As várias Dunas: a jornada do clássico de Frank Herbert no cinema
Alejandro Jodorowsky, David Lynch e Denis Villeneuve tinham ideias diferentes do que seria "Duna" nas telonas. Mas o que torna a história dessa obra no cinema algo tão fascinante?
“Eu não sentirei medo. O medo é o assassino da mente. O medo é a pequena morte que leva à aniquilação total. Eu enfrentarei o meu medo. Permitirei que ele passe por cima e através de mim. E quando ele tiver passado, eu voltarei o olho interior para ver o seu rastro. Por onde o medo passou, nada mais haverá. Apenas eu restarei.” (“Duna”, Litania Contra o Medo)
Você já deve ter lido ou ouvido esses versos em algum lugar. Ainda que mais longos (e por isso não tão fáceis de se repetir o tempo todo) eles são tão famosos quanto “que a Força esteja com você” ou “vida longa e próspera“. E tão importantes quanto, se não forem mais. “Duna” foi um dos grandes precursores do fenômeno da ficção científica na televisão e no cinema. O mais interessante disso é que os principais elementos e a estética da obra de Frank Herbert estão presentes em praticamente tudo do gênero no meio visual desde seu lançamento em 1965, mas a obra em si demorou a chegar às telonas e telinhas.
A história de “Duna” e suas adaptações é uma das maiores sagas de Hollywood. Não por seu impacto ou tamanho, mas pela trajetória da própria obra e seus diversos projetos, tentativas e empreitadas. Há um filme, há duas séries… Mas ainda não há uma adaptação definitiva de “Duna”, algo que conte a história criada por Frank Herbert através das câmeras de modo fiel – ou mesmo mais autoral. Mas tentativas não faltaram ao longo das décadas, e cada uma delas é uma história em si de tão interessantes que são, da empreitada mal fadada de Alejandro Jodorowsky nos anos 1970, passando pelo filme insosso de David Lynch na década seguinte… Até chegar a Denis Villeneuve nos dias atuais.
Ao que tudo indica, enfim teremos uma versão decente de “Duna” nos cinemas em breve – supondo que o coronavírus permita, claro. Adaptar essa história para as telas é algo que causa medo em cineastas e fãs, o que não deixa de ser irônico, dado que o enfrentamento do medo é um dos principais motes dessa história. Não basta apenas ser fã de Herbert ou ter respeito pela obra original, é preciso ter certeza de si, ter deixado o medo passar e restar apenas uma visão clara do que se pretende fazer. Denis Villeneuve já topou desafios desse porte antes. Continuar a história de “Blade Runner“, por exemplo, é tão perigoso para uma carreira quanto adaptar “Duna”, e o diretor canadense tirou de letra.
A história das adaptações de “Duna” é a história de alguém que consiga chamar essa responsabilidade sem sucumbir sob seu peso. Talvez Villeneuve seja a pessoa certa, o Muad’Dib da nossa Arrakis. Talvez não. Torcendo para que sim, trazemos aqui uma retrospectiva da trajetória desse que é um dos maiores clássicos do gênero em busca de um retrato fidedigno na tela grande. O que torna “Duna” tão único e tão difícil de se fazer nas telonas? Pegue um pouco de melange e venha viajar com a gente!
Duna de Jodorowsky
“Um filme que dá as alucinações do LSD, sem que se tome LSD.”
Hoje em dia muitos livros têm seus direitos de adaptação ao cinema adquiridos antes mesmo de serem lançados, mas no século XX a coisa ia um pouco mais devagar. Havia tempo para cada obra ser lida e apreciada por seus leitores, bem como para atingir o status de clássico primeiro da literatura, para apenas depois cogitar-se o salto para o cinema. “Duna” foi publicado em 1965, mas apenas em 1973 seus direitos foram adquiridos, para só no ano seguinte um projeto vir a tomar forma.
E foi logo um projeto que ficaria marcado na história do cinema. Não por seu tamanho, apesar de ser gigante; não pela qualidade, apesar de todos gostarem do que vêem; e não pela fidelidade ao material original, pois a ideia era se destacar bastante… Mas por não ter sido concluído. Aliás, sequer foi filmado. Estamos falando da versão de Alejandro Jodorowsky para “Duna”.
Em 1974, um consórcio de produtores franceses adquiriu os direitos para adaptar “Duna” aos cinemas, com Jodorowsky à frente do projeto, acumulando os cargos de diretor e roteirista. Já àquela época ele era conhecido por sua excentricidade artística e pessoal (vide filmes como “O Topo” e “A Montanha Sagrada“), mas sua visão e paixão eram avassaladoras e fizeram as coisas darem certo. As que estavam sob seu controle, pelo menos.
