Crise de identidade em Mulan: Disney pode ignorar parte do público asiático para agradar a China?
Descendentes de chineses indicam desapontamento com o possível enredo do blockbuster.
Na onda de adaptações live-action de suas animações, a Disney está surfando em uma pilha quase infinita de dinheiro. Só neste ano, três filmes foram lançados pelo estúdio. Com elencos grandiosos e produções megalomaníacas, “Dumbo”, “Aladdin” e “O Rei Leão” chegaram aos cinemas em 2019. Foi neste cenário que o trailer de “Mulan” estreou e causou certa controvérsia.
Sem canções, dragão falante ou grilos simpáticos, o longa vai se inspirar na lenda original e tem um objetivo muito claro: agradar o astronômico público chinês. Porém, para alcançar esse objetivo, os descendentes de asiáticos, grupo que mais se identificou com a animação de 1998, podem ser ignorados pelo estúdio?
Os pioneiros
Não é de hoje que a Disney aposta em adaptações live-action (filmes com atores reais). No dia 25 de dezembro de 1994, “O Livro da Selva” debutava nos cinemas com Lena Headey e Sam Neill para contar a história de Mogli, um menino indiano criado por lobos nas florestas locais após ter perdido os pais.
Inspirada no clássico conto do Mogli, o longa foi protagonizado por Jason Scott Lee, ator asiático-americano descendente de chineses e havaianos, nascido em Los Angeles, Califórnia, e criado no Havaí. Originalmente, a obra seria um filme independente para comemorar o 100º aniversário de lançamento do texto do autor Rudyard Kipling, mas a Disney se envolveu e mudou o cenário, potencializando os custos de produção.
Prova da grandiosidade que o filme adquiriu é que cerca de 200 animais reais foram utilizados nas gravações, incluindo 50 tigres. No entanto, apesar de receber críticas razoáveis, os 30 milhões de dólares investidos na produção rederam apenas 43 milhões de faturamento, um lucro discreto de US$ 13 milhões.
Dois anos depois, em 1996, a Disney voltou a investir em adaptações com pessoas reais, dessa vez com “101 Dalmatas”. O filme foi escrito e produzido por John Hughes (“Curtindo a Vida Adoidado”) e contou com um elenco estrelado. Jeff Daniels, Joely Richardson e Hugh Laurie marcaram presença, mas foi Glenn Close quem roubou a cena.
A obra adaptou um livro de ficção escrito em 1956 sobre o sequestro de dezenas de filhotes de dálmatas por uma malvada estilista de moda. O investimento de US$ 75 milhões rendeu US$ 320,7 milhões aos cofres da Disney e, pelo papel de Cruella de Vil, Close recebeu uma indicação à categoria de melhor atriz no Globo de Ouro.
No ano 2000, a atriz voltaria a viver a icônica personagem em “102 Dálmatas”, mas a sequência não teve o mesmo impacto. A indicação ao Oscar de Melhor Figurino, em 2000 (perdido para “Gladiador”), e o faturamento US$ 183.6 milhões não compensaram os US$ 85 milhões de investimento e as diversas críticas negativas.
A Disney só voltaria a apostar nas adaptações de live-action 10 anos depois. Porém, desta vez usando as próprias animações como inspiração. Em 2010, o diretor Tim Burton (“O Estranho Mundo de Jack”) deu vida ao mundo de “Alice no País das Maravilhas”. O longa, estrelado por Mia Wasikowska, Johnny Depp , Helena Bonham Carter, Anne Hathaway e Michael Sheen, faturou mais de 1 bilhão de dólares e marcou o início da nova fase desse império.
Dali para frente, “Malévola” (2014), com Angelina Jolie no papel principal, retratou a vilã de “A Bela Adormecida”. Uma versão de “Cinderela” dirigida por Kenneth Branagh (“Thor”) e protagonizado por Cate Blanchett e Lily James chegou aos cinemas em 2015. Com Jon Favreau no comando e elenco monumental, “Mogli: O Menino Lobo” foi a quinta maior bilheteria de 2016 e ganhou um Oscar De Melhores Efeitos Visuais, em 2017.
