Cinema com Rapadura

Colunas   terça-feira, 14 de julho de 2020

[LISTA] 7 filmes realmente originais da última década

O cinema permite criar coisas inéditas e revolucionárias, mas é muito difícil sair do lugar-comum. Nesta lista, falamos sobre obras cheias de originalidade.

“Estamos vivendo um momento único na história da humanidade”. Você provavelmente escutou essa frase centenas de vezes nos últimos meses. Seja em discursos motivacionais de coachs, reportagens sobre as mudanças sociais provocadas pelo novo coronavírus ou em publicações nas rede sociais, a promessa do ineditismo chama a nossa atenção. Queremos ser os primeiros a ter uma ideia revolucionária, a provocar uma transformação relevante ou mesmo produzir uma obra que ninguém nunca viu antes.

Na prática, porém, desenvolver algo original é praticamente impossível. De concepções artísticas a inovações tecnológicas, toda criação nova é produto de obras que reverenciam em outras obras, e cada composição derivada dessas vai inspirar outras tantas. Guillermo Del Toro, por exemplo, já assumiu se inspirar no artista surrealista polonês Zdzisław Beksiński para criar a estética e os monstros que, hoje, são a marca registrada do diretor de “O Labirinto do Fauno” e “A Forma da Água”

Mitos e histórias clássicas da literatura japonesa inspiraram o cineasta Hayao Miyazaki e o Studio Ghibli. Um dos mais aclamados diretores da história, Stanley Kubrick, via muitos filmes de ficção científica e faroestes em busca de referências, além, claro de livros sobre os temas. Isso sem falar de Quentin Tarantino, cuja marca principal é justamente a salada de frutas referencial, com toques orientais.

Diante de um universo em que quase todas as coisas já foram imaginadas e realizadas, é fácil saber porque a originalidade é tão comemorada. E foi justamente para celebrar as produções que ainda conseguem fugir do lugar-comum que eu convidei cineastas, críticos de cinema e estudiosos da sétima arte para apontarem filmes realizados na última década que são realmente inéditos, seja pela proposta original, roteiro ou qualquer outro aspecto de realização. Veja a lista abaixo!

Homem-Aranha no Aranhaverso (2018)

Quem iria imaginar que a melhor adaptação cinematográfica das histórias em quadrinhos do Homem-Aranha para a tela grande seria uma animação? Phil Lord e Chris Miller, responsáveis pelo reboot de “Anjos da Lei”, acreditaram na ideia e desenvolveram uma das obras mais deslumbrantes da última década. Vencedor do Oscar de Melhor Animação, o filme acompanha Miles Morales, o Homem-Aranha, e as aventuras dele no multiverso compartilhado com vários outros homens-aranhas. 

Para Aline Diniz, apresentadora da TNT e produtora de conteúdo sobre cultura pop, o longa é uma animação como nunca se viu antes. “Aranhaverso traz elementos incríveis dos quadrinhos aos cinemas. Usando texturas, traços, sonorizações, cores, entre outros, o filme cria uma narrativa envolvente tanto para seu público alvo mais jovem quanto para os adultos os acompanhando, inventando uma nova forma de contar histórias animadas. Toda a proposta de Aranhaverso grita inovação”, justifica.

De fato, para produzi-lo foram necessários 140 animadores, a maior equipe já usada em um filme da Sony Pictures Animation. A proposta de Lord e Miller se baseava na construção de uma estética original e particular, que combinava animação computadorizada com  desenhos feitos à mão. Tudo isso com um elenco grandioso formado por atores e atrizes consagrados, como Hailee Steinfeld, Mahershala Ali, Liev Schreiber, Luna Lauren Velez, Nicolas Cage e Shameik Moore. 

Mais uma Página (2017)

“Mais uma Página” seria uma comédia romântica comum, com os arquétipos tradicionais e uma trama no máximo divertida, se tivesse sido produzida em Hollywood. Porém, a narrativa agradável do longa ganha aspectos emblemáticos por ser uma produção filmada na Cidade do Cabo e em Joanesburgo, na África do Sul, por um cineasta sul-africano, e depois ser disponibilizado no catálogo da Netflix

“É uma proposta inovadora justamente porque é um romance de pessoas de classe média na África do Sul”, justifica Denise Cruz, Doutora em Antropologia Social, pesquisadora da produção cinematográfica africana e curadora da mostra do cinema africano no Forum.doc.bh. “O cinema feito por africanos nasce na década de 1970, com as independências. Os filmes inaugurais são muito políticos, com viés de transformação da sociedade. Falta produções de cineastas africanos que sejam mais despretensiosas e que atinjam um público maior”, complementa.