Durante a pré-produção, não haviam limites. Jodorowsky fez questão de contratar os melhores nomes disponíveis, incluindo os artistas Moebius, H.R. Giger, Dan O’Bannon e Chris Foss para tornar real sua visão extravagante e psicodélica da galáxia de “Duna”, e um elenco de peso como jamais se viu até hoje, com direito a Salvador Dalí, Orson Welles, Gloria Swanson, Mick Jagger, David Carradine e Udo Kier. O papel do protagonista Paul Atreides, no entanto, ficaria a cargo de seu filho, Brontis Jodorowsky, à época com 12 anos. A trilha sonora ficaria por conta de bandas como Magma e Pink Floyd. E o roteiro de Jodorowsky refletia a condição singular de seu filme, com quase doze horas de duração.
Mundos e fundos foram prometidos para todos os envolvidos no filme, principalmente que o resultado final seria algo que “mudaria o mundo”. Mas na hora de encontrar estúdios dispostos a de fato tirá-lo do papel, não havia ninguém. Apesar de terem ficado impressionados com tudo no projeto, nenhum estúdio de Hollywood topou a empreitada de Jodorowsky, os principais argumentos falando no alto risco financeiro que um filme como esse representa. A frustração e o desgosto que seguiram não tinham fim.
Mas o fracasso não significa que “Duna” de Jodorowsky não tenha marcado época. Pelo contrário, seu legado influenciou toda uma geração de cineastas e praticamente preparou o terreno para a era dos blockbusters que viria logo a seguir. A equipe de artistas conceituais de Jodorowsky, por exemplo, seguiu junta e deu origem a “Alien – O Oitavo Passageiro“, de Ridley Scott (lembra do xenomorfo? H.R. Giger). Os storyboards de “Duna” vieram a influenciar diversos outros filmes, como “Flash Gordon“, “Star Wars“, “O Exterminador do Futuro“, “O Quinto Elemento“… E até filmes que não são de ficção científica, como “Os Caçadores da Arca Perdida“. Mais recentemente, em 2013, o documentário de Frank Pavich, “Jodorowsky’s Dune“, deu uma mostra do impacto desse projeto e de tudo que poderíamos ter visto, dando saudade do que nunca vivemos.
Um projeto tão grandioso que assume a posição de mito. “Duna” de Jodorowsky é, de certa forma, um Cronos ao contrário: morto por Hollywood, mas de dentro do qual surgem diversos outros projetos. Ou um Ícaro, que voou alto demais e acabou derrubado pelo calor irresistível do Sol. Paradoxalmente, esse é um projeto que não poderia ter surgido em outro período ou pela mente de outra pessoa, apenas pela de Jodorowsky nos anos 1970. Mas é um filme que não era para aquele mundo, nem para o nosso e nem para os próximos. Levará décadas até que possamos fazer e compreender algo como o sonho de Jodo.
Duna de Lynch
Frustração nunca é algo fácil de se lidar. Tudo mundo tem pelo menos uma grande frustração, seja profissional, pessoal, amorosa… A história da adaptação de “Duna” dirigida por David Lynch é uma história sobre frustração, uma tão grande que até hoje ele não quer nada a ver com nada que venha da obra de Frank Herbert, afirmando até que não assistirá a versão de Denis Villeneuve.
Anos depois de o projeto de Alejandro Jodorowsky não ser levado adiante, o produtor italiano Dino de Laurentiis adquiriu os direitos de adaptação de “Duna” para tentar surfar na onda de blockbusters iniciada por “Star Wars” no fim dos anos 1970. A ideia inicial era que o próprio Frank Herbert escrevesse o roteiro, já que o autor havia ficado traumatizado com o tanto que sua história fora alterada por Jodorowsky. Ele produziu um script de 135 páginas, mas acabou rejeitado e substituído por Ridley Scott e Rudy Wurlitzer. Scott, aliás, iria dirigir o filme, mas acabou desistindo após seu irmão ser vítima de um ataque cardíaco.
Foi então que Raffaella de Laurentiis, filha de Dino e também produtora de “Duna”, chamou David Lynch para dirigir o filme. Ele havia acabado de lançar “O Homem Elefante” e vinha sendo elogiado por crítica e público. Uma pessoa com uma visão artística forte. Que nunca havia lido o livro, sim, mas mesmo assim capaz de fazer jus à obra original. Tudo deu certo na etapa de pré-produção, com o filme seguindo para gravar no México. No elenco estavam as figurinhas carimbadas na obra de David Lynch (Kyle MacLachlan, Jack Nance e Everett McGill) e um elenco estelar (Patrick Stewart, Max von Sydow, Sean Young, Brad Dourif , Virginia Madsen e Sting).
A partir daí, Lynch passou a compreender melhor o que queria do filme, improvisando cenas extras e um corte do filme com mais de quatro horas de duração. Entretanto, o acordo da família de Laurentiis com a Universal, que financiava e faria a distribuição, previa um corte de apenas duas horas, voltado para consumo em massa ao melhor estilo blockbuster. Para algumas das sequências que o diretor queria, o estúdio simplesmente não forneceu verba para filmagem, e muito do que de fato foi filmado acabou cortado na ilha de edição, para revolta de Lynch.
