explica Pedro Henrique Ferreira, professor de Cinema Brasileiro da PUC-Rio e crítico da Revista Cinética.
“Ao longo dos anos 1950, as associações de realizadores perceberam que o debate sobre a participação do Estado era essencial para a sobrevivência da atividade diante de um mercado predominantemente dominado pelo produto estrangeiro”, elucida o professor. Ele lembra que a partir de 1932 passaram a valer leis de exibição – na época de cinejornais – que persistem até hoje sobre outros moldes, além da criação de entidades reguladoras para o cinema. Além disso, a partir de 1936, houve o fomento delas com a criação do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE).
“Estas atuações favoreceram à criação dos primeiros estúdios de iniciativa privada do país, e um certo boom da produção nas décadas seguintes”, justifica Ferreira. “Ao longo dos anos 1950, associações de realizadores notaram que o debate sobre a participação do Estado era essencial para a sobrevivência do cinema em um mercado dominado pelo produto estrangeiro”, continua. Como resultado destes esforços, surgiriam ao longo dos anos 1950 e 1960 algumas comissões, grupos de estudo e entidades.
Como explica Ferreira, uma delas, o Instituto Nacional de Cinema (INC), estabeleceu, durante o primeiro governo militar, medidas de fomento diretos à atividade e a criação de lei de remessas onde um fundo era criado à partir da taxação dos filmes estrangeiros. O anseio do Estado, que, no princípio era garantir o mercado norte-americano, tornava-se uma ação para alimentar o desejo nacional de profissionalização.
O movimento mais significativo, porém, viria em 1969, no seio da Ditadura Militar. Com a criação da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme), o Estado passa a custear e fomentar a produção e distribuição de filmes brasileiros. A situação era tão inusitada que o filme “Pra Frente, Brasil” foi financiado pela Embrafilme e, apesar do diretor, Roberto Farias, ter sido presidente da instituição no auge da ditadura, a obra foi proibida pela censura.
Ainda assim, o órgão, vinculado ao Ministério da Educação e Cultura, impulsionou o lançamento de mais de 200 filmes nacionais e, em 1975, o Brasil quebrava recordes de salas em funcionamento e ingressos vendidos. Em 1980, o público para filmes brasileiros chegou a ocupar 35% do mercado nacional e a média de espectadores alcançou uma média de aproximadamente 239 mil, 30 mil a mais que filmes estrangeiros. “Com a Embrafilme chegamos a uma das décadas mais prolíficas da nossa História”, aponta Ferreira.
São diversas as justificativas para o declínio da instituição, como a redução da capacidade de investimento do Estado, a agressividade do cinema norte-americano para conquistar os mercados latinos após seu progresso técnico e a difusão dos aparelhos de videocassete, dentre outros. Há, também, acusações de clientelismo, desperdício e má administração, como apontou Rui Nogueira, em texto publicado na Folha de S.Paulo em 1998.
“A ausência de critérios minimamente objetivos para definir a concessão de financiamentos fez da ‘Embra’ uma repartição esquizofrênica. A fama dos tempos do Cinema Novo, em alguns casos, e o trânsito fácil entre a burocracia da administração cultural ajudavam a escalar os cineastas com acesso prioritário ao financiamento. A maioria das produções era deficitária e nada impedia que os produtores de prejuízos assinassem novos contratos”, argumentava Nogueira.
Atualmente, as funções de distribuidora são responsabilidade da iniciativa privada e o incentivo estatal aos filmes brasileiros é promovido pela Lei de Audiovisual. Uma nova forma de estímulo foi estruturada. Com recém-completados 18 anos, a Agência Nacional do Cinema (Ancine), órgão de fomento, regulação e fiscalização da indústria cinematográfica nacional, nasceu no dia 6 de setembro de 2001.
2º ato: A Tropa de Elite do cinema nacional
A Ancine foi criada no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, vinculada ao extinto Ministério da Cultura, com sede e foro no Distrito Federal, escritório central no Rio de Janeiro e escritório regional em São Paulo. Em 2019, o órgão passou para o Ministério da Cidadania. A agência é responsável por desenvolver e regular o setor audiovisual brasileiro atuando na cadeira produtiva e no investimento privado.
