Cinema com Rapadura

Colunas   quarta-feira, 05 de fevereiro de 2020

[COLUNA] A homenagem de Era Uma Vez Em Hollywood ao cinema

Veja quais foram os grandes filmes de 1969, incluindo alguns clássicos, que anunciavam a chegada de uma nova era.

Quentin Tarantino, inegavelmente, é um dos diretores mais aclamados da história do cinema. E, com “Era Uma Vez em Hollywood”, seu nono filme, o cineasta escreve uma verdadeira carta de amor à sétima arte – da qual sempre fez questão de demonstrar ser um grande fã. Trazendo Margot Robbie na pele da atriz Sharon Tate, a sofisticada produção, que apresenta o ano de 1969 como tema central, está entre as indicadas ao Oscar de Melhor Filme, além de ter sido honrada, na edição 2020 da tradicional premiação, com outras nove indicações – incluindo Melhor Direção, Melhor Roteiro Original (assinado pelo próprio Tarantino), Melhor Ator para Leonardo DiCaprio e Melhor Ator Coadjuvante para Brad Pitt.

“Era Uma Vez em Hollywood”, por sua vez, como o próprio título sugere, mostra-se uma verdadeira fábula cinematográfica, e, de modo único, distingue-se dentro da peculiar carreira de Tarantino – em certo sentido, o filme adota um tom até mesmo antagônico em relação aos seus demais trabalhos. Por meio de longas como “Cães de Aluguel” (1992), “Pulp Fiction” (1994) e “Bastardos Inglórios” (2009), o cineasta se tornou conhecido por possuir um estilo próprio – facilmente identificável por qualquer cinéfilo de plantão -, marcado por diálogos longos, roteiros não-lineares, humor cínico e a violência estilizada que não costuma poupar nem mesmo os próprios protagonistas.

Dessa vez, entretanto, Tarantino se mostra mais condescendente com as atitudes de seus personagens, dotando-os de carisma e afabilidade que facilmente despertam a simpatia do espectador. Assim, com suas figuras centrais praticamente libertas de qualquer traço habitual do cinismo tarantinesco, “Era Uma Vez em Hollywood” é um animal totalmente diferente, que deixa evidente o carinho e o apreço especial que o diretor e roteirista devotou a suas peças-chave, praticamente as poupando de algum desfecho mais agridoce – tão comuns em sua “sangrenta” filmografia.

Paradoxalmente, há, guardadas as devidas proporções, ingenuidade e puritanismo nos politicamente incorretos Rick Dalton (DiCaprio) e Cliff Booth (Pitt), o que não deixa de ser irônico. Isso se torna notável, por exemplo, na amizade da dupla, cuja relação de companheirismo, claramente genuína, visa sempre o bem-estar do parceiro. Já no que diz respeito a Sharon Tate (Robbie), tais características são maximizadas, e a personagem é retratada com o distanciamento necessário para a tornar uma figura idealizada. Dessa forma, Tarantino envolve os três personagens em situações que sempre apelam a uma solução essencialmente moralista, tornando a trama de “Era Uma Vez em Hollywood” surpreendentemente maniqueísta.

Essa abordagem, apesar de desagradar a alguns – incluindo os fãs mais extremistas do diretor -, não vem por acaso, pois serve de maneira funcional ao propósito declarado do filme. E, nesse sentido, o fato da narrativa se passar em 1969 ganha significado especial, pois o ano é considerado aquele que estabelece, de forma mais contundente, a transição entre a Velha Hollywood e a Nova Hollywood. Em termos de linguagem, a indústria cinematográfica americana mudaria o modo de se fazer cinema que havia sido legado da Era de Ouro – em vigor desde a década de 1920. É com propriedade, então, que o referido processo é abordado nostalgicamente por Tarantino.

