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Colunas   segunda-feira, 09 de setembro de 2019

It – A Coisa: o terror dos traumas e o enfrentamento dos medos

Como a obra, e o palhaço Pennywise, vão além do mero terror e se tornam uma representação dos medos de cada um.

Uma das obras mais aclamadas e famosas do mestre do terror Stephen King, o livro “It – A Coisa” já virou filme em duas ocasiões: em 1990, com o telefilme “It – Uma Obra-Prima do Medo”, e, em 2017, com o filme homônimo. Após o grande sucesso de crítica e de público, aproveitamos o lançamento do segundo filme, “It – Capítulo 2“, para falar mais sobre a obra de King como um todo e seus diversos conceitos e significados.

Muita embora tenha sido encarado pelo grande público como um mero – e ótimo – filme de terror, existe uma camada muito mais profunda no longa, desde as características das crianças do Clube dos Perdedores, e chegando ao próprio conceito do palhaço dançarino Pennywise.

***Cuidado! Possíveis spoilers sobre o filme e o livro abaixo!***

Os traumas pessoais e a representação do medo

Em “It: A Coisa”, cada uma das crianças do Clube dos Perdedores possui, dentro da narrativa, um contexto familiar ou social que ocasionou um evento traumático, o qual, por sua vez, deu origem a um tipo de medo intrínseco a personalidade de cada um deles.

Bill, por exemplo, passou pela experiência do sumiço e morte de seu irmão mais novo, Georgie, agravada pelo sentimento de culpa e responsabilidade pelo ocorrido. Beverly, por sua vez, é vítima de abuso praticado pelo seu pai, além de ter que lidar com a puberdade feminina. Complementando o triângulo amoroso, Ben é o estereótipo do menino gordo, que sofre bullying de outros garotos de tal forma que até oferece risco a sua vida.

Quanto aos demais membros do grupo, Stanley é pressionado pelo pai para ser um judeu perfeito, pois ele é o filho do rabino e precisa ser um exemplo; Eddie é vítima de abuso emocional por parte de sua mãe hipocondríaca, que tentar projetar no garoto suas paranoias com doenças como uma forma de controle; Richie, além de ter medo de palhaços, também se preocupa com a efemeridade da vida, ao entender que Georgie morreu, e que assim, todos podem morrer; por fim, Mike precisa lidar com a constante lembrança do incêndio que matou seus pais, além de ter que encarar o conflito com sua consciência sobre o trabalho de abate de animais que faz diariamente.

Todos esses medos e traumas, no mínimo incomuns para crianças dessa idade, são o que as torna vítimas tão atraentes para Pennywise, que se utiliza desse contexto para atrai-las e assustá-las (lembrando que, como dito por ele no filme, o medo torna a carne humana mais saborosa).

E é em razão disso que Pennywise assume a forma do que cada criança mais teme: para Bill, se torna o irmão morto que o culpa por não estar com ele no momento de sua morte; com Beverly, o palhaço se utiliza do pai dela e de seu medo de ficar sozinho, além do receio dela de enfrentar desafios da vida feminina, como inundar o banheiro de sangue em uma alusão a primeira menstruação da garota; com Ben, Pennywise manipula os demais garotos que faziam bullying para que cheguem a ameaçar sua vida; para Stan, ele surge como uma mulher completamente deformada, sendo este o total oposto da perfeição almejada pelo pai; com Eddie, o palhaço aparece como um homem leproso, doente e contagioso; Richie tem uma visão de si mesmo morto em um caixão; e para Mike, a visão é de um incêndio em um abatedouro.

Desse modo, o medo se torna o tema central da trama, com “A Coisa” do título representando os traumas mais profundos.

A necessidade de enfrentamento e importância da amizade

Concomitantemente aos medos que enfrentam – representado pelo palhaço – as crianças também passam a lidar com os desejos que possuem, estes muitas vezes ligados aos seus traumas. São tais desejos, inclusive, que ajudam a movimentar a narrativa, e que acabam culminando em um necessário confronto.