Entre outras atividades, a Ancine também promove o combate à pirataria, aplica multas e sanções e regula ações de incentivo e proteção. E ela não se aplica apenas ao cinema, mas interfere, também, na indústria de games e a modernização do parque exibidor do país, por exemplo.
“A Ancine é a principal fomentadora do cinema brasileiro. Ela financia praticamente toda a atividade por meio da gestão do Fundo Setorial do Audiovisual, criado à partir de amplas contribuições e taxações de produtos audiovisuais exibidos nos mais diversos formatos”, pontua Pedro Henrique Ferreira.
Um dos pontos de maior polêmica da Ancine envolve a Lei do Audiovisual (8.685/93), política de incentivos fiscais que permite a empresas e cidadãos que apliquem uma parte do imposto de renda em projetos audiovisuais. Uma cineasta ou produtora interessada em ter seu projeto financiado precisa submetê-lo para a avaliação da agência.
Os avaliadores da Ancine analisam o projeto e a documentação para verificar se a proposta está clara. Eles não devem julgar o conteúdo, temática ou mérito da ideia apresentada. Se for aprovado, o autor do projeto deve visitar empresas em busca de doações e patrocínios que o viabilizem. Além da dedução de até 4% para pessoas jurídicas e 6% para pessoas físicas, a empresa ainda ganhará divulgação como apoiadora da cultura.
A partir daí, o cineasta deve filmar e editar seu filme em 12 meses, e oferecer uma contrapartida social ao público, como distribuição de ingressos a preços reduzidos ou sessões gratuitas em comunidades carentes. Depois do lançamento, ainda é necessário prestar contas ao governo falando onde e como o dinheiro foi gasto, por meio de notas fiscais, cópias de cheques, planilhas de custos etc. Além de provas que o filme realmente existiu, como críticas na imprensa ou reportagens.
Prova desse rigoroso crivo foi o cancelamento do lançamento de “Marighella” no Brasil. O longa, que estreou no Festival de Berlim, na Alemanha, e passou por vários Festivais importantes ao redor do mundo, era uma das estreias mais aguardadas e polêmicas do ano. Os produtores da obra dirigida por Wagner Moura decidiram cancelar o debute – marcado para o 20 de novembro, Dia da Consciência Negra – por “não conseguirem cumprir a tempo trâmites exigidos pela Ancine”.
“Sem a Ancine, o dinheiro público e o apoio governamental que é dado a todas as principais atividades econômicas do nosso país, não haverá mais produção audiovisual brasileira”, disse o produtor de cinema Marcus Ligocki Júnior em carta aberta ao presidente, no final de julho. Naquela época, Bolsonaro, em transmissão ao vivo no Facebook, criticou o órgão, sugeriu transferir a sede do Rio de Janeiro para Brasília e disse que buscaria sua extinção.
Porém, aquela não era a primeira manifestação pública do governo sobre o tema e não seria a última. O presidente já tinha sugerido colocar um filtro nas produções e entrado em um dos embates mais acalorados do seu governo até o momento: “Bruna Surfistinha”. O filme que conta a história da ex-prostituta Raquel Pacheco, interpretada pela atriz global Deborah Secco, foi protagonista de um crise nacional.
Na opinião do Presidente, dinheiro público não deveria ser usado para fazer obras audiovisuais. “Quem, no Brasil, quiser fazer filmes, como Bruna Surfistinha, fique à vontade. O que não podemos admitir é fazer com o dinheiro público. Isso é inconcebível“, explicou em uma live onde contou que ia buscar a extinção da Ancine. A obra, lançada em 2011, financiou R$ 500 mil, cerca de 10% do custo total com produção.
Estes não foram os primeiros ataques que a Ancine recebeu desde sua fundação, mas foram os mais incisivos e ameaçadores. A instituição nunca pareceu estar tão em xeque. De lá para cá, um edital que selecionava séries sobre diversidade de gênero e sexualidade para TVs públicas foi suspenso, o que levou o então secretário de Cultura, Henrique Pires, a pedir demissão por achar que os filtros indicados simbolizavam censura; a Ancine definiu a exoneração de 30 servidores e medidas para cortes de gastos; e a participação da sociedade civil no Conselho Superior do Cinema foi reduzido.