A Velha Hollywood, por seu turno, consistia no modo clássico de se realizar um filme: seguir a tradicional estrutura do embate entre mocinho e vilão em produções mais glamourizadas e que apostavam, sobretudo, no carisma das grandes estrelas. Porém, tal engrenagem se mostrava anacrônica às grandes revoluções defendidas e promovidas nos conturbados anos 1960. Enquanto isso, a Nova Hollywood surgia como um movimento cinematográfico que buscava uma renovação na produção técnica e estética, e uma visão mais autoral. Posto isso, muitas das novas obras apostavam no realismo e num retrato mais fiel da sociedade americana, tendo um pé na contracultura, na igualdade racial, na liberalização de costumes e no pacifismo, gerando assim cineastas libertos do controle dos grandes estúdios. O cinema europeu da época, inclusive, também fora uma grande inspiração.

Todavia, em se tratando de uma homenagem ao cinema, o caminho percorrido por Tarantino em “Era Uma Vez em Hollywood”, além de inverso, não poderia mesmo ter sido o mais adequado, afinal, estamos falando de um tributo à sétima arte. Nesse sentido, sua narrativa está permeada de reverência aos aspectos que fizeram do cinema, não apenas durante seu período mais fértil, a maior fábrica de ilusões e fantasias que a humanidade já concebeu. No fim das contas, o interesse de Tarantino não está em fazer de seu filme um instrumento didático quanto à chegada da Nova Hollywood – essa abordagem, na verdade, está metaforicamente representada nas jornadas de Rick Dalton e Cliff Booth -, mas sim em realizar sua justa e merecida homenagem à Velha Hollywood, uma época dourada que, em 1969 – período em que a obra é brilhante e imersivamente ambientada -, encontrou seu ocaso.

Em “Era Uma Vez em Hollywood” estão presentes, basicamente, todos os grandes elementos da Era de Ouro do cinema: o glamour, as grandes estrelas, os mocinhos, os vilões, as cenas contemplativas, etc. Dessa forma, Tarantino deixa claro que a realidade nua e crua é algo importante a ser retratado nas telonas, mas que em hipótese alguma deve assumir os holofotes principais, afinal, se assim fosse, onde estaria a decantada magia que só o cinema é capaz de nos oferecer. Não por acaso, a Nova Hollywood, apesar de relevante, encontrou na década de 1970 não somente seu auge, mas também seu próprio fim.

Por fim, inspirado no ano que Tarantino escolheu para expressar sua total e completa admiração à sétima arte, listamos abaixo algumas das mais importantes produções de 1969, mesclando tanto obras que ainda apresentavam as características que fizeram da Velha Hollywood o grande motor da indústria cinematográfica, quanto produções que já se abriam para a influência da Nova Hollywood, cujos conceitos estão presentes até mesmo no atual modo de se fazer cinema.

 007 – A Serviço Secreto de Sua Majestade

Sexto filme da série 007, “A Serviço Secreto de Sua Majestade” traz, pela primeira e única vez, o ator australiano George Lazenby na pele do agente James Bond, em substituição a Sean Connery, que retornaria ao papel no filme seguinte, “007 – Os Diamantes São Eternos” (1971). Na trama, que reúne ação, aventura, drama, romance, thriller e espionagem, o agente do MI6 tem de deter Blofeld (Terry Savalas), chefe da organização criminosa SPECTRE. É nesse filme que Bond conhece e se apaixona pela condessa Teresa di Vicenzo (Diana Rigg), a única bond-girl a se casar oficialmente com o agente secreto em suas histórias. A produção foi um grande sucesso, tornando-se o segundo filme mais visto do ano.

Alô, Dolly!

O musical “Alô, Dolly!”, dirigido pelo astro Gene Kelly, de “Cantando na Chuva” (1952), traz como protagonista a cantora e atriz Barbra Streisand, no papel de uma viúva casamenteira do final do século XIX que decide conquistar um bom partido. Ganhador de três Oscars, o filme foi referenciado na animação “Wall-E” (2008) por meio da interpretação do tenor inglês Michael Crawford das canções “Put On Your Sunday Clothes” e “It Only Takes a Moment”.

A Mulher Infiel

A trama desse suspense, uma co-produção entre França e Itália dirigida por Claude Chabrol e estrelada por Stéphane Audran e Michel Bouquet, gira em torno de um triângulo amoroso que termina com o assassinato de um dos seus membros. Considerado um dos melhores filmes europeus de todos os tempos, “A Mulher Infiel” ganhou um remake americano batizado de “Infidelidade” (2002), com Richard Gere e Diane Lane nos papéis principais.