Tim Burton deu lugar a James Bobin (“Os Muppets”) no comando de “Alice Através do Espelho (2016)”, a primeira continuação da nova fase desse universo, mas uma decepção em crítica e bilheteria. Em 2017, a “Bela e a Fera” mostrou novamente à Disney o quão lucrativo é investir na nostalgia do público. Com orçamento de 160 milhões de dólares, o longa arrecadou mais de 1,2 bilhão, e foi indicado às categorias de Melhor Direção de Arte e Melhor Figurino na 90.ª cerimônia do Oscar. Atualmente é a 13ª maior bilheteria de todos os tempos.
Entre altos e baixos, a Disney chegou a 2019 com uma mina de ouro quase infinita nas mãos. Tim Burton voltou ao estúdio para mostrar “Dumbo” na tela grande. “Aladdin”, dirigido por Guy Ritchie (“Sherlock Holmes”) e estrelado por Will Smith como o Gênio, está fazendo história, não só pelo faturamento estrondoso de quase 1 bilhão de dólares , mas, também, pela diversidade de elenco. O protagonista é interpretado por Mena Massoud, ator nascido no Cairo, Egito, mas que cresceu no Canadá. Enquanto, a londrina Naomi Scott, a Jasmine, é filha de uma mãe indiana.
O mesmo impacto aconteceu com um dos blockbusters mais esperados do ano. Dirigido por Jon Favreau, e com o elenco majoritariamente negro, o remake de “O Rei Leão” chegou aos cinemas com toda a pompa esperada. Donald Glover, Beyoncé, James Earl Jones e Chiwetel Ejiofor são apenas alguns dos nomes que fortalecem este que deve ser uma das produções mais lucrativas do estúdio.
E vai bem além disso. A lista de filmes que possivelmente ganharão adaptações pela Disney para os próximos anos é extensa. Desde novas versões de “Cruella”, “A Dama e o Vagabundo” e até “Lilo & Stitch”. No entanto, uma das maiores controvérsias atuais da cultura pop passa novamente por Jason Scott Lee, o Mogli, da primeira adaptação do estúdio em live-action. Ele será Borin Khan no filme que está gerando polêmicas e debates infindáveis desde seu anúncio: “Mulan”.
Banho de América
Até hoje é difícil mensurar a relevância de Mulan para a sociedade. Além de inspirar o nome de muitas crianças, o 36º filme de animação da Disney extrapolou o universo cinematográfico e se tornou um dos símbolos da cultura chinesa mais conhecidos do mundo. Por isso, quando o primeiro trailer do remake da trama que acompanha a jovem chinesa que se disfarça de homem para substituir o pai em uma guerra foi lançado, tantos debates vieram à tona.
A polêmica resgata o filme de 1998, época em que a China ainda não era tão relevante para a indústria de cinema americana. O longa adapta a lenda de Hua Mulan, uma lendária guerreira chinesa do período das dinastias do norte e do sul (386–536). O primeiro poema sobre a Balada de Mulan foi encontrado numa antologia de musicais orientais do século XI ou XII. E no ano 1593, o autor Xu Wei dramatizou esse conto.
Na Balada de Mulan, a protagonista pertence a uma família com apenas dois homens, o irmão, que é uma criança, e o pai, velho e fraco, que é chamado para defender a China de invasores Rouran, um grupo que habitou a Ásia Central entre 330 e 555. Buscando proteger o pai, Mulan deixa os familiares para trás e se transveste de homem para tomar o lugar dele na guerra.
Ela passa 12 anos no exército, onde se especializa em artes marciais, luta de espadas e arco e flecha. Ao vencer a batalha, a guerreira recusa um cargo oficial e volta para casa são e salva para ser recebida com a alegria pela família. Só ao vestir novamente suas roupas antigas é que os companheiros de exército percebem que ela era, na verdade, uma mulher.
Antes de roteirizar esse conto, a equipe de produção enviou uma parte da equipe criativa a diversos lugares da China para absorver as referências locais, entender a cultura e usar o local como inspiração. Apesar disso, a animação tem inúmeras diferenças para o poema original.
O dragão Mushu, espírito guardião da família de Mulan, que é dublado no filme pelo ator Eddie Murphy, é uma das novidades. Considerado um dos principais personagens da narrativa e um dos mais icônicos do estúdio – referenciado em diversos jogos, spin-offs e até na série “Once Upon a Time” -, ele não aparece na história clássica.
