Cinema com Rapadura

Colunas   quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Para os nerds de ontem e de hoje: a #CCXP19 que você não viu

Longe do auditório principal, o clima e as pautas do festival foram focadas em nostalgia e diversidade.

Créditos de imagens: I Hate Flash

A CCXP19 acabou e já deixou saudades. São quatro dos maiores dias para qualquer fã de cultura pop e sempre deixam momentos marcantes para amantes de filmes e séries (além de outras mídias, claro). Entre estandes, painéis e a própria feira, foram muitas as atrações e, por mais que se ande por toda o pavilhão, é impossível ver tudo que o evento tem a oferecer. O espaço mais disputado, como de costume, foi o auditório principal, onde ocorreram os principais painéis e estiveram grandes nomes da indústria do entretenimento. Mas muita coisa boa aconteceu fora dele, também.

Além das novidades, grandes festivais como esse oferecem a nós, fãs de cultura pop, uma oportunidade de olhar para nós mesmos. Nos permite um senso de comunidade. Por mais tentadores que os painéis e auditórios principais possam ser, o festival trouxe em seu circuito fora deles uma programação rica em debates e homenagens focadas em dois eixos principais: nostalgia (como não poderia deixar de ser) e diversidade. Vejamos quais foram os melhores lugares para debatê-los na CCXP19.

Chorão – Marginal Alado

Da esquerda para a direita: João Gordo, Sarah Oliveira, Edgard Piccoli, Felipe Novaes e Hugo Prata

A figura de Chorão, líder da banda Charlie Brown Jr., foi uma das mais emblemáticas da música brasileira entre as décadas de 1990 e 2000, e também uma das mais controversas do gênero. Seu final trágico, morto por overdose em 2013, revelou um lado triste de sua história, que agora será contada no documentário “Chorão – Marginal Alado”.

O painel do filme na CCXP19 reuniu testemunhas oculares dessa história, como João Gordo, Sarah Oliveira e Edgard Piccoli, trio de apresentadores da MTV no início dos anos 2000, além do diretor Felipe Novaes e do roteirista Hugo Prata. Na pauta, os bastidores do filme se mesclaram com uma celebração da vida de Chorão, com relatos de episódios marcantes protagonizados por ele na vida de cada um na mesa.

Conhecido por sua personalidade mercurial, Chorão foi descrito por Prata como “um tipo de gângster brasileiro, aquele cara que é agressivo, mas super bondoso com sua comunidade“. Dentre o diversos causos narrados, os mais representativos de sua personalidade foram trazidos por João Gordo e Sarah Oliveira. O primeiro, líder da banda punk Ratos de Porão, teve desavenças sérias com Chorão, que acabaram com um sincero pedido de paz durante uma edição do VMB (premiação da antiga MTV). Já Sarah contou sobre o empenho até um pouco excessivo do cantor em mostrar sua sensibilidade e dedicação à música após sua famosa briga com Marcelo Camelo, líder do Los Hermanos.

Sobre o filme, Prata ressaltou que a personalidade de Chorão era um fator a se considerar (“não tinha como fazer um filme chapa branca“), mas ressaltou que o cantor era muito mais do que víamos, e tentou passar isso para o filme: “a gente queria mostrar que ele tinha um lado muito mau, que ia para as manchetes do jornal, e outro muito benevolente. […] A gente teve um cuidado bem grande para mostrar os problemas que ele teve por causa da droga, sem glamourizar. Tentamos ser críticos, porque nada justifica ele não estar com a gente hoje“.

“Chorão – Marginal Alado” foi exibido na última Mostra de Cinema de São Paulo e chega aos cinemas em 2020.

Shang-Chi, Valquíria e Blade: o futuro da representatividade na cultura pop

Da esquerda para a direita: Débora Kamogawa, Andreza Delgado, Jefferson Costa, Leo Hwan e Load

A cultura pop é um lugar onde diferentes gêneros artísticos coexistem, cada qual com sua peculiaridade. Histórias de super-heróis, ficção científica, fantasia… Ainda assim, há um padrão muito bem definido na maioria delas: o protagonista homem branco heterossexual. Mas há uma diversidade muito maior entre quem consome essas histórias, e esse padrão se mostrou algo ultrapassado.

Incorporar essa diversidade nas histórias é algo que precisa se tornar uma tendência na indústria do entretenimento, e há muitas obras que o fizeram com sucesso, mas ainda é algo que requer muita luta. O painel “Shang-Chi, Valquíria e Blade: o futuro da representatividade na cultura pop” propôs uma conversa sobre o alcance da cultura pop em termos socioculturais, trazendo na mesa os ilustradores Débora Kamogawa e Jefferson Costa, os youtubers Leo Hwan e Load e a jornalista Andreza Delgado.

Com filmes previstos para os próximos anos tendo como protagonistas heróis negros e asiáticos, a questão da representatividade e minorias nunca esteve tão em voga. Inicialmente falando sobre suas próprias experiências enquanto membros de segmentos socioculturais subrepresentados, os debatedores logo passaram para uma análise da indústria em si, e como esse tópico chega até os tomadores de decisão – que, por sua vez, continuam sendo majoritariamente brancos.

