Cinema com Rapadura

Colunas   quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

A produção intensa e as particularidades de Nollywood, a indústria do cinema da Nigéria

Terceira maior produtora de cinema do mundo, Nollywood tem muito a oferecer.

No início de 2019, a Nigéria inscreveu Lionheart na disputa pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Foi o primeiro longa original da Netflix produzido no país africano e o primeiro da história que representaria o local na premiação audiovisual mais relevante do mundo. Não foram poucas as críticas que a Academia recebeu por cancelar a inscrição da obra alegando que ela descumpria as regras da instituição, que não permite conter diálogos em inglês.

Não foi dessa vez ainda, mas o Ocidente, aos poucos tira o olho do próprio umbigo e se volta para o cinema nigeriano. Assim como toda a rica cultura, vivências e histórias seculares, existe muito mais África que fome, doenças, guerras e tudo aquilo que os olhos do lado de cá conseguem enxergar. 

Lionheart (2018)

A história do cinema nigeriano

Desde a criação e propagação, independentemente da nação, cinema é e sempre foi política. Não é diferente na Nigéria. Quando o cinema chegou lá, o país ainda era uma colônia do Império Britânico. Entre o final do século 19 e o início do século 20, os pequenos complexos locais já abrigavam a exibição de filmes mudos oriundos, é claro, do mundo ocidental. Demonstrações do poderio estrangeiro e da potência cultural daquele povo que estava colonizando o território.

Algum tempo depois, durante a Primeira Guerra Mundial, o mesmo governo colonial utilizou os cinemas com o objetivo de arrecadar fundos para a Cruz Vermelha e para os esforços de guerra. Mais tarde, na década de 1920, cineastas anglicanos pararam de trazer filmes de fora e começaram a produzir especificamente para o público local. Eram vídeos exibidos em vans que rodavam o país equipados com pequenos projetores acoplados.

Em 1921, salões importantes foram usados para exibir filmes que propagavam os ideais britânicos e de missionários que disseminavam preceitos religiosos protestantes. Como era de se esperar (afinal, cinema é legal DEMAIS), multidões de jovens e idosos esperavam na porta destes locais. A popularidade das produções aumentava gradativamente.

Apenas em 1926, o primeiro longa-metragem foi produzido na Nigéria. Para rodar “Palaver”, o cineasta inglês Geoffrey Barkas usou nigerianos como atores. No filme, eles narravam os conflitos entre o oficial de um distrito britânico e um mineiro da região. Bem longe das grande obras hollywoodianas, a maioria das produções nacionais buscava instruir sobre como os habitantes deveriam cuidar da própria saúde e do território. 

Uma das obras mais influentes do período foi o Anti-Plague Operations, Lagos” (1937), série de vídeos para incentivar que a população buscasse melhores condições de saneamento básico e saúde. O diretor, William Sellers, era um dos nomes mais relevantes deste movimento. Oficial da colônia britânica, ele foi o primeiro diretor da Colonial Film Unit (CFU), grupo criado para explicar a Segunda Guerra Mundial ao público africano e que depois viria a se tornar um dos mais relevantes métodos para divulgar o estilo de vida colonial. Diversas unidades da CFU foram enviadas ao país com o objetivo de criar filmes para a população. 

As obras iam de ensinamentos sobre plantação e treinamento agrícola, como “Good Business”, de 1947, aos de incentivo ao desenvolvimento comunitário (“Community Development in Awgu”, de 1949) e registros de eventos constitucionais (“Towards True Democracy”, em 1947). Por muitos anos, o cinema foi utilizado para endossar as práticas coloniais estabelecidas e consolidar a influência cultural no país. 

A prática de ver filmes se tornou comum na vida cotidiana, principalmente para os habitantes da capital, Lagos. Casas comerciais surgiram em pontos importantes da cidade, consolidando a atividade no país. O conteúdo, a distribuição e a produção, no entanto, eram controlados pelos estrangeiros, o que dificultava bastante o desenvolvimento de filmes propriamente nigerianos. 

A situação começou a mudar no início do processo de independência da Nigéria, quando mais produtos locais passaram a ser exibidos nos cinemas. Em 1949, foi criada a Nigerian Film Unit, uma substituta para a CFU, mas seguindo as novas diretrizes constitucionais do país. Este processo de transformação, porém, foi longo. A produção continuava muito ligada à política, desta vez com outro viés. 

Até a independência de fato, os cinemas nigerianos eram dominados por filmes e documentários patrocinados pelo governo, sobre saúde e educação, documentários sobre a vida dos governantes, debates parlamentares e até jogos do futebol inglês, além de campanhas publicitárias e propagandas militares.

Colonial Month (1949)

Apenas em 1965, a administração do órgão passaria completamente para os nigerianos. O resultado dessa mudança foi um aumento vertiginoso de obras locais e de público. Com a independência do país, veio a era de ouro do cinema nigeriano. O amplo desenvolvimento foi impulsionado pelo boom da exploração de petróleo que encheu os cofres do Estado. O capital estrangeiro começou a entrar no setor quando empresários, principalmente libaneses, indianos e ganeses, investiram na construção de complexos cinematográficos lá.

