Cinema com Rapadura

Colunas   quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Alfonso Cuarón: um exímio contador de histórias

O recente lançamento de "Roma" serve como oportunidade para analisar algumas das características que consagraram a carreira do diretor mexicano.

Em 2014, o diretor Alfonso Cuarón vivenciou o auge de sua carreira em Hollywood: ele foi eleito o Melhor Diretor do Oscar daquele ano, pelo seu trabalho em “Gravidade”, longa estrelado por Sandra Bullock e George Clooney. A produção foi aclamada pela crítica e virou um fenômeno de público, tendo faturado mais de US$ 700 milhões nas bilheterias mundias. Se o longa não venceu a categoria de Melhor Filme, que contemplou “12 Anos de Escravidão“, ao menos teve como consolo a vitória em outras seis categorias. O Oscar de Cuarón pela direção marcou a primeira vez que um mexicano vencia a categoria, iniciando uma certa hegemonia hispânica que continuaria nos anos seguintes, com as vitórias de Alejandro Iñarritu (“Birdman” e “O Regresso“) e Guillermo Del Toro (“A Forma da Água“).

O seu primeiro trabalho desde então foi “Roma“, produção da Netflix que estreou no serviço de streaming no último dia 14 de dezembro. Mais uma vez, o longa do diretor está sendo aclamado pela crítica, com muitos o colocando como um dos favoritos para a temporada de premiações deste ano. Sendo o trabalho mais pessoal e íntimo de sua carreira até agora, o diretor não mediu esforços para que a produção fosse exibida nas salas de cinema de vários lugares do mundo, incluindo o Brasil, apesar de destacar a importância de um filme como este ser lançado na Netflix. Aproveitando este recente lançamento, o Cinema com Rapadura destaca algumas das características mais marcantes da carreira do diretor, que o colocam como um dos melhores contadores de história da atualidade.

Os planos sequências

Entre as várias qualidades de “Gravidade”, uma das mais lembradas e admiradas pelo público são os planos sequências da obra, pelos quais o espectador teve a chance de se encantar -e de temer! – as belezas e os perigos da vida no espaço. Enquanto a doutora Ryan Stone (Bullock) luta por sua sobrevivência, em uma jornada na qual ela deve enfrentar o luto que carrega e transformar-se completamente, Cuarón convida o público a passear em um ambiente sem gravidade, em tomadas longas que misturam drama, suspense e ação, variando visões em primeira e terceira pessoa. O plano inicial, de 12 minutos de duração, seguido por outro de mais seis, são a exemplificação perfeita do uso do recurso da obra. O resultado final é algo incrivelmente bonito, de tirar o fôlego, mas que é dinâmico e consegue ser extremamente pessoal e íntimo. Veja uma amostra:

O filme de 2013 não foi a primeira vez que ele fez isso, sendo que esse caráter íntimo, que o recurso ajuda muito a reforçar, foi explorado de outras formas antes. Em “Y Tu Mamá Tambíen”, de 2001, Cuarón conta a história dos amigos Tenoch (Diego Luna) e Julio (Gael García Bernal), que convencem a prima de Tenoch, Ana (Ana López Mercado) a partir para uma viagem rumo ao litoral mexicano. O interesse dos dois jovens, a princípio, é puramente em arrumar uma forma de terem relações sexuais com Ana, mas o road trip acaba se mostrando reveladora, a medida que as longas conversas dentro do carro aprofunda e desenvolve os três protagonistas, explorando novas nuances da sexualidade, da amizade e das visões de mundo de cada um deles.

Aqui, o trunfo do diretor é a forma como ele proporciona um caráter quase documental à ficção, de forma a aproximar ainda mais o espectador dos personagens principais. Sequências mais dinâmicas, como quando o carro dos viajantes ultrapassa outros na estrada, dão a dinamicidade que o recurso permite. Mas o mérito maior está nos takes longos, quase estáticos, que há quando o trio está conversando em um bar ou restaurante. Muitos fariam esses momentos alternarem entre close-ups dos personagens, mas Cuarón prefere se manter a distância, como se estivesse filmando três amigos para um documentário. Aliado ao roteiro, que alterna entre explorar os protagonistas e contar micro histórias de alguns mexicanos que cruzam por eles na obra, a estratégia consegue aproximar o público dos personagens, criando uma forte ligação entre eles.

