Cinema com Rapadura

Colunas   segunda-feira, 04 de novembro de 2019

O que está em jogo quando se fala em democratização do acesso ao cinema no Brasil?

Tema de redação do Enem em 2019 levantou o debate sobre quem tem medo da educação cultural do brasileiro.

No último domingo (03), aconteceu a primeira parte da prova do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), que incluía, também, uma redação. O tema do texto, ansiado por muitos todos os anos, tomou as pessoas de surpresa: em 2019, o candidato à prova deveria escrever um texto dissertativo-argumentativo, contendo até 30 linhas, sobre a democratização do acesso ao cinema no Brasil. Como de praxe, a argumentação deveria respeitar os direitos humanos.

Um dos textos de apoio citava como a expansão das salas de cinema estagnou nos últimos anos, fazendo com que os cinemas ficassem concentrados em centros urbanos do país, especialmente dentro dos shoppings. Havia, também, um infográfico citando que apenas 17% dos brasileiros frequenta o cinema.

Não é difícil de entender por que isso acontece. De acordo com o levantamento feito pelo jornal Nexo em maio de 2019, utilizando dados do extinto Ministério da Cultura (que se tornou uma pasta dentro do Ministério da Cidadania no governo de Jair Bolsonaro), o Brasil possui 3.189 salas de cinema no total, mas a maioria delas se concentra no Sudeste e no Centro-Oeste, e nem todas as cidades destas duas regiões possuem um cinema por falta de equipamento. O Norte e o Nordeste (segunda região mais populosa do Brasil, segundo a Agência Brasil) são as regiões com menos acesso ao recurso, pelo mesmo motivo.

A surpresa ao tema da redação do Enem veio logo que ele foi divulgado: houve quem acreditasse que este era um assunto “politicamente neutro” ou até mesmo totalmente “irrelevante, com tantas outras coisas a serem discutidas”. Mas a discussão sobre o acesso – ou a falta dele – ao cinema para o brasileiro não cabe em 30 linhas. O tema é de extrema relevância e está em sintonia com o debate político atual, como pontuou o cineasta Kleber Mendonça Filho, diretor de “Bacurau”.

A discussão extrapola questões geográficas e fala muito sobre o projeto de educação cultural a nível nacional e as desigualdades que ainda nos atingem: começando na economia e passando pela acessibilidade, a quem produz conteúdo audiovisual no Brasil, que narrativas ganham o direito de serem contadas, a distribuição do conteúdo para as salas de cinema existentes e como financiar um projeto quando há desmontes em massa e demonização das leis que permitem este recurso.

Quem vê filme é quem tem tempo e pode pagar para entrar

Uma pesquisa de 2018 feita pelo jornal Folha de S. Paulo mostra que, se for para pagar para consumir cultura, moradores de 12 capitais do país preferem ir ao cinema. Mas a expressão-chave é “12 capitais”. Quem não tem acesso à capital de seu estado, dificilmente pode frequentar o espaço. A pesquisa também mostra que o mesmo grupo prefere realizar atividades gratuitas.

Mas quantas sessões de cinema gratuitas são disponibilizadas em uma cidade durante o ano todo? E mais: quantos, de fato, ficam sabendo de tais atividades e podem chegar até elas sem perder um tempo absurdo só na locomoção? Quantas pessoas, especialmente de baixa renda, possuem tempo para se dedicar a atividades culturais sem que isso interfira em seu sustento?

Outro levantamento, desta vez de 2019, mostra que só na capital de São Paulo, cinco distritos não possuem aparelhagem cultural alguma (cinemas, teatros, museus, bibliotecas e centros): Cidade Ademar, Vila Medeiros, Vila Matilde, Marsilac e Ponte Rasa. Os moradores precisam ou pagar para ter acesso a algo ou se locomover para o local mais próximo que tenha algum evento cultural. A falta de recursos culturais acontece, principalmente, nas periferias.

“Ah, mas com a Netflix fica mais fácil ter acesso”, alguém pode dizer. Nem de longe o acesso à internet (e, consequentemente, aos serviços de streaming) é tão democratizado. 70% da população possui internet (na imensa maioria das vezes, de acordo com o estudo, ela é acessada pelo celular) atualmente, mas a TV continua a campeã invicta no lar do brasileiro: o IBGE diz que, de mais de 69 milhões de domicílios particulares, só 2,8% não contam com uma televisão. Além disso, o preço do pacote padrão para acessar a Netflix (R$32,90) custa um ingresso de cinema em alguns locais. Se há quem não consiga pagar para ver um filme uma vez ao ano, que dirá desembolsar este valor mensalmente para ter acesso ao conteúdo audiovisual nem que seja no celular.

A ilusão da escolha

Quem se interessa pelo mercado audiovisual deve saber que, em 2019, o mês de abril foi agitado sobretudo no Brasil. Com a estreia de “Vingadores: Ultimato”, o filme ocupou mais de 80% das salas de cinema do país. Até mesmo cinemas que notoriamente só exibiam filmes de circuito fechado se renderam ao fenômeno, além da campanha feroz do Marvel Studios e da Disney para divulgar o fim da Saga do Infinito do MCU (e, enfim, ultrapassar o recorde de “Avatar” na bilheteria mundial).