Por volta de 1960, filmes totalmente comerciais começaram a ser produzidos em solo nigeriano. Em 1970, finalmente o primeiro longa-metragem de uma produtora nigeriana chegava aos cinemas. Neste período, novos estabelecimentos surgiram para fomentar o cinema local e isto abriu as portas do circuito para a entrada de filmes de outros países, principalmente americanos, que lotavam as salas e se tornaram populares. 

Preocupado com a influência estrangeira no país, o então chefe de Estado Yakubu Gowon instituiu, em 1972, o Decreto de Indigenização. Apesar de ser uma resposta à atuação de outros países em relação principalmente ao petróleo, o decreto obrigou que todas as redes de cinemas de proprietários estrangeiros fossem transferidas para os nigerianos. Ainda que tenha existido controvérsia, a medida resultou no surgimento de muitos roteiristas, técnicos e cineastas locais.

Graças ao boom do petróleo, também, houve aumento no poder de compra da população. Ao vislumbrar este potencial de mercado, investidores estrangeiros resolveram continuar as aplicações no país mesmo com as restrições. Desta forma, o cinema nigeriano se tornou próspero e um dos negócios mais rentáveis do país, gerando milhares de empregos. O impacto foi tão grande que o sucesso respingou até em áreas latentes de outros setores culturais, como o teatro e a televisão. 

Em meados da década de 1960, as transmissões televisivas receberam apoio financeiro e regimental do governo, com leis limitando a exibição de conteúdos estrangeiros na televisão. No início, os produtores locais não tinham tanto conteúdo, por isso apenas filmavam peças de teatro para apresentar na TV. E, surpreendente, o público adorou a ideia. Naquele momento, um novo negócio surgiu na Nigéria. 

Palaver (1926)

A eclosão das videolocadoras e a pirataria

Por demandar muito menos energia e dinheiro, grande parte das produtoras nigerianas passaram a destinar os esforços para a televisão. O que alimentou, também, o mercado de home video. Desta forma, no início dos anos 1980, a cultura cinematográfica começou a entrar em declínio. A derrocada foi encabeçada pela inexperiência dos ditadores que governavam o país naquele período. A ditadura fez com que o valor da Naira (moeda local) fosse reduzido e as poucas produtoras estrangeiras saíssem do país por falta de apoio financeiro e de marketing. 

Não demorou para que as robustas salas de cinema fossem adquiridas por igrejas e outras simplesmente fechassem por falta de público. A era dourada do cinema nigeriano chegava ao fim, mas, como a história já ensinou inúmeras vezes, não existe vácuo de poder. O público nigeriano estava acostumado e apaixonado pela cultura cinematográfica. Então, mesmo sem as grandes telas, a demanda continuava exorbitante. 

O tamanho dessa carência foi notada em 1980, quando Evil Encounter”, um filme de terror que posteriormente seria reverenciado por diversos cineastas do gênero, estreou na TV. A lenda conta que, no dia seguinte ao lançamento, o diretor e idealizador do longa, Jimi Odumosu, estava dirigindo quando notou que o acostamento estava povoado por vendedores ambulantes com várias cópias da película. O sucesso financeiro e o impacto desta façanha consolidou o poder das produções para televisão e deu o primeiro indício significativo de como o mercado da pirataria se tornaria substancial no país.

Enquanto fortalecia o mercado de fitas de vídeo, o maior legado deste período foi cimentar o conceito produção rápida como uma das características mais importantes da antiga Nollywood. Nos anos que seguiram, uma infinidade de filmes começou a ser produzida nestes moldes, com toda a sorte de gêneros, personagens, atores, histórias e, principalmente, perspectivas. Com pouco cuidado técnico ou artístico, os filmes feitos em pouquíssimas semanas refletiam a vida cotidiana e questões sociais dos nigerianos, na maioria das vezes tentando passar uma lição de moral no final. 

Como o país não tinha tanta sala de cinema assim e nem todos assistiam à TV, os filmes eram distribuídos em DVDs. Por isso, a cultura nigeriana passava a ser cada vez mais difundida internamente, em nações vizinhas e até na Ásia e Europa. A colonizada estava se tornando colonizadora. Por causa do baixo custo de produção necessário para se produzir um filme e a certeza da grande quantidade de pessoas que o assistiria, boa parte dos mais de 100 grupos étnicos e 400 dialetos diferentes que se abrigam na Nigéria foram representados. Aquele foi um período fértil para roteiristas e cineastas (dizem que, em 2004, quatro ou cinco filmes eram feitos todos os dias).

Os filmes nigerianos cumpriam um papel florescente de promover a cultura local para terras estrangeiras, impactando toda a África e os outros continentes. No entanto, os africanos não-nigerianos reagiram de forma dúbia. Por um lado, muitas pessoas acreditavam que os filmes que chegavam para eles retratavam devidamente a vida da população, em omissão a todas as culturas presentes lá. Outros grupos reclamavam da imposição cultural que a Nigéria estava propondo sobre os outros países. 