Já em “Filhos da Esperança”, de 2006, o caos distópico e do regime ditatorial em solo inglês são o plano de fundo para uma jornada que busca proporcionar um mundo melhor para um povo desesperado. A história se passa no ano de 2027, e a extinção da humanidade está cada vez mais iminente, uma vez que as mulheres se tornaram inférteis e há anos não nasce um novo ser humano no planeta. Theo (Clive Owen) é um funcionário do governo que prefere estar alheio a esta situação, ou a grande crise de imigração que a Inglaterra enfrenta, até o momento que sua ex-esposa, Julian (Juliane Moore), pede sua ajuda para levar a jovem Kee (Clare-Hope Ashitey) até o litoral britânico. Theo descobre que a jovem, milagrosamente, está grávida, e o trabalho de escoltá-la até um local seguro irá transformá-lo em um possível herói improvável da humanidade, ao mesmo tempo que ele deve enfrentar os demônios do passado.

A crueldade e o tom de desespero desta distopia podem ser sentidas por meio da direção de Cuarón, que apresenta uma abordagem mais crua e pessimista, comparando-se a outros filmes da sua filmografia. Desta vez, os dois grandes usos do plano sequência proporcionam uma grande imersão, colocando o espectador dentro da obra. A primeira é um esplendor, na qual o diretor usa o espaço mínimo de dentro de um carro para criar toda a sequência, com um resultado final espetacular e de tirar o fôlego (você pode assistir aqui, mas atenção para spoilers do filme). Já a segunda passeia por um cenário destruído, em um conflito intenso, na qual o diretor se aproxima e se distancia de Theo constantemente. Em sua missão de seguir os seus passos, a câmera chega a receber algumas gotas de sangue na lente, o que torna toda a sequência mais realista e imersiva. Apenas contemple:

Emmanuel Lubezki

Se as sequências do diretor encantam, isso não se deve ao mérito, exclusivamente, de Cuarón. Muitas dessas cenas têm essa primazia, também, pelo trabalho do diretor de fotografia Emmanuel Lubezki, que trabalhou ao lado do diretor mexicano em muitas oportunidades. Lubezki, recentemente tricampeão consecutivo no Oscar de Melhor Fotografia (“Gravidade”, “Birdman” e “O Regresso“), é quem ajuda a dar o tom visual da obra, interferindo não apenas na forma como a cena se desenvolve, mas também no tom que ela transmite.

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O realce ou não das cores, por exemplo, é um dos aspectos em que seu trabalho interfere. O mundo pessimista de “Filhos da Esperança” ganha uma áurea mais opressiva justamente pela opção de uma fotografia que favorece tons mais acinzentados e frio, o que lhe rendeu uma indicação ao Oscar daquele ano; o destaque para as cores verde e laranja, quase brilhantes, são responsáveis por reforçar o caráter conto de fadas de “A Princesinha”; enquanto o uso de luz natural (algo tão elogiado em “O Regresso“) é o que ajuda a dar o ar de documentário de “Y Tu Mamá Tambíen”. Conhecer a filmografia de Cuarón acaba sendo a chance de conhecer ótimos trabalhos de um dos melhores diretores de fotografia da atualidade.