A Noite dos Desesperados

Dirigido por Sydney Pollack, o drama “A Noite dos Desesperados”, baseado num romance literário do escritor americano Horace McCoy, é ambientado no contexto da Grande Depressão dos anos 30, quando grande parte da população dos EUA sofria com o desemprego. Nesse período, os concursos de dança aparecem como uma alternativa, submetendo seus participantes ao extremo da resistência física em troca de comida, roupas e alguns trocados. Gig Young ganhou o Oscar de ator coadjuvante nessa obra protagonizada por Jane Fonda.

Bob, Carol, Ted e Alice

Uma sátira à moral americana da década de 1960, essa comédia dramática protagonizada por Natalie Wood foi, de acordo com o próprio Tarantino, a maior inspiração de “Era uma Vez em Hollywood” em relação a fotografia e design de produção. A obra fala sobre a Los Angeles exuberante da época e apresenta protagonistas perdidos que, após participarem de uma terapia, resolvem ter um casamento aberto.

Butch Cassidy

Dirigido por George Roy Hill, esse faroeste protagonizado por Paul Newman e Robert Redford apresenta a amizade e a jornada de dois ladrões que estão fugindo de um grupo de cowboys comandado por um xerife incorruptível. Vencedor de quatro Oscars, incluindo sua incrível trilha sonora, “Butch Cassidy” é um dos grandes clássicos da história do cinema. O filme tem uma das cenas mais marcantes de todas, quando Butch (Newman) e Etta Place (Katharine Ross) passeiam de bicicleta sob o som da música “Raindrops Keep Falling on My Head”, ganhadora da estatueta dourada.

Meu Ódio Será Tua Herança

Mais um icônico filme de Velho Oeste, “Meu Ódio Será Tua Herança” apresenta uma violência estilizada ao estilo tarantinesco. A obra se notabilizou por apresentar muitas cenas em slow motion e por ter como tema o fim do Velho Oeste. Alguns acreditam que há um paralelo entre o longa e a Guerra do Vietnã, que estava em curso. O American Film Institute (AFI) o classifica como um dos 100 melhores filmes norte-americanos de todos os tempos, e o sexto melhor western. A história narra o envolvimento de uma veterana quadrilha de foras-da-lei na Revolução Mexicana, ocorrida no início do século XX.

Mulheres Apaixonadas

Adaptado de um livro escrito pelo inglês D. H. Lawrence, o britânico “Mulheres Apaixonadas” é um romance dramático passado nos anos 20 do século passado, e aborda a essência entre amor e sexo durante uma Inglaterra conservadora. A obra, que também traz em seu elenco Oliver Reed e Alan Bates, rendeu a Glenda Jackson o Oscar de melhor atriz.

Os Paraquedistas Estão Chegando

Dirigido por John Frankenheimer, “Os Paraquedistas Estão Chegando”, baseado em livro escrito pelo romancista americano William Hanley, é um drama que reúne pela terceira vez Burt Lancaster e Deborah Kerr, depois de “A Um Passo da Eternidade” (1953) e “Vidas Separadas” (1958). Essa foi a única vez que Kerr apareceu em cenas de nudez no cinema. Gene Hackman também participou do longa. A trilha sonora é de Elmer Bernstein.

Os Rebeldes

Protagonizado por Steve McQueen, “Os Rebeldes” é uma mistura entre comédia e faroeste baseada na obra do autor norte-americano William Faulkner. A trama, situada em 1905, mostra o amadurecimento de um menino de 11 anos ao sair numa viagem de carro acompanhado de dois malandros numa série de aventuras. A trilha sonora é de John Williams.

Perdidos na Noite

Ganhador de três Oscars, incluindo o de melhor filme, “Perdidos da Noite” é um grande clássico do cinema. O longa traz Jon Voight na pele do jovem e simplório Joe Buck, um texano que decide ganhar a vida como garoto de programa em Nova York, desejo que acaba se tornando inviável devido sua grande ingenuidade. Ao conhecer Rizzo (Dustin Hoffman), um rapaz portador de deficiência física que sobrevive de pequenos golpes e furtos, ele desenvolve uma grande amizade. O roteiro é baseado em livro do americano James Leo Herlihy.

