Cinema com Rapadura

Colunas   quarta-feira, 29 de setembro de 2021

[Artigo] Um Batman excêntrico, uma fábrica de criatividade e um cinema controverso: as festas de Andy Warhol

Como um artista reuniu uma constelação de estrelas para criar arte e viver histórias lendárias.

Em uma era quase esquecida, décadas antes da remota possibilidade de uma pandemia impedir aglomerações e eventos sociais, as máscaras não conseguiriam esconder o seu sorriso se você recebesse um convite para subir ao quinto andar de um prédio na 231 East 47th Street, em Nova York. Com uma cerveja na mão, ali você poderia bater um papo com Bob Dylan, dividir uma cerveja com Mick Jagger e conhecer alguns dos artistas mais transgressores daquela geração.

No começo da década de 1960, o endereço abrigava um espaço de criatividade, inovação, drogas e festas memoráveis. O edifício em si não era o mais importante. Para se ter ideia, ele nem existe mais. Ainda em 1967, o espaço deu lugar a um prédio de apartamentos, mas a áurea, as celebrações e o ar mitológico mudaram-se para outros três lugares diferentes, por quase duas décadas.

Fundado por Andy Warhol, ali ficava The Factory, seu estúdio de criação. Era o lugar onde ele escrevia seus filmes, idealizava projetos, conhecia pessoas e dava festas com lembranças que ganharam aspectos lendários com o passar dos anos. Muito mais do que um espaço físico, aquele se tornou um local de encontros e o símbolo de identidade de um dos artistas mais significativos do último século.

Andy Warhol abasteceu a adega com arte

A combinação de cores que estão presentes nas artes mais famosas de Andy Warhol refletem o anagrama de descompasso que permeou a trajetória artística e pessoal do artista. Hoje é fácil encontrar suas obras em exposições, filmes, livros e documentários, mas em 1945 ele era apenas um adolescente ganhando um prêmio de arte e escrita no Ensino Médio. Mas não era um adolescente qualquer.

Nascido em Pittsburgh, na Pensilvânia (EUA), Warhol era filho de uma dona de casa e de um mineiro, imigrantes da Áustria-Hungria. Warhol perdeu o pai na juventude e cresceu sob influência significativa dos dogmas da igreja católica. Quando estava na terceira série, ele foi marcado para sempre com uma doença chamada Coreia de Sydenham, que impacta o sistema nervoso e provoca o surgimento de movimentos involuntários nas extremidades, além de causar manchas na pele.

No final da década de 1940, Warhol se mudou para Nova York, para trabalhar com ilustração e publicidade. Lá, foi um elogiado desenhista de sapatos e um entusiasta do processo de impressão em silk screen. Não demorou para que se tornasse conhecido pelo estilo próprio de pintura e pela serigrafia. A caminhada para o estrelato aconteceu quando ele foi contratado pela RCA Records para, ao lado de Sid Maurer, desenhar capas de álbuns e materiais promocionais de grandes músicos da época.

Foi na década seguinte que Warhol alcançou o sucesso comercial, depois de ver seu trabalho se popularizar em galerias importantes do país norte-americano. A notoriedade avançou velozmente enquanto grandes estrelas hollywoodianas passaram a se interessar pelas suas artes e por ele em si. Algumas de suas criações alcançaram valores megalomaníacos, como a pintura Silver Car Crash, que foi arrematada por 105,4 milhões de dólares em 2013.

Responsável por cunhar a expressão “Qualquer coisa pode ser arte, para qualquer pessoa e sobre qualquer coisa”, Andy Warhol era abertamente homossexual e se tornou uma importante personalidade antes do movimento de libertação gay. Foi durante estes anos de maior impacto cultural que o jovem Warhol fundou a The Factory, um estúdio que usava para desenvolver suas obras, mas que se tornou um espaço que hospedou parte importante da cultura pop nova-yorkina.