Quando perguntados sobre qual foi a primeira vez que se viram representados por personagens em filmes ou séries, as respostas demoraram a vir ou trouxeram personagens menores e de desenhos de menor alcance. Retratados frequentemente de forma estereotipada, fazer a própria produção cultural chegar nas mãos destes segmentos é o principal desafio para a indústria.

Jaspion – O Filme vem aí!

Da direita para a esquerda: Yusei Nagamatsu, Nelson Sato e Rodrigo Bernardo

O tokusatsu sempre foi forte no Brasil. Desde “National Kid” nos anos 1960 até a versão americana com os Power Rangers atualmente (mais sobre isso adiante), o gênero era sucesso entre as crianças e até entre os marmanjos. Mas nenhum seriado do tipo teve o sucesso de “Jaspion”. Exibido pela extinta TV Manchete a partir de 1988, agora ele terá uma releitura brasileira em um longa metragem.

Com a presença dos realizadores do projeto Yusei Nagamatsu (senior manager da Toei Animation), Nelson Sato (presidente Sato Company) e do diretor Rodrigo Bernardo, seu painel deu um panorama do que será a produção, bem como os desafios de adaptar um ícone cultural tanto tempo depois de sua passagem pela televisão. “Não imaginava, 35 anos atrás, que isso aumentaria dessa forma. Trazer Jaspion de volta e fazer o filme com talentos brasileiros e a permissão da Toei é a realização de um sonho“, disse Sato, cuja empresa distribuiu seriados japoneses no Brasil por décadas.

Mas esse será um Jaspion bem diferente do que estamos acostumados. De acordo com Rodrigo Bernardo, a ideia é trazer o herói não só para o presente, mas também para o Brasil. “O maior desafio é imaginar como ele seria em 2020 e saindo de Tóquio e vindo para São Paulo“, conta. A ideia teve a bênção da produtora do seriado original, que está animada, de acordo com Nagamatsu: “sou muito grato aos fãs brasileiros por seguirem o Jaspion depois de tantos anos. Ele vai renascer como um herói brasileiro“. Os fãs mais rígidos, no entanto, podem ficar tranquilos, pois o longa-metragem terá os elementos clássicos da mitologia do herói. “Se a gente fizer um filme sem o Satan Goss, vocês vão me jogar para fora“, brinca Bernardo.

O filme ainda não tem data de estreia nem elenco anunciado, mas se encontra em fase de pré-produção. Sato ressalta que a intenção é que tudo seja feito com calma para que o produto entregue seja o melhor possível: “o Brasil não tem histórico de filmes de heróis com efeitos, então estamos seguindo com carinho“. “Na busca por qualidade, já conversamos com três empresas estrangeiras para trazer algo de alto nível para o projeto“, complementa Bernardo.

Bifrost: o arco-íris na cultura pop

Da esquerda para a direita: Lorelay Fox, Dika Araújo, Sonreiv, Ellie Irineu e Clarice França

Retomando os painéis sobre diversidade, “Bifrost: o arco-íris na cultura pop” trouxe um debate sobre o tema pela ótica de gênero e identidade. Apesar das muitas conquistas do público LGBT+, a politização dessa pauta nos últimos tempos vem tornando o debate acerca algo acalorado e muitas vezes desprovido de bom senso. Felizmente, a CCXP19 trouxe um ambiente seguro para tanto.

Com uma mesa composta por ilustradoras (Dika Araújo, Sonreiv e Ellie Irineu) e produtoras de conteúdo (Lorelay Fox e Clarice França), o painel trouxe um debate riquíssimo sobre o estado da produção cultural LGBT+ na indústria do entretenimento, e ressaltou a importância de seguir criando e consumindo arte e conteúdo voltados para esse público mesmo em um contexto político e social tão conturbado quanto o atual. Em uma fala emocionante (e emocionada), Lorelay Fox fez questão de trazer o passado de luta como algo a manter em mente sempre, principalmente agora. “A diversidade intimida“, complementou.

Já houve muitas conquistas, mas a narrativa LGBT+ na cultura pop segue como algo carente de espaço e de representação adequada. Novamente, um dos principais desafios mencionados é o fato de a maioria dos produtores de larga escala serem homens brancos cisgênero e heterossexuais. Como referências de obras que retratam o assunto de forma adequada, as animações “Steven Universe” e “She-Ra” foram unanimidade.

Entre os filmes e séries, porém, a questão LGBT+ ainda é subrepresentada, com diversos exemplos de grandes franquias que não souberam trabalhar o tema. Recentemente, a sexualidade de Alvo Dumbledore em “Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald” e a relação entre Finn e Poe Dameron em “Star Wars” foram duramente criticadas pelo retrato que fazem, e foram descritos pelo painel como bons exemplos de queerbating – quando a indústria usa a questão para ganhar visibilidade, mas não entrega uma relação entre personagens ou os retrata fielmente. “É uma forma de fetichizar o movimento sem mostrar o que ele de fato defende“, argumentou Sonreiv.