Na última quarta-feira, a Ancine voltou aos holofotes após Bolsonaro apresentar um projeto de lei que prevê, em 2020, um corte de quase 43% do orçamento do Fundo Setorial do Audiovisual. O valor de 415,3 milhões seria a menor dotação nominal para o fundo desde 2012, quando recebeu R$ 112,36 milhões.
Ato 3: Cidade de Deus e da pouca verba para o cinema
Desde o início das polêmicas, grande parte dos cineastas e outros profissionais envolvidos no mercado audiovisual se colocaram contra o embate do governo federal com a Ancine. O produtor de cinema Marcus Ligocki Júnior, em carta aberta, afirmou que sem a atuação do órgão, dinheiro público e apoio governamental – que é dado as principais atividades econômicas do país – não haverá mais produções brasileiras.
“Sem a infraestrutura do setor audiovisual, o Brasil perderá competitividade nos demais setores da economia por não conseguir produzir e distribuir globalmente conteúdos capazes de entreter, emocionar e conquistar o afeto dos mais diversos consumidores e tomadores de decisão ao redor do mundo”, disse o produtor.
Marcus Baldini, diretor e um dos produtores de “Bruna Surfistinha”, levantou, em nota, a importância econômica do cinema para o Brasil. Segundo ele, o longa foi assistido por mais de 2 milhões de pessoas nos cinemas e mais outros milhões na TV, além de ter empregado diretamente 500 pessoas e pagado milhões em impostos.
“O filme ajudou a fortalecer a indústria audiovisual e foi recompensado com o interesse do público, que assim se aproxima do cinema brasileiro… ‘Bruna Surfistinha’ é um filme do qual me orgulho. A diversidade é uma das belezas da humanidade e a cultura, sua expressão. O cinema não pode se reduzir a uma ou outra visão de mundo, pois isso nos limita como gente, como povo”, ele explica.
Para o professor Pedro Henrique Ferreira, o impacto da Ancine vai além do cultural. “Foi responsável por uma indústria que, mais que autossuficiente, é criadora de PIB, empregos, e movimenta a economia do país significativamente. Ela foi absolutamente determinante para uma ampliação da produção do ponto de vista numérico e econômico, e também, por uma descentralização da produção, promovendo a atividade em diversos polos do país e, eventualmente, incentivando empresas de pequeno e médio porte”, explica.
O tamanho do impacto da Ancine se faz presente ao notar que os filmes mais debatidos, elogiados e até os mais criticados foram produzidos ou impactados de alguma forma pela instituição. Entres eles, alguns dos maiores da história do cinema brasileiro, como “Aquarius”, “Cidade de Deus”, “Bingo – O Rei das Manhãs”, “Que Horas Ela Volta”, “Tropa de Elite”, “Linha de Passe” , “Proibido Proibir”, “O Homem Que Copiava”, “Os Normais”, “Meu Tio Matou um Cara”, “O Menino e o Mundo”, “O Lobo Atrás da Porta”, “Central do Brasil”, “Abril Despedaçado”, “Os Penetras”, “Ônibus 174”, “Ensaio Sobre Cegueira” e “Saneamento Básico” receberam incentivos da instituição nos últimos anos.
No ano que duas obras nacionais, “Bacurau” e “A Vida Invisível”, ganharam prêmios em Cannes, artistas estão apreensivos com futuro e o da produção audiovisual brasileira. Apesar disso, o caminho para que a eventual extinção aconteça é longo e complicado. Seria necessária a criação de uma Medida Provisória ou Projeto de Lei e, em ambos os casos, o Congresso teria de analisar e votar a favor. A atividade, segundo estimativas do setor, movimenta cerca de 25 bilhões por ano, o que atrapalharia os planos de desmonte do órgão.
De qualquer forma, a possibilidade amedronta muitas pessoas que estão direta ou indiretamente ligadas com o cinema, desde cineastas a consumidores. “Seria um golpe tremendo. Uma indústria posta a baixo, que geraria desemprego, debanda de profissionais competentes, e, arrisco dizer, uma paralisação quase plena da atividade”, receia o professor Ferreira.
“Demoraríamos alguns anos para nos recuperar do baque, mesmo que uma outra forma de financiamento do cinema surgisse. Com todas as contradições inerentes ao processo, acredito que o caminho seja, pelo contrário, fortalecer a Ancine, promover a sua sofisticação, ao invés de frear a atividade ou minguá-la”, finaliza.