Cinema com Rapadura

Colunas   quinta-feira, 26 de março de 2020

[Artigo] O impacto do coronavírus nos cinemas pode mudar a forma como consumimos filmes

Em meio ao cenário de distopia, podem surgir aprendizados sobre o consumo de filmes e seus públicos.

No momento em que este texto é escrito, o mundo está paralisado. O barulho nas avenidas diminuiu, as filas nos bancos inexistem, os shoppings estão fechados e os poucos que persistem nas ruas andam mascarados, com pressa e evitando contato físico a todo custo. O cenário distópico poderia ser de um filme de terror ou série apocalíptica, mas é a vida real, com todos os seus toques de crueldade. Ironicamente até as produções de cinema, responsáveis por nos causar tantos sustos, agora estão sentindo os calafrios do coronavírus.

É até difícil imaginar a quantidade de roteiros inspirados nesta epidemia que devem surgir nos próximos anos. A produção do documentário que provavelmente ganhará o Oscar em 2021 caminha a pleno vapor neste instante. Alheia aos prenúncios, no entanto, a realidade não é animadora. Milhões serão infectados, milhares morrerão, famílias ficarão desamparadas, negócios vão ruir e a crise financeira que virá posteriormente deve ser devastadora. 

E enquanto o vírus continua a se espalhar progressivamente, o entretenimento, tal como os outros setores, amarga tempos infortúnios. Não dá para ignorar o efeito catastrófico que o Covid-19 está causando na indústria das artes. Desde que o surto começou, dezenas de eventos – incluindo alguns essenciais para a indústria – foram adiados indefinidamente ou cancelados.  

Entre eles, o 22º Roger Ebert’s Film Festival; o Festival de Filmes Indianos de Los Angeles; o tradicional Tribeca Film Festival, de Nova York; O CinemaCon, evento anual de encontro entre produtores, cinemas, distribuidores e associados; o Miami Film Festival; o Festival de filmes clássicos da TCM; o International Cinematography Summit; o Hong Kong FilMart, maior festival asiático de cinema do mundo; e o The Prague International Film Festival

Além disso, festivais importantes foram suspensos, como a SXSW, que incluiria a participação da Netflix, Amazon e Apple. E grandes conglomerados, como ViacomCBS, WarnerMedia, Fox, Discovery, The CW e NBCUniversal cancelaram suas apresentações presenciais, optando por alternativas no streaming. 

Ainda que seja cedo para antecipar o tamanho do prejuízo, ele já é visível ao observar a quantidade de obras que tiveram suas estreias adiadas desde que as medidas de contenção para o vírus foram anunciadas. Para evitar que o número de infectados continue com um crescimento tão horizontal, uma das medidas mais eficazes, segundo especialistas, é o isolamento social. A recomendada medida para evitar aglomeração de pessoas esvaziou escritórios, bares, restaurantes e, como não poderia deixar de ser, os cinemas.

Todo Mundo em Pânico (no cinema)

Em função de preservar a saúde pública e evitar o progresso da epidemia, os cinemas sofreram rapidamente os impactos das propostas de isolamento social. Das grandes salas multiplex aos pequenos cinemas de rua, todos foram sendo fechados. Antes do fechamento completo das mais de 40 mil salas de cinema dos Estados Unidis em um movimento sem precedentes na história, os donos ainda tentaram resistir. 

Chegaram a diminuir a ocupação e realizar outras ações para tentar seguir as medidas de restrição que foram impostas. Apenas quando o Presidente Donald Trump foi a público pedir que fossem evitadas reuniões com mais de 10 pessoas que o fechamento aconteceu. A resistência da indústria ocorreu porque o cenário já era desolador antes mesmo do coronavírus. 