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O longa conta a história de amor de um jovem acadêmico e sua esposa. Tudo corre bem até que um escritor famoso muda para a casa deles, em Joanesburgo. “É um caso romântico que mostra as dificuldades e as delícias de um relacionamento afetivo. Por trás disso, são abordadas uma série de questões sobre raça, típicas da África do Sul. Também se discute as relações de poder e as formas de participação na sociedade local”, explica Denise. 

A obra é dirigida pelo comediante Kagiso Lediga, popular por desenvolver diversas produções audiovisuais. “Essa despretensiosidade é uma forma de quebrar os muitos estereótipos que temos de África, que é sempre relacionada à pobreza, à precariedade, à magia e ao exótico. E nesse sentido ele contribui para a formação de uma imagem de África que não seja marcado sempre das mesmas relações”, acredita a pesquisadora.

Branco Sai, Preto Fica (2014)

O Distrito Federal registra uma das maiores desigualdades sociais do Brasil. E é em Ceilândia, cidade satélite da capital, Brasília, que se passa “Branco Sai, Preto Fica”. Comandado pelo promissor diretor Adirley Queirós, o filme se baseia em um episódio real para contar a história de tiroteio que fere dois homens em um baile de black music. Um deles precisa amputar uma perna e o outro fica paraplégico. 

Ninguém é responsabilizado pelo crime. Então, um terceiro homem vem do futuro para investigar o que aconteceu e determinar quem foi o culpado. “A proposta do filme é diferente de qualquer outra coisa que eu já vi na vida”, comenta Max Valarezo, criador do canal EntrePlanos no YouTube. “O longa é inspirado por um caso verdadeiro de brutalidade policial, e usa isso como ponto de partida para criar um futuro distópico focado na experiência de quem vive na periferia”, explica. 

“Nunca antes eu tinha visto um filme que se propunha a mesclar dessa forma a linguagem do documentário e da ficção científica para abordar os sentimentos de alienação, trauma e raiva vividos por comunidades periféricas. É uma obra que surpreende, confunde, e que mostra como vozes de comunidades marginalizadas podem usar o experimentalismo para criar histórias de vanguarda no cinema do nosso país. ‘Branco Sai, Preto Fica’, com certeza, merece ser relembrado como um dos filmes mais singulares da filmografia brasileira recente”, acrescenta Max.

Cópia Fiel (2010)

O que é arte? E qual é o valor de uma cópia? São essas perguntas que o filme dirigido pelo poeta iraniano Abbas Kiarostami se propõe a responder. O longa acompanha James Miller (William Shimell), um filósofo inglês que vai a Toscana para apresentar o livro que ele escreveu sobre o valor da cópia na arte. Lá, ele conhece a francesa Elle (Juliete Binoche), dona de uma galeria. Os dois, então, passam uma tarde juntos discutindo sobre a vida, o amor e, claro, a arte. 

“O Abbas, em toda sua filmografia, mesclou documentário com ficção. Aqui, ele faz isso ao incluir coisas da vida real dos atores no filme, mas esse não é o foco”, conta Carissa Vieira, Cineasta e criadora do canal Carissa Vieira. “O longa discute se a originalidade é realmente importante ou a cópia pode valer o mesmo. E, para isso, ele cria um jogo de cena inovador usando a metalinguagem de forma única, quando os protagonistas começam a encenar um casal dentro da própria encenação do filme”, explica. “A metalinguagem em si não é um artifício novo, mas em ‘Cópia Fiel’ ela passa a ser”, finaliza. 

Sombras da Vida (2017)

Logo após morrer, um homem se torna fantasma e volta para a casa em que vivia com a esposa para tentar consolá-la. Nessa nova forma, ele percebe que não é afetado pelo tempo físico e vira um espectador passivo da vida da mulher. Aos poucos, ela começa a afastar o ex-marido de sua memória e ele passa a viver apenas das lembranças que os dois construíram juntos. 