Um adaptador de histórias

Em sua carreira, o diretor foi indicado ao Oscar pelo roteiro original de “Y Tu Mamá Tambíen”, mas o mexicano também já teve a oportunidade de adaptar quatro livros. Além do já citado “Filhos da Esperança”, uma de suas obras mais maduras e bem produzidas (e que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado), Cuarón trouxe para às telas outras três histórias, cada uma delas conduzida de maneira distinta. “A Princesinha” relata a história de Sara (Liesel Matthews), uma garotinha que, por conta da Primeira Guerra Mundial, é obrigada a sair de uma vida pacífica ao lado do pai na Índia, e acaba em um internato em Nova York. Enquanto o pai luta na Europa, a garota, uma crente fervorosa na existência da magia e no poder de contar as histórias, sofre nas mãos da megera Miss Minchin (Eleanor Bron). Cuarón mistura a áurea de Cinderela com uma pegada quase Steven Spielberiana de lidar com crianças, concebendo uma produção inocente e que reconforta o espectador, seja adulto ou o público mais infantil.

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Em “Grandes Esperanças”, a condução já é mais madura, uma vez que o drama romântico se leva um pouco mais sério. Uma versão moderna da história concebida por Charles Dickens, ela narra a história de Finn Bell (Ethan Hawke), um jovem artista que tem sua vida mudada para sempre quando um benfeitor misterioso começa a bancar sua carreira na área, permitindo que ele exponha seu trabalho em uma importante galeria de Nova York. Enquanto tenta se adaptar a seu novo padrão de vida (algo que mudará, inclusive, a forma como ele trata os demais), Finn acaba reencontrando sua antiga paixão de infância e juventude, Estella (Gwyneth Paltrow), o que o obrigará em encontrar uma forma de conciliar as duas paixões de sua vida. A produção ainda tem um pouco do caráter “conto de fadas” de “A Princesinha” (como o próprio Finn destaca, ele é o sapo que se transformou em príncipe repentinamente), mas também é mais dramática, com o romance – e as boas atuações – de Hawke e Paltrow carregando a obra.

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O primeiro blockbuster da carreira de Cuarón foi “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban”, tido por muitos fãs o melhor filme da saga, ao adaptar justamente um dos livros mais queridos da série. Curiosamente, o terceiro capítulo da vida do jovem bruxo é o trabalho de Cuarón em que suas características menos são percebidas, talvez por se tratar de uma grande produção e os executivos da Warner não quererem arriscar em algo mais autoral. O trabalho, felizmente, não fica prejudicado por isso, já que o diretor ainda consegue montar cenas memoráveis, como o voo de Harry em cima de Bicuço, e mostrar uma história mais madura que os dois filmes anteriores (uma evolução que também ocorreu nos livros), mas que ainda apresenta toda a áurea de fantasia do universo bruxo. A transição entre as cenas, a boa fotografia (não de Lubezki) de Michael Seresin e a trilha do mestre John Williams são apenas outros elementos que tornam o filme ainda melhor.

A direção de atores

Seja pelo roteiro, pelo talento dos envolvidos ou pela mão do próprio Cuarón, os filmes do mexicano sempre contaram com ótimas atuações, o que facilita para o público em se envolver com estes filmes. A jovem Liesel Matthews é o coração de “A Princesinha” e lida bem com o papel de protagonista, enquanto a química entre Hawke e Paltrow fazem funcionar a complicada relação entre os dois em “Grandes Esperanças” – menção honrosa para a participação coadjuvante de Robert de Niro no longa. A química entre os protagonistas também é um dos segredos de “Y Tu Mamá Tambíen”, mostrando o potencial que Diego Luna e Gael García Bernal teriam nos anos seguintes.

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Mesmo que não seja um papel carismático, o modo como Clive Owen consegue ser o herói improvável de “Filhos da Esperança” cai como uma luva para a proposta do filme, com ele transmitindo um personagem bastante humano. Humanidade que também pode ser percebida na excelente atuação de Sandra Bullock em “Gravidade”, no que é considerado um de seus trabalhos mais impressionantes na carreira. Essa característica se repete em “Roma”, uma vez que a estreante Yalitza Aparicio também é cotada para concorrer aos prêmios deste ano.

E para você, quais as características de Alfonso Cuarón são as mais marcantes de sua carreira? O que você espera ver quando assiste uma de suas obras? Deixe sua opinião nos comentários!

Luís Gustavo
@louisgustavo_

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