Gri-Li, o carismático grilo da sorte (e muitas vezes do azar) que Mulan ganha de presente da sua avó também não é citado no conto. Enquanto isso, na animação, ele é quase fundamental para o andamento da história, pois atrapalha a possibilidade de seu casamento, ajuda o grupo a derrotar o vilão e participa ativamente da campanha para a vitória.
Até o par romântico da protagonista, Li Shang, capitão do exército em que Mulan serve, e a simpática avó dela, foram invenção dos roteiristas para dramatizar a ação e conquistar o público.
Como a história já conta, a animação foi um sucesso estrondoso. Bem-recebida pela crítica e pelo público, e com números de bilheteria expressivos. Os US$ 90 milhões de investimento geraram um faturamento de 304,3 milhões de dólares. Entretanto, a obra não atingiu bem o público que, teoricamente, deveria ser o alvo. “Mulan” foi um fracasso retumbante no país mais populoso do planeta.
De olho nos ancestrais
Hoje, vinte anos depois, a China é o segundo maior mercado cinematográfico do mundo. Enquanto em diversos lugares o número de pessoas indo ao cinema diminui, o país asiático continua em crescimento exponencial. No final de 2010, os mais de 1,3 bilhão de habitantes contavam com aproximadamente 6 mil salas de cinema, atualmente são mais de 65 mil. Leia mais sobre o crescente mercado do cinema chinês aqui.
Hollywood não só entendeu o poder da nação, como diversos filmes americanos passaram a depender tanto do país asiático que aceitam até se sujeitar a duras imposições, inclusive de censura. É de olho nessa fatia profundamente representativa de mercado que a Disney chega aos dias de hoje com uma nova versão da história, anunciada para março de 2020.
O longa será dirigido por Niki Caro (“O Zoológico de Varsóvia”), que será apenas a quarta mulher a comandar um blockbuster com orçamento de mais de US$ 100 milhões. Anteriormente, a Disney chegou a convidar os diretores asiáticos Ang Lee, vencedor do Oscar de Melhor Diretor duas vezes (“O Segredo de Brokeback Mountain” e “As Aventuras de Pi”), e Jiang Wen (“Competição Em Shangai”), conhecido pela participação como ator em “Rogue One: Uma História Star Wars”.
Três mulheres e um homem (Elizabeth Martin, Lauren Hynek, Rick Jaffa e Amanda Silver) são responsáveis pelo roteiro e Liu Yifei viverá a icônica guerreira, após ser selecionada em um processo seletivo com mais de 1.000 atrizes. Além de Jason Scott Lee, o elenco contará com Donnie Yen, Yoson An, Gong Li e Jet Li.
Os planos para o remake já se arrastam desde 2010, mas o projeto sempre encontrava um imprevisto e era adiado. Até que, em 2015, a produção finalmente começou. Desde então, a cada nova notícia que surge sobre a produção do longa, um novo debate se inicia.
Ao mesmo tempo em que o elenco apresentado, composto quase inteiramente de chineses, aliviou os fãs que temiam um possível embranquecimento dos personagens, a possibilidade do filme não ser um musical e personagens importantes da animação não estarem presentes, não agradou a maior parte do público.
“Sinto que muitos dos elementos que tornava o desenho da Mulan uma história dos descendentes de asiáticos, filhos da diáspora, estão sendo suprimidos para puxar o saco da China”, lamenta o cineasta e Youtuber asiático-brasileiro Leo Hwan. Apontamentos desse tipo não são inéditos, mas têm sido cada vez mais frequentes e retumbantes após o lançamento do primeiro trailer oficial.
“Mulan está deixando de ser um épico sobre afirmação para se tornar uma saga patriótica, mostrando que Hollywood está priorizado o sucesso financeiro”, apontou a jornalista e roteirista Jingan Young, em artigo publicado no site The Guardian.
“Eu tinha sete anos de idade quando foi lançado e, como uma garota metade chinesa, nascida e crescida em Hong Kong, o filme teve uma importância especial para mim. A combinação de valores locais, números musicais e uma protagonista feminina que chuta bundas enquanto mantém sua integridade moral e reforça os valores familiares. Minha espada da Mulan, meu boneco do Mushu e meus brinquedos estão salvos em algum lugar de Hong Kong”, lembra Young.