“É um filme que utiliza conceitos que a gente já conhece dos gêneros de terror para desconstruir todos eles ao falar sobre a ideia de imortalidade. É uma metáfora para as questões do tempo – aquilo de você estar preso, de nunca conseguir sair de determinado lugar”, explica Victor Russo, criador e crítico de cinema do canal 16MM. “A obra discute toda a sociedade e como ela é cíclica enquanto debate temas completamente diferentes”, complementa. “Tudo isso numa lógica que a gente esperaria de um filme de terror. Porém, sem nenhuma vergonha de vestir um fantasma com um lençol branco”, finaliza. 

A Chegada (2016) 

Os aspectos que definem o comportamento humano, a influência da linguagem em nossa interação com o mundo e impactos do medo do desconhecido na sociedade são apenas alguns dos temas retratados em “A Chegada”. Dirigido pelo já consagrado Denis Villeneuve, o filme imagina o que aconteceria com a humanidade se seres extraterrestres pousassem na terra com o objetivo de fazer contato com a população da terra. 

“Talvez seja um dos filmes mais envolventes que eu tenha assistido nesse período. ‘A Chegada’ introduz uma nova maneira de abordar a narrativa não-linear ao abordar a linguagem por meio da própria linguagem do filme”, explica Aline Diniz. A obra também retrata como interesse políticos, diferenças e busca pela supremacia atrapalharam a ciência neste cenário. “Para mim, nos dias de hoje, não há nada mais revolucionário do que ser tradicional, mas de um modo inovador”, complementa Thiago Siqueira, crítico de cinema do site e do canal Cinema Com Rapadura no Youtube. 

Corra! (2017)

Em 2017, o primeiro filme escrito e dirigido por Jordan Peele chegava aos cinemas. E, a partir daí, o mundo do audiovisual nunca mais foi o mesmo. Em uma mescla de terror, comédia e drama, o longa aborda o preconceito a partir de uma perspectiva extraordinária. “’Corra!’ é um filme de terror com inteligência e ironia que elevou o debate sobre racismo para outro patamar. Ele inova pelo roteiro e é um marco para o cinema”, justifica Anna Muylaert, cineasta e diretora do aclamado “Que Horas Ela Volta?”

Em “Corra!”, um jovem fotógrafo é convidado pela namorada para conhecer os pais da garota. Ele é negro, ela é branca. “O horror como forma de tratar questões raciais não é novidade. Muitos filmes do gênero trazem questões políticas nas entrelinhas, mas ao buscar o horror social a partir de uma perspectiva totalmente negra, Jordan Peele inova”, acredita Carissa Vieira. 

“Dentro do cinema de horror, os negros são historicamente massacrados. Durante anos foram relegados a coadjuvantes que morrem cedo nas histórias, muitas vezes se sacrificando pelo protagonista branco. Ao trazer um protagonista negro, que realmente é o centro da narrativa e falar abertamente do racismo que faz parte das bases dos Estados Unidos, ele leva o horror social a um outro patamar, subvertendo clichês do gênero e trazendo algo inédito dentro do horror americano”, complementa Carissa.

Menções honrosas

De forma totalmente arbitrária (e para o texto não ficar grande demais), decidi selecionar apenas sete filmes para compor a lista de obras audiovisuais realmente inéditas da última década. Quem sabe no futuro, eu volto aqui com outros filmes. Enquanto isso, destaco algumas obras indicadas pelos(as) especialistas entrevistadas para este texto: 

“Mad Max: Estrada da Fúria” (2015) – Indicação de Victor Russo e Thiago Siqueira
“A Árvore da Vida” (2011) – Indicação de Thiago Siqueira
“O Conto da Princesa Kaguya” (2013) – Indicação de Thiago Siqueira
“Guerra Fria” (2018) – Indicação de Thiago Siqueira
“As Boas Maneiras” (2017) – Indicação de Thiago Siqueira
“Scott Pilgrim Contra o Mundo” (2010) – Indicação de Thiago Siqueira
“Projeto Flórida” (2017) – Indicação de Thiago Siqueira
“A Separação” (2011) – Indicação de Thiago Siqueira
“Mommy” (2014) – Indicação de Victor Russo
“O Segredo da Cabana” (2011) – Indicação de Victor Russo
“Retrato de Uma Jovens em Chamas” (2019) – Indicação de Victor Russo
“Midsommar” (2019) – Indicação de Victor Russo

Breno Damascena
@brenodamascena_

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