Isso gerou protestos de produtores e realizadores do audiovisual nacionais, que viram o espaço da produção brasileira, que já não era grande, reduzir ainda mais. Mas teve quem celebrou o monopólio da Disney, alegando que “filmes nacionais não prestam”, então não fariam falta nos cinemas.

O que muitos esquecem, no entanto, é que o dinheiro fala mais alto e que estes filmes são exibidos com mais frequência porque suas produtoras podem pagar pelas salas para exibi-los. Dando nomes aos bois, quem tem dinheiro para fazer algo nesta escala é somente a Disney e a Globo Filmes. E, talvez, a Igreja Universal do Reino de Deus.

O problema é que, além do monopólio de salas, há também o monopólio de narrativas. Se o poder de exibição se concentra somente na mão de algumas produtoras, o público só poderá escolher entre o que é de interesse de divulgação delas. Nesta brincadeira, quem perde é o próprio público: já com acesso dificultado às salas de cinema, ele também tem a ilusão de que está escolhendo entre uma vasta gama de histórias para acompanhar, mas que poderia ser muito mais diversificada.

Fala-se muito sobre diversidade e representatividade ultimamente, mas quantas narrativas realmente descentralizadas de uma visão de mundo – muitas vezes masculina, branca, heterossexual, estrangeira e de classe média – é possível ter contato? Quantas vezes você se viu na tela? E quantas vezes você sonhou em contar a história de seus iguais para ser exibida numa tela enorme para milhares de pessoas? Não são poucos os relatos de pessoas que fazem atividades culturais em regiões periféricas contando que ter acesso a um filme pela primeira vez as inspirou a criar também e mostrar do que o mundo delas, de fato, é feito. Mas, novamente, é necessário recursos financeiros para bancar as produções e a exibição das mesmas.

A quem interessa o desmonte da educação cultural do brasileiro?

O antropólogo e escritor Darcy Ribeiro já dizia que “a crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”. E educação extrapola os muros das escolas: quando falamos sobre educação estamos falando, também, sobre cultura. E a educação cultural do brasileiro vai de mal a pior, não porque somos burros por natureza, mas porque existe um aparelhamento que faz com que os polos culturais estejam concentrados nas mãos de poucos, em lugares muito estratégicos e, para piorar, ainda existem campanhas veladas vindas até mesmo do governo federal para definir o que é cultura “de verdade” e o que é “digno” de ser financiado com recursos públicos.

Em 2019, o governo Bolsonaro barrou um edital da Ancine (Agência Nacional do Cinema), de 2018, que contemplaria produções audiovisuais para TVs públicas sobre diversos temas – entre eles, “diversidade de gênero” e “sexualidade”. Em entrevista ao HuffPost Brasil, a ex-diretora e uma dos fundadores da Ancine, Vera Zaverucha afirmou que “os últimos editais lançados pelo Ministério da Cultura são de 2018. Em todos eles há produções que tratam assuntos como inclusão, diversidade… Até hoje, não saiu qualquer contrato de nenhum desses 10 editais”. Osmar Terra, ministro da Cidadania (que atualmente engloba o extinto Ministério da Cultura), assinou o veto em agosto passado.

Para quem acha que obras com este conteúdo não devem ser financiadas com dinheiro público, Zaverucha explica que “os mercados, tirando os Estados Unidos e a Índia, normalmente não sustentam sua própria produção [sem fomento]”. Ou seja, não existe produção audiovisual sem financiamento público, independentemente de sua temática. E o projeto de deseducação cultural não para por aí: não é de hoje que há uma campanha para propagar a demonização de leis de incentivo à cultura, espalhada, principalmente, por membros do governo e defendida por pessoas que não entendem como a captação de recursos funciona.

Não explicar como as leis de fomento operam e vetar editais para conteúdo audiovisual por conta dos temas abordados é estratégico: quanto mais no escuro a população está, mais fácil é de manipulá-la para interesse próprio. Um povo culturalmente ignorante não é capaz de pensar criticamente. Quando não há pensamento crítico, não existe questionamento das instituições, que operam como bem entendem e só permitem que o público tenha acesso ao que elas querem que tenham acesso.

E o que acontece quando o público tem acesso a mais conteúdo diversificado? Ele se torna crítico, passa a fazer exigências para um conteúdo melhor, mais abrangente. Quem sabe, desta forma, seria possível acabar com o senso comum de que “só tem porcaria no cinema nacional”. Há, sim, muita coisa boa sendo feita no audiovisual brasileiro, vide o sucesso de “Bacurau” este ano, mas isso só é possível quando esse tipo de conteúdo pode ser acessado por mais pessoas. Do contrário, só gritaremos para o vazio.

Jacqueline Elise

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