O Batman e o cinema de Andy Warhol

Não faz muito tempo que George Clooney, Christian Bale e Ben Affleck estavam vestidos com uma fantasia de morcego e uma capa preta, mas bem antes disso foi o ator Jack Smith que viveu o Batman em um filme experimental de Andy Warhol. Realizado em 1964, após algumas poucas semanas de filmagem, a obra foi produzida e dirigida por Warhol sem a permissão da DC Comics e apresentada apenas em sua própria exibição de arte.

Mais tarde, documentários exibiram cenas do filme que expressava a idolatria que o artista tinha pelo clássico seriado do Batman dos anos 1960 e que, bem diferente de Christopher Nolan, trazia uma versão exagerada e caricata do personagem. Mas ia beeem além! Com cerca de uma hora de duração, o filme é mudo e preto e branco. Ah, e tem um detalhe importante: no filme, o Batman também é o Drácula!

Essa experimentação, aliás, é uma das características mais marcantes do cinema de Andy Warhol. A partir de junho de 1963, quando comprou sua câmera Bolex 16mm e começou a filmar, ele deu início a uma era de produtividade frenética, com centenas de filmes, ainda que a maior parte deles ficasse restrita a pequenas exibições em festivais.

“Sleep” (1963), um dos primeiros filmes produzidos pelo artista, tinha quase cinco horas e meia de duração e mostrava o poeta John Giorno dormindo pelado. O próprio Warhol assumiu que chegou a sair da sessão que exibiu “Sleep” pela primeira vez depois de alguns minutos. Outras obras famosas dele com esse mesmo propósito de mostrar fatos cotidianos em tempo real são “Kiss”, “Eat” e “Haircut”.

Em um vídeo publicado em fevereiro de 2018 pelo crítico de cinema Arthur Tuoto, ele explica que os filmes se relacionam ao Cinema Estrutural, movimento que demonstra quando essas ações triviais e íntimas são apresentadas em tempo real, sem a perspectiva subjetiva que tradicionalmente é incorporada pelo diretor. Outro exemplo desse tal minimalismo capturado por Warhol é visto em 1964, com o filme “Empire”.

Aqui temos um longa de oito horas com a imagem praticamente estática filmando o Empire State Building. A obra provoca o espectador a observar e esperar, uma experiência impensável em tempos de TikTok. Essa tentativa de capturar momentos essenciais da natureza humana, no entanto, não é a única marca de Warhol. Ele também se destacou por outros tipos de experimentações.

Em 1965, em “Vinyl”, uma adaptação condensada do livro que deu origem ao filme “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick, o artista tenta amplificar o caos e suscita dúvidas entre o que é a violência real e a filmada. Gerard Malanga, seu assistente e protagonista do filme, ocupava a tela para cumprir basicamente o papel de ser torturado diante das câmeras.

Outro exemplo da excentricidade de Warhol pode ser vista no filme “Lonesome Cowboys”, um faroeste caricato onde todos os personagens estão – basicamente – tentando transar entre si (a ideia inicial era que o filme se chamasse “Fuck”).

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De todas essas inovações, porém, uma das que melhor representa o The Factory é o filme mais longo realizado por Warhol. Na verdade, o “Screen Tests” (1964 – 1966) foi uma série de pequenos filmes que ele fez com vários outros artistas, celebridades e qualquer outra pessoa que entrasse em seu estúdio. Warhol pedia para que a pessoa ficasse na frente da câmera, quieto e sem piscar. Esta foi uma das respostas criativas do The Factory.

As festas do The Factory

A magia do estúdio de Andy Warhol ia além do espaço em que desenvolvia suas obras, tinha imersões criativas na própria mente e pagava 100 dólares de aluguel por ano. O The Factory era um lugar de reunião. Lá, ele recebia artistas, intelectuais, drag queens, escritores, músicos e todo um séquito de celebridades do mundo underground de Nova York. Durante a década de 1960, boêmios e personalidades da contracultura se encontravam naquele lugar para conversar, beber e otras cositas más.