Hora de morfar com David Yost

David Yost, o Power Ranger Azul

Muito se fala na internet atualmente sobre as crianças dos anos 1990. Quem foi uma (e quem criou uma, também) sabe e muito provavelmente viveu a febre dos Power Rangers. Foi talvez um dos grandes fenômenos infantis que conseguiram capturar a atenção tanto de meninos quanto de meninas. Na CCXP19, esse público foi contemplado com um painel com David Yost, o primeiro Ranger Azul.

Com boa participação do público presente (que não parava de fazer perguntas e declarar seu amor pelo seriado), o painel fluiu bem e emocionou todos os presentes – até Yost. Em lágrimas, ele afirmou estar ciente de sua responsabilidade para com o público. “Muitos dizem que ‘Power Rangers’ lhes dava esperança. Eu levo isso muito a sério. Saibam que vocês significam muito para mim“.

E, claro, ele falou muito sobre o que era ser um Power Ranger à época do seriado. Apesar das diversas mudanças entre as primeiras duas temporadas, o impacto da série foi gigantesco. “Chegamos a fazer apresentações para mais de 35 mil pessoas”, ele conta, relembrando um show do elenco no parque da Universal em Los Angeles.

Mas “Power Rangers” não parou nos anos 1990. Nas temporadas mais recentes, diversos atores do seriado original retornaram a seus papéis, como Jason David Frank (o Ranger Verde) e Austin St. John (Ranger Vermelho). Perguntado se voltaria, Yost respondeu que essa é uma questão delicada por ele ser parte do sindicato da categoria: “me chamaram, mas o dinheiro ficava todo para eles. Não tinha seguro saúde nem benefícios, e isso não é justo“.

Sobre o filme mais recente, de 2017, ele se mostrou contente por ver que era sobre os personagens originais, disse não ter sido chamado para participar e acha que poderiam ter sido usados mais elementos clássicos. “Deveriam ter usado mais o tema original, que toca muito rápido. E só falaram ‘hora de morfar’ uma vez“, comenta. Ele ainda aproveitou a oportunidade para jogar uma ideia para o público sobre os Rangers originais. “Uma minissérie com uns sete episódios mais sombria não seria má ideia, poderíamos encontrar quem produzisse (junto à Hasbro que detém os direitos)“. Seus fãs concordam plenamente, David.

O que aconteceu com o nerd que estava aqui?

Da esquerda para a direita: Fernanda Café, Rogério Saladino, Leo Hwan, Load e Mario César Oliveira

O termo “tóxico” vem sendo muito usado internet afora nos últimos tempos, mas não em sua conotação literal. Em vez disso, as pessoas agora o empregam principalmente para denunciar comportamentos e posturas inadequadas, seja nas redes sociais ou fora delas. E nenhum público tem sido tão associado a esse termo tanto quanto os homens. Essa foi a pauta do painel “O que aconteceu com o nerd que estava aqui?” no último dia de CCXP19.

Apesar de os debatedores serem todos homens (os quadrinistas Rogério Saladino e Mario César Oliveira e os youtubers Leo Hwan e Load), a moderação coube a uma mulher, a jornalista Fernanda Café. Isso deu um ritmo interessante ao painel, quebrando a perspectiva exclusivamente masculina. Os presentes debateram sobre a evolução do público nerd em geral e como a masculinidade é sim um tema delicado, beirando um tabu, para muitos homens.

Quando perguntados sobre personagens que têm uma masculinidade saudável, exemplos objetivos demoraram a aparecer, mas os debatedores trouxeram conclusões importantes sobre o papel dos homens no atual contexto cultural. Os destaques, no entanto, foram trazidos por Saladino e Hwan. “Não sei o que é ser não-tóxico, mas sei o que é ser tóxico“, disse o primeiro, logo em seguida tendo seu comentário complementado pelo segundo, que enfatizou a importância da troca de sentimentos, emoções e experiências na vida dos homens contemporâneos, além da necessidade de se valorizar “pelo que você é, não pelo que você faz“.

Contudo, ser homem atualmente é uma tarefa complexa, pois por milênios seu papel foi determinado pela capacidade de conquistar e destruir, e é muito fácil se deixar levar por comportamentos tóxicos e perigosos. “Machismo é como uma piscina, os homens são impregnados por esse padrão da sociedade“, conta Oliveira. A saída é uma autoavaliação e desconstrução constante, focando muito no exercício de ouvir todas as perspectivas, pedir perdão por desvios de postura e praticar empatia e compreender sua responsabilidade na sociedade atual, de apoiar a luta e dar voz a quem não teve os mesmos privilégios.

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A CCXP19 ofereceu um espaço rico para diversas discussões no meio da cultura pop, e esperamos que na edição de 2020 tais oportunidades sejam ainda mais numerosas.

Julio Bardini
@juliob09

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