Movida pelo desejo de se livrar do pai e se tornar mais independente, Beverly acaba conseguindo alcançar esse objetivo, contudo, se vê sozinha e vulnerável a ser capturada por Pennywise. Bill deseja encontrar George, e ao tornar verdadeiro seu receio de que ele havia morrido, consegue finalmente deixar de se culpar e passa a enfrentar Pennywise. Para ajudar seus amigos, Eddie consegue, enfim, identificar o relacionamento tóxico com sua mãe e se tornar independente dos vários medicamentos falsos que tomava.

Somente ao final da obra, com todas as experiências vividas ao longo do filme, que as crianças aprendem a realmente encarar e aceitar seus próprios medos – e, por consequência, encarar a Coisa, em uma alegoria ao enfrentamento físico desses traumas.

No entanto, aí entra outro aspecto relevante, e também essencial no desenvolvimento das personagens, que é a amizade sincera e o carinho que passam a desenvolver um pelo outro. Ao se identificarem como “quebrados”, e aceitarem não só seus próprios defeitos, como também os defeitos da pessoa ao lado, os membros do Clube dos Perdedores criam um vínculo que facilita o enfrentamento anteriormente descrito.

A própria psicologia legitima a importância da criação de instrumentos, como o afeto, o vínculo e o fortalecimento emocional para o confronto com o traumático.

O ciclo do trauma e a repetição dos erros

Superada toda a trama do primeiro filme, é possível adentrar – de maneira um pouco superficial – aos conflitos de “It – Capítulo 2”. Ao avançar sua trama em 27 anos e trazer os membros do Clube dos Perdedores em suas versões adultas, é possível constatar que os traumas e medos causados na infância podem ter influência em escolhas ao longo da vida. Tanto é assim que eles retornam crescidos para enfrentar, mais uma vez, a Coisa.

A versão adulta de Beverly é o melhor exemplo de como muitas vezes os traumas levam as pessoas a repetir erros, mesmo que de maneira inconsciente. Caracterizada como uma mulher forte e independente, a Beverly do futuro se vê presa em um relacionamento abusivo com seu marido, tal qual como vivia com seu pai na infância. E, mais uma vez, é levada a uma situação limite e obrigada a agir contra isso.

Muita embora tenha aprendido que não possui nenhuma doença e que tudo não passava de um controle de sua mãe super-protetora, Eddie também não consegue deixar o medo da saúde completamente para trás. Sua versão adulta continua a viajar com um pacote de medicamentos para curar uma doença inexistente.

Com exceção de Mike – que se tornou bibliotecário e passou todos esses anos pesquisando como matar a Coisa – todas crianças deixaram a cidade de Derry e se mudaram para outros locais, em uma inconsciente fuga das experiências vividas. Com isso, os medos foram esquecidos, mas os aprendizados também, e tudo virou uma memória reprimida para eles. Somente com o retorno da Coisa, e com o aviso de Mike para que se reúnam novamente, é que os membros do Clube dos Perdedores se veem de novo tendo que lidar frente a frente com aquilo que passaram tanto tempo fugindo.

Esse choque de realidade tem consequências imediatas, com Stan escolhendo tirar a própria vida ao se deparar com a possibilidade de ter que encarar Pennywise novamente. Os demais Perdedores, então, percebem que talvez precisam enfrentar seus passados e medos, dos quais passaram tanto tempo fugindo. E é nessa jornada de redescoberta que eles notam o ciclo em que suas vidas se prendeu, repetindo erros do passado, e que precisam agir para quebrar esse padrão. Além disso, constatam a força do vínculo entre eles e que somente possuem quando estão juntos.

Ao tentarem eliminar a Coisa, e serem atacados quando o plano falha, culminando na morte de Eddie em um dos ataques, os Perdedores finalmente percebem como podem derrotar Pennywise, a personificação de seus medos: simplesmente assumindo-os e, com isso, os diminuindo. Ao deixarem de ter medo de si próprios e, por consequência, da própria Coisa, esta se torna indefesa, já que se alimenta do medo dos outros. Assim, eles deixam de fugir e encaram diretamente o inimigo. E, juntos, vencem.

Giovanni Mosena
@giovannimosena

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