The Wedding Party 2 (2017)

Várias nações reagiram com restrições e medidas protecionistas, como o aumento de impostos para produtos estrangeiros e depreciações públicas. Com um tempo de produção média de 10 dias e orçamento de 15 mil dólares, a Nigéria se tornou o terceiro maior produtor de longas do mundo – atrás apenas de Bollywood, na Índia, e de Hollywood, nos EUA. Fora isso, a indústria gerava milhares de empregos e a receita do País chegou a somas astronômicas. 

Foi justamente essa produtividade intensa que abriu a cova da Nigéria. Neste bolo de produções, haviam pessoas que, sem nenhum conhecimento de cinema, apenas aproveitaram a oportunidade de conseguir um ótimo lucro com baixo investimento. O foco era basicamente na escala de filmes produzidos. Relatos narram produções em que o roteirista estava escrevendo a fala de um personagem enquanto o ator esperava na cadeira ao seu lado para, enfim, começar a gravação. 

No final dos anos 2000, Nollywood fazia 50 filmes por semana, cada um por até 40 mil dólares, e vendia cerca de 50 mil cópias de cada filme. O faturamento da então segunda maior indústria do mundo era de 800 milhões de dólares por ano. Neste cenário, a qualidade das produções, claro, caiu. Isso começou a incomodar os espectadores, principalmente no mercado internacional. 

Rapidamente, um dos maiores trunfos da Nigéria se tornou o pesadelo. Desde o pico de produções, entre os anos de 2005 e 2008, os números vêm diminuindo. Enquanto isso, a maioria avassaladora dos DVDs que circulavam no país eram cópias piratas, o que não gerava diretamente renda para os estúdios. Além das emissoras de TV que, naquele momento, já exibiam filmes nigerianos sem permissão dos cineastas proprietários. Para piorar, em razão do momento político conturbado do país, o apoio governamental diminuiu, os incentivos cessaram e a distribuição dos filmes ficou menos eficaz. Neste momento de conturbação, Nollywood precisou se reinventar mais uma vez. 

Chief Daddy (2018)

A nova Nollywood

Parte dos estúdios nollywoodianos mudou paulatinamente de mentalidade. Eles começaram a olhar a qualidade cinematográfica como fator primordial para lançar novos filmes, em detrimento da quantidade, que era o principal condutor anteriormente. Outro aspecto fundamental deste novo momento foi a mudança no público-alvo, desta vez voltado para as elites do país e não mais para a população em geral. 

Redes de cinema ganharam espaço em shoppings com lojas de luxo voltadas para membros da classe média e alta. E esta ideia se mostrou bem-sucedida. Aos poucos, o modelo cresceu, se expandiu, adquiriu muitos adeptos e canibalizou os pequenos produtores que faziam filmes simplórios a preço de banana. O público não parecia mais interessado em obras sem grande valor de produção. 

No entanto, enquanto a bonança era explorada apenas pelos estúdios privados, a população mais pobre não tinha acesso a esse tipo de cultura. Então, desde 2006, o governo da Nigéria vem aplicando diversos fomentos, leis de incentivos, apoio financeiro e empréstimos aos estúdios. Os esforços deram resultados positivos. As pequenas produções realizadas em pouco tempo e sem grandes custos, voltadas para o mercado de home video e até de distribuição online, continua. Em 2014, Nollywood era a segunda maior produtora de filmes do mundo – com mais de 1.200 filmes por ano -, atrás apenas de Bollywood, na Índia. 

No entanto, a qualidade vem se tornando um fator cada vez mais determinante para o sucesso na tela grande e para a repercussão internacional. No mesmo 2014, o cinema e a produção musical constituíam 1,4% do PIB de 307 bilhões de libras do país, a maior economia do continente. Hoje, uma parcela dos filmes nigerianos alcança uma faixa da população a que nunca imaginou que poderia chegar. 

Além de uma longo catálogo de filmes nigerianos disponíveis na Netflix desde o ano de 2015, o próprio Lionheart” quase beliscou um lugarzinho no Oscar. Dezenas de produções do país africano estão tomando o mundo e alcançando grandes bilheterias interna e internacionalmente. The Wedding Party 2″, lançado em 2017, chegou a diversos países da Europa e arrecadou 500 milhões de Nairas. Chief Daddy” estreou em 2018, com um faturamento de mais de N300 milhões

Para completar, no início deste mês, um estúdio chinês, segundo maior público de cinema do mundo, assinou um contrato com cineastas nigerianos para produzir o primeiro filme em parceria dos dois países. A previsão é que a obra conte com grandes nomes de Nollywood e atores chineses. É mais um sinal de que, em tempos que a bilionária Hollywood domina as salas em todos os cantos do globo, existe um outro tipo de cinema. Um cinema que possui vários sotaques, cores, jeitos e formas de encantar o público. 

Breno Damascena
@brenodamascena_

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