O resultado foi um filme mal recebido por público e crítica e que sequer conseguiu cobrir na bilheteria seu custo de produção. Por mais que David Lynch fale que as gravações foram ótimas e que tenha carinho pela equipe e o elenco envolvidos (“não foi tudo um pesadelo, foi apenas 75% pesadelo“, disse certa vez) e haja coisas de fato excelentes (principalmente estética e figurino), a frustração que sente por tudo que aconteceu é clara quando fala do assunto: “eu não tive a versão final nesse filme. […] Essa é a grande lição: não faça um filme se não for o filme que você quer fazer. É uma piada de mau gosto e vai acabar com você.”
A própria mentalidade que gerou “Duna” de David Lynch vai contra o legado da obra. Enquanto o livro de Frank Herbert influenciou inúmeras outras obras e diversas mídias, Hollywood quis de Lynch um filme o mais inautêntico possível, uma versão de “Duna”, o filme, que fosse influenciado pelas obras influenciadas por “Duna”, o livro. E isso foi pedido logo de um dos cineastas de veia autoral e artística mais fortes da indústria. Talvez à época os executivos não tivessem noção de quem exatamente era aquele jovem diretor. Hoje, com conhecimento de causa que só o tempo pode dar, sabemos que aquela foi outro grande potencial desperdiçado.
Duna de Villeneuve
“Descobri o livro porque me senti atraído pela capa. A capa francesa era fantástica, um close-up de um homem negro com olhos azuis sobre um deserto, uma imagem muito forte, muito hipnótica.”
A memória em questão é de Denis Villeneuve. A capa que ele menciona é a imagem acima, e sua fala evidencia uma questão que nenhum outro cineasta que se propôs a adaptar “Duna” ao cinema tinha, que é uma paixão pela obra de Frank Herbert. Alejandro Jodorowsky não tinha lido o livro, preparando o roteiro a partir do relato de um amigo e de sua própria interpretação da história, desviando demais do original; idem para David Lynch, que sequer se interessava por ficção científica.
Villeneuve leu o livro ainda jovem e foi profundamente influenciado por ele. Seu sonho profissional era levar “Duna” ao cinema, mas de um jeito diferente das tentativas anteriores, tendo o livro como guia. Não é tarefa fácil, mas o diretor vem dando mostras de que seu filme se baseia nos três pilares sobre os quais Frank Herbert escreveu sua história: uma linguagem extremamente visual, formando imagens claras e fortes na mente dos leitores; as temáticas política e ambientalistas por trás do enredo; e, por fim, uma trama envolvente com personagens complexos para ilustrar tais pontos.
Em entrevista recente à Entertainment Weekly, Oscar Isaac, que interpreta o duque Leto Atreides no filme de Villeneuve, falou sobre a estética empregada pelo diretor para reproduzir nas câmeras as imagens que Frank Herbert nos ajuda a imaginar tão claramente: “há algumas coisas que são, por falta de palavra melhor, um pesadelo visual. Há um elemento brutalista. É chocante. É assustador. É muito visceral.” O próprio emblema da Casa Atreides – um falcão vermelho – foi adaptado para refletir a identidade visual adequada. Já para Arrakis, o desafio era o oposto, de criar uma atmosfera de outro mundo e distante dos contornos frios de Caladan. O ambiente escolhido foi o deserto de Wadi Rum, na Jordânia – mesmo cenário do planeta Pasaana em “Star Wars: A Ascensão Skywalker“.
Ainda assim, por mais alienígena que o deserto de Arrakis possa ser para nós, a metáfora da exploração da droga melange para exaustão dos recursos naturais de nosso próprio planeta é clara – quem diz não é este que vos fala, mas o próprio Frank Herbert. E Villeneuve compreende a magnitude da mensagem, como esclarece em entrevista à Vanity Fair:
“Não importa no que você acredite, a Terra está mudando e teremos que nos adaptar. Por isso acho que ‘Duna’ é um livro para o século XX. É um retrato distante da realidade do petróleo e do capitalismo e da exploração – a superexploração – da Terra. Hoje as coisas estão ainda piores. É uma história de amadurecimento, mas também um chamado à luta para a juventude.”
Por fim, a complexidade da história não permite que ela seja contada toda em um único filme, e os cineastas anteriores sofreram na pele as dificuldades quando perceberam o equívoco que isso representa. “É um livro que aborda política, religião, ecologia, espiritualidade – e em muitos personagens. Acho que é por isso que é tão difícil. […] Eu não concordaria em fazer essa adaptação do livro em um filme único. O mundo é complexo demais. É um mundo que tira seu poder dos detalhes“, diz Villeneuve. As transformações pelas quais os personagens passam não são poucas e nem suaves, principalmente o protagonista Paul Atreides, cuja jornada o diretor compara à de Michael Corleone em “O Poderoso Chefão“. O amadurecimento do qual Villeneuve fala é o de Paul, que precisa assumir não apenas o posto de herdeiro da Casa Atreides, mas de Muad’Dib, aquele que salvará Duna.
Felizmente, Villeneuve conseguiu junto à Warner que seu próprio “Duna” seja dividido em duas partes. Mas como as coisas simplesmente não podem ser fáceis para essa obra nos cinemas, a pandemia do coronavírus ainda pode afetar a produção do segundo longa, que ainda está por começar.