Com o crescimento da Netflix, Amazon e outros serviços de streaming, a experiência de ver filmes vem sendo transformada para milhões de pessoas. Prognósticos já analisavam que haveria uma queda significativa no número de vendas de ingressos em 2020. “Este seria o pior ano da história dos cinemas mesmo antes do coronavírus aparecer. A doença é como derramar líquido inflável no fogo”, disse Richard Greenfield, sócio da LightShed Partners, em entrevista à revista Time

Então, tal qual um meteoro, o Covid-19 atingiu as estruturas da indústria de forma irreversível. Grandes estrelas, como Tom Hanks e Idris Elba foram diagnosticados, e a vida de muitas pessoas foi afetada. No último final de semana antes dos fechamentos, as bilheterias dos Estados Unidos atingiram o pior número em 20 anos, uma queda de 60% em relação a 2019.

A Associação Nacional de Proprietários de Teatros (NATO) solicitou ao governo federal que ofereça suporte às 150.000 pessoas que trabalham nos cinemas durante a pandemia. Neste meio tempo, dezenas de produções aguardadas tiveram as filmagens canceladas, como “Missão Impossível 7”, “Matrix 4”, “Jurassic World 3”, “Animais Fantásticos e Onde Habitam 3”, “Viúva Negra” e “A Pequena Sereia”

No Brasil, a decisão de fechar as salas de cinema começou em São Paulo, por iniciativa das próprias redes, e no Rio de Janeiro e Brasília, por determinação das autoridades. Não tardou para que outros estados também seguissem a recomendação, o que fez com que 92% das salas de cinema do País fechassem, segundo levantamento do Filme B, portal sobre o mercado de cinema no Brasil. Aproximadamente 3,2 mil das 3,5 mil telas do país fecharam por causa da pandemia do novo coronavírus.

O futuro dos cinemas está incerto. Grandes estúdios, como Disney, Universal, Sony e Warner Bros devem ter dinheiro suficiente para vencer a tempestade, mas as perdas serão astronômicas. No passado, em momentos de crise como longas recessões, a tendência era que houvesse aumento nas vendas de ingressos de cinema, pois os filmes são vistos como uma fuga da vida cotidiana. 

Agora, porém, tudo é completamente novo. Pois mesmo que os filmes sejam lançados nos cinemas posteriormente, dificilmente vão alcançar o patamar que alcançariam, em grande parte pelo calendário. Os filmes da Marvel, por exemplo, são, há anos, lançados no início da temporada de filmes de verão, este ano contando com “Viúva Negra” como o grande título. “Um Lugar Silencioso 2” já havia sido exibido para diversos públicos, quando o anúncio do adiamento foi dado, uma semana antes da estreia mundial. 

Além deles, o 9º episódio da franquia “Velozes e Furiosos”, “Mulan”, “Mulher Maravilha 1984”, “007 – Sem Tempo Para Morrer” e “Os Novos Mutantes” estão em espera para quando a quarentena acabar. Não se sabe qual será o procedimento agora, ainda que seja possível fazer conjecturas. 

Se o cenário já é desolador para os maiores conglomerados, imagine, então, para os filmes independentes, que devem sofrer um baque descomunal nos próximos meses. Para tentar recuperar as perdas financeiras e contornar o calendário apertado, os estúdios e distribuidoras tendem a apoiar as obras que podem dar um retorno maior e a curto prazo, deixando de lado os filmes com menos apelo popular. 

Ao mesmo tempo, esses movimentos abruptos provocados pela quarentena resultaram em muitas demissões e milhares de trabalhadores, agora, vislumbram um futuro incerto, principalmente para aqueles que não recebem pagamento regular. “Todo mundo está em estado de choque”, disse, em entrevista à revista Variety, Lia Tower, assistente de locação que estava trabalhando em “Atlanta”, série que finalizou a temporada mais cedo por causa da epidemia. “Não temos ideia de quando as coisas vão começar de novo”.

Criou-se na sociedade uma imagem, potencializada pelas estrelas de cinema, premiações gloriosas e grandes produções, que a indústria do entretenimento é um parque de diversão. No entanto, a realidade da maioria das pessoas que trabalham com o show business é de trabalhadores pouco remunerados, como atendentes em empresas de agenciamento, figurantes e assistentes de produção. 

Muitos destes trabalhadores não têm remuneração fixa. São parte de uma gig economy e precisam ficar pulando de produção em produção para conseguir pagar as contas no final do mês. Isso faz com eles estejam sempre vulneráveis a momento importunos, como este de agora. O mesmo vale para as pessoas que vendem os ingressos e a pipoca amanteigada nos cinemas, mas que agora estão desamparadas. 