Queimada!

Filme italiano protagonizado por Marlon Brando, “Queimada!” é uma aventura histórica situada numa ilha fictícia inspirada no Haiti. Influenciado pelas ideologias políticas de seu diretor Gillo Pontecorvo – apontado como comunista -, o longa mostra o processo de criação de um “líder popular nato” através da doutrinação ideológica a serviço de interesses estrangeiros. A produção é ambientada no século XIX, mas representa o contexto da Guerra Fria do século XX.

Satyricon de Fellini

Mais um filme italiano, o drama “Satyricon”, de Federico Fellini, é baseado no livro homônimo escrito pelo autor romano Petrônio no século I. Tomado pelo surrealismo e pela psicodelia, a obra aborda temas polêmicos como pedofilia, homossexualidade, antropofagia e rituais considerados imorais.

Sem Destino

Um dos maiores clássicos do cinema, “Sem Destino” é um drama indie dirigido e protagonizado por Dennis Hooper. Nesse road movie, Wyatt (Peter Fonda) e Billy (Hopper) são dois motoqueiros em busca de liberdade pessoal, e, para isso, atravessam o sul e o sudoeste dos Estados Unidos. A obra é considerada um marco da contracultura e mostra as paisagens sociais e tensões na América da década de 60. O ápice e o declínio do Movimento Hippie e o uso de drogas são abordados de maneira bastante apropriada. O filme é considerado o grande responsável por marcar a entrada da indústria cinematográfica na chamada Nova Hollywood. De quebra, o longa apresentou ao grande público o trabalho de ninguém menos que Jack Nickolson, cuja atuação na pele do personagem George Hanson lhe rendeu fama mundial e o tornou um grande astro, chegando até mesmo a receber uma indicação ao Oscar de melhor ator coadjuvante. A moto utilizada pelo personagem de Fonda, chamada de “Capitão América”, ficou bastante famosa.

Se Meu Fusca Falasse

Em 1969, outro veículo que ganhou fama nas telonas foi o fusquinha Herbie, conhecido também como o Fusca 53, de “Se Meu Fusca Falasse”, comédia e fantasia da Disney dirigida por Robert Stevenson, mesmo diretor de “Mary Poppins” (1964). Grande sucesso de bilheteria, o longa apresenta a divertida união entre um veterano corredor e um fusquinha desprezado pelo dono de uma revendedora.

Topázio

Suspense dirigido pelo aclamado Alfred Hitchcock, “Topázio” é baseado no livro homônimo do escritor judaico-americano Leon Uris. Passada em 1962, no auge da Guerra Fria, a trama mostra um espião francês que, a pedido do serviço secreto americano, infiltra-se em Cuba para investigar a influência russa na ilha caribenha. A produção ficou famosa no Brasil por quase contar com a presença da atriz Eva Wilma, que chegou a fazer testes nos Estados Unidos com o próprio Hitchcock para interpretar uma cubana.

Um Assaltante Bem Trapalhão

A comédia “Um Assaltante Bem Trapalhão” é a estreia de Woody Allen como diretor. A história mostra as trapalhadas de Virgil Starkwell, vivido pelo próprio Allen, um assaltante de bancos bem incompetente.

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“Era Uma Vez Em Hollywood” conta a história do ator Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) e seu amigo dublê, Cliff Booth (Brad Pitt), que tentam reencontrar sucesso em suas carreiras moribundas na Hollywood de 1969, ano do bárbaro assassinato da atriz Sharon Tate (Margot Robbie). O elenco conta ainda com Bruce Dern, Mike Moh, Timothy Olyphant, Damian Lewis, Emile Hirsch, Lena Dunham, Dakota Fanning, James Marsden, Scoot McNairy, Maya Hawke, Kurt Russell e Al Pacino. Leia a crítica do Rapadura.

A cerimônia do Oscar 2020 acontece no domingo, dia 9 de fevereiro.

Fernando Gomes
@rapadura

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