A Disney parecer estar arriscando muito para conversar com o público chinês. De acordo com a atriz chinesa Gong Li, uma das estrelas do remake, o investimento será de US$ 300 milhões. O valor é quase igual ao faturamento total da animação de 1998 e colocaria o longa em 5º lugar na lista de filmes mais caros já feitos (sem ajuste de inflação).
Mesmo com os números exorbitantes, a proposta de retirar elementos categoricamente americanos que poderiam afastar o público chinês, a contratação de atores locais, o roteiro se inspirar no conto chinês, ao invés da animação, e todos os esforços para tornar o remake mais palatável para a China, a produção ainda corre risco de fracassar.
Se por um lado, produções hollywoodianas voltadas majoritariamente para o público local, como “Kung Fu Panda”, se tornam sucesso instantâneo e estrondoso, por outro a situação pode não ser tão positiva. O filme “A Grande Muralha” dirigido por Zhang Yimou (“Shadow”) e estrelado por Matt Damon e Pedro Pascal, por exemplo, não chegou nem perto dos resultados esperados.
Após o trailer de Mulan, parte do público local se manifestou com opiniões dúbias. Uma parte aponta os erros históricos na adaptação, outra sente falta da presença das características tipicamente americanas que marcaram presença em 1998, com personagens e a música. No entanto, o longa também vem recebendo críticas positivas. A atriz Ming-Na Wen, que deu voz à Mulan na animação, se apresentou empolgada com o lançamento.
“Épico! Entusiasmada para ver esse #Mulan. Amando ver meus amigos @rosalindchao e @tzima8 como seus pais. #YifeiLiu está incrível como a guerreira”.
Grande parte do público que se apaixonou pela versão original, porém, agora se sente traída. “Isso deixa os americanos-asiáticos onde eles sempre estão: às margens, invisíveis e ignorados. Nossa existência dividida e hifenizada significa que somos americanos demais para a Ásia e asiáticos demais para a América. Como nem a América, nem nossos ancestrais nos reivindicam, caímos na rachadura entre eles”, comentou o roteirista e quadrinista Joshua Luna.
“Asiáticos-americanos tem uma sensibilidade afiada para detectar orientalistas, embranquecimento ou narrativas como homens brancos salvadores (incluindo o roteiro anterior em que o Li Shang seria um mercador branco), mas o que nos fazemos quando existem asiáticos na tela, mas eles não falam para nossas experiências?”
“Para asiáticos-americanos, é dolorosamente raro ver nossos reflexos na tela. ‘Mulan’ foi muito importante para nós em 1998 e é importante agora”, ele continua. “A Disney, como toda a Hollywood, está desesperada para conseguir o dinheiro chinês, mas sabe que deve cumprir as rígidas regras de censura e co-produção para conseguir. Então, ao invés de aproveitar o sucesso que fez nos EUA e em outros lugares do mundo, está se concentrando em abrandar os ânimos da China. Por isso, todos os fatores que contribuíram para o filme ser tão apreciado entre nós estão sendo tratados como erros”, declara.
A opinião dele é reverberada por Hwan. “Mulan se passa na China, mas, para mim, conversa mais com os descendentes de asiáticos que vivem nas Américas do que com os jovens que vivem na China de hoje”, opina o cineasta. “É a história de uma menina que sofre com a pressão de ter que se encaixar em uma cultura tradicional. Em caixinhas, padrões e estereótipos. Nós, que estamos e, ao mesmo tempo não estamos conectados com a nossa cultura, nos vemos na Mulan”, explica.
Para ele, Mulan é um ícone para os descendentes de asiáticos justamente pela estética americana da Disney e isto está se perdendo. “Existe um movimento para apagar da trama o que desagradou os chineses na animação, ou seja, tudo que faz a personagem uma asiática-americana e não uma asiática em si”, comenta. “No início ela rejeita sua herança cultural e muitos de nós passamos por isso. No final, ela abraça sua identidade. Estou vendo que tudo isso está sendo esvaziado”, lamenta Hwan.
Se não for adiado de novo, falta menos de um ano para o lançamento do live-action de Mulan, mas o estúdio tem um desafio oneroso pela frente. Enquanto a animação de 1998 foi acusada de ser americana demais para a audiência chinesa, ir no caminho contrário pode se transformar em um problema tão turbulento quanto. Será que, no final, a Disney vai conseguir falar mandarim e continuar sendo relevante para o restante do planeta?