Muito Além do Arco-Íris

As redes de cinema majoritárias provavelmente têm dinheiro para resistir a essa tempestade. Porém, será que os pequenos cinemas e os empregos que eles geram vão sobreviver ao período de crise? Apesar da tradição não ser mais tão presente no Brasil, nos EUA, os cinemas de rua são clássicos locais de encontro, ainda incorporados ao cotidiano da comunidade a que ele pertence.

Keif Henley, dono do Guild Cinema, em Albuquerque, no Estado do Novo México, EUA, ao se ver lidando com os adiamentos, cancelamentos e afastamento da equipe, criou uma iniciativa que permite que as pessoas assistam a filmes em casa e apoiem os cinemas independentes. No site do filme Phoenix, Oregon”, os espectadores têm a opção de comprar um ingresso por meio do menu Cinema em Casa. Desta forma, é possível selecionar o cinema de sua preferência e você receberá um link de exibição único para o filme (o público tem três dias para assisti-lo e 48 horas para terminá-lo, depois de começar). 

Uma estratégia semelhante deve ser utilizada para “Bacurau”, que estreou nos cinemas americanos no início de março, mas teve a exibição pausada por conta do isolamento social. Agora, o distribuidor Kino Lorber oferecerá o título por meio da plataforma de streaming Kino Now. Os compradores dos ingressos virtuais poderão beneficiar uma série de cinemas locais. 

Além disso, campanhas de financiamento coletivo estão sendo realizadas para prover aos trabalhadores destes cinemas condições para continuar vivendo com dignidade neste período. No Brasil, diante da determinação de suspender o funcionamento dos cinemas, a rede Kinoplex antecipou as férias coletivas dos funcionários. A rede Cinemark, a maior do país, propôs um Plano de Demissão Voluntária (PDV) ou um Programa de Qualificação Profissional remunerado aos colaboradores. 

Desenha-se um ambiente catastrófico, mas é importante pensar em como este vírus pode mudar completamente a forma que consumimos conteúdo, pelo menos em um futuro próximo. Com os cinemas bloqueados, alguns estúdios já estão movimentando para disponibilizar os filmes inéditos ou recentes em plataformas de streaming domésticas. 

A Universal Pictures, por exemplo, anunciou que disponibilizaria todos os seus filmes para locação sob demanda, tornando-se o primeiro grande estúdio a quebrar a janela tradicional de 90 dias que o filme percorre para sair do cinema e chegar ao home video. O estúdio viabilizou obras como O Homem Invisível”, “A Caçada” e “Emma” para locação. Um aluguel de 48 horas custará US$ 19,99.

Essa mudança pode ser vista como um momento decisivo para Hollywood. Com poucas exceções, os principais estúdios sempre mantiveram a janela de exclusividade de 90 dias, mesmo quando a Netflix e Amazon, as desafiaram. Tanto é que a NBCUniversal está preparando seu próprio serviço de streaming, chamado Peacock. E o Disney Plus disponibilizou “Frozen 2”, bem antes do previsto.

Ao visualizar todos estes acontecimentos, é fácil imaginar que as redes de streaming estão gargalhando e se preparando para receber os lucros. Engana-se, porém, quem pensa isso. Todas as produções de TV foram adiadas, incluindo séries super lucrativas, como “Riverdale”, “The Amazing Race”, “Stranger Things” e “The Witcher”, além de apostas como “Falcão e Soldado Invernal”, primeira série da Marvel para o Disney Plus.

Com a inevitável recessão financeira já anunciada que virá logo depois, o coronavírus pode impulsionar a transição definitiva para as redes de streaming. Uma prova disso é que, enquanto praticamente todas as empresas estão perdendo o valor de mercado, o preço das ações da Netflix subiu 0,8%. Ainda estamos no início da epidemia, mas nos próximos meses, a indústria do entretenimento vai descobrir novos comportamentos e entender como eles podem adequar a realidade a isso. 

Breno Damascena
@brenodamascena_

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