Entre os personagens frequentes das noites no The Factory estiveram as pessoas que passaram a fazer parte do grupo de companheiros próximos de Andy. Entre os nomes estavam Joe Dallesandro, Holly Woodlawn, Jackie Curtis, Candy Darling, Edie Sedgwick e outros musas e musos que ficaram conhecidos como os Warhol Superstars. Todos estrelaram filmes realizados pelo artista e protagonizaram uma entourage de super estrelas que causava inveja e admiração nos pouco afortunados da época.

Em comum, todas as pessoas em volta de Warhol eram super bonitas. É isso que descreve Dustin Pittman, um fotógrafo e antigo frequentador do The Factory, em entrevista ao The Love Magazine. Ele foi convidado a começar a frequentar o local por intermédio de Ingrid Superstar, numa época em que Warhol não era a lenda que conhecemos hoje, mas já era um mestre do networking.

Warhol possuía uma rede de contatos que não permitia que seu nome fosse citado em qualquer lugar de Nova York sem que houvesse alguém para reconhecê-lo. Do cinema ao teatro, da música à fotografia. E “Andy adorava andar com os melhores da sociedade e de Hollywood”, disse Pittman. “Ele iria a qualquer lugar com as pessoas se elas tivessem dinheiro”, complementou o fotógrafo na entrevista.

Todas essas personalidades mereciam um texto para si, mas não dá para abraçar o mundo. Vale lembrar, no entanto, da história emblemática de uma das personagens habituais das festas no The Factory. Edie Sedgwick era uma atriz oriunda de uma família tradicional e milionária que conheceu Warhol depois de um período bem conturbado de sua vida, quando estava viciada em drogas e bebidas.

Ela virou amiga do artista e estrelou vários dos seus filmes, como “Poor Little Rich Girl” (1965), “Kitchen” (1965) e “Ciao Manhattan” (1972). Com um estilo transgressor para a época, usava brincos enormes e vestidos curtos, ela encantava pela beleza e não passava despercebida por onde chegava. Reconhecida como a primeira It Girl da história, Sedgwick gastou boa parte da fortuna em uma vida bem diferente dos padrões esperados pela sociedade.

Em 1965, Sedgwick e Warhol já não eram mais tão amigos e eles se afastaram, então ela deixou de fazer parte do grupo. Pouco tempo depois, Sedgwick conheceu Bob Dylan e eles tiveram um breve relacionamento. Entre os fãs do músico, dizem que a clássica canção Just Like a Woman foi escrita em sua homenagem. Ela também teria sido a inspiração para a música Femme Fatale, da The Velvet Underground, banda conhecida pela amizade com Andy Wahrol. A jovem morreu de overdose em novembro de 1971, com 28 anos de idade.

Em 2006, chegou aos cinemas o filme “Factory Girl”, em que Sienna Miller interpreta Sedgwick e Guy Pearce vive Warhol. O longa também conta com Hayden Christensen, Jimmy Fallon, Mary Elizabeth Winstead e acompanha a jornada complexa e conturbada da atriz.

Não era raro encontrar pessoas como Sedgwick nas festas promovidas no The Factory. A junção de uma ampla gama de cenas artísticas pode ter sido responsável pela criação de obras inesquecíveis ou de pessoas que apenas cumpririam a profecia de Warhol de que “no futuro, todos terão seus quinze minutos de fama”. Numa época pré-celular, o The Factory se tornou um espaço de criação e destruição de amizades, da reunião de artistas de grande expressão e de sonhadores emergentes.

Durante as festas, pessoas falavam de teatro, cinema e fofocavam sobre os bastidores da arte. Uma cena underground e orgânica de talentos e de pessoas que queriam parecer talentosas. Em 1987, o artista morreu, mas o impacto da sua obra e dos encontros que promovia mostram que algumas pessoas desenvolvem histórias que ecoam pela eternidade. E, assim como Warhol e toda a sua carreira prolífica, as festas que aconteciam no The Factory se tornaram lendárias.

Breno Damascena
@brenodamascena_

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