Cine Holliúdy e a beleza do regionalismo no cinema nacional
Do gaúcho ao potiguar, do amazonense ao carioca, cada canto pode ser representado de forma única e ainda assim são todos pertencentes ao mesmo país.
Quando Halder Gomes lançou “Cine Holliúdy”, em 2012, ele provavelmente não esperava que seu filme ganhasse tanto destaque. Ao menos não fora do Ceará. Além de falar sobre uma realidade muito própria, a linguagem escolhida pelo também roteirista, era usar todas as peculiaridades da fala local. Com diálogos rápidos, frases que atravessam frases e termos que só carregam significados para quem nasceu e viveu numa parte muito específica do nordeste, o filme precisou chegar com legendas em algumas cidades, mas se tornou um grande sucesso comercial.
Com a trama ambientada no interior do Ceará, nos anos 70, “Cine Holliúdy” conta a saga do herói Francisgleydisson (Edmilson Filho), um homem comum que luta para que o seu tão amado cinema não pereça diante da terrível ameaça da chegada da televisão.
Com um roteiro que intercala o saudosismo pelos cinemas de rua com um humor quase ingênuo, uma das suas grandes relevâncias é levar para o Brasil um pouco do Ceará a partir das falas. Um regionalismo audiovisual, que é tão antigo quanto ao da própria literatura de Guimarães Rosa e Dalton Trevisan. Que não sente vergonha da fala popular, e que justamente por isso a torna uma parte tão relevante da trama. Aproveitando o lançamento de “Cine Holliúdy 2: A Chibata Sideral”, o Cinema com Rapadura relembra como outros diretores brasileiros levaram esse regionalismo, do seu ambiente para o resto do país.
Os primeiros registros
No início do século XX, a produção cinematográfica brasileira era muito restrita ao eixo Rio-Minas-São Paulo. Isso fez com que essa região “representassem” a cara do Brasil, vinculando – e limitando – a identidade nacional a esses três estados. Mas enquanto o cinema paulista e carioca, apesar de suas peculiaridades, expressavam um lado nacional muito conhecido, a produção mineira durante a década de 1920 abraçava mais o interior do Brasil e a figura do sertanejo e do sertão como um espaço de redenção.
Nesse período o cinema de Humberto Mauro desponta como um dos principais representantes deste lado interiorano do Brasil. Durante o chamado Ciclo de Cataguases (em referência ao município mineiro que serviu de locação para seus filmes), Mauro produziu três obras que buscavam abordar o que havia de mais interiorano no Brasil (apesar de restrito à Minas Gerais). Os três filmes produzidos pelo diretor nessa fase – filmes mudos, cabe ressaltar – intercalam o litoral (Rio de Janeiro), espaço de modernidade e avanço, com o interior (Minas Gerais), ambiente arcaico e mais ligados às tradições. São eles “Thesouro Perdido” (1927), “Braza Dormida” (1928) e “Sangue Mineiro” (1930).
Humberto Mauro foi muito influenciado pela poesia de Catulo da Paixão Cearense, que via o sertão como um espaço de redenção. Um local onde a pessoa, contaminada pela agitação e pela corrupção dos grandes centros urbanos, iria para a sua purificação (mesmo que essa não fosse sua intenção inicial). Neste sentido há um olhar romântico, como aponta a socióloga Lucia Maria Lippi:
“o sertanejo aparece como símbolo da nacionalidade pelo seu admirável modo de vida, caracterizado pela destreza e simplicidade. Natureza e organização social se fundem na base deste julgamento positivo, opondo-se à vida degradada e corrompida do litoral, ou seja, das cidades”.
“Sangue Mineiro” (1930)
As chanchadas
Durante a década de 1940, o cinema mineiro perde espaço e relevância nacional para o eixo Rio-São Paulo, em especial para as chanchadas que abraçavam a comédia musical e os filmes mais carnavalescos, lotando salas e mostrando um Brasil muito mais urbano e menos regional. As chanchadas não buscavam contemplar os diversos regionalismos presentes na cultura nacional, porém não negavam a existência de um brasileiro “quase estrangeiro”. E é assim que, sobretudo o nordestino, era retratado pelos filmes do período. O migrante era carregado de estereótipos que não criavam uma imagem do real nordestino, ao mesmo tempo que o separavam do homem da cidade grande no sudeste.
“Sai Dessa, Recruta!” (1961) conta com o ator baiano, Mário Tupinambá, interpretando um cabo do Exército no Rio de Janeiro. Enquanto todos os estereótipos são reforçados na construção da personagem, os demais oficiais são representados como o homem moderno, sem trejeitos e sotaques. O mesmo exagero no nordestino é visto em filmes como “O Camelô da Rua Larga” (1958) e “Quem Roubou Meu Samba?” (1959), que olham para o migrante como aquele que é exagerado pelos seus costumes e tradições, não reconhecendo o morador da capital – e aqui deve-se reconhecer como capital as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro – como um ser também construído a partir de peculiaridades.
Essas últimas duas obras citadas carregam ainda outra característica muito marcante do período ao olhar para o nordestino: a valentia, representada sobretudo através da mulher. A atriz cearense Nancy Wanderley foi quem realmente ficou conhecida em tais papéis. Porém, ela era conhecida por ser pernambucana no cinema, e não apenas ser pernambucana, mas ser evidenciada como tal.
Em “O Batedor de Carteiras” (1960), por exemplo, Nancy Wanderley é uma pernambucana, que vai ao Rio de Janeiro tentar a vida como doméstica. Sua pernambucanidade é deixada clara logo no início do filme quando ela salta do trem na Central do Brasil e é saudada por um “Salve a Bahia!”, de Mão Leve, personagem-título: “Sou pernambucana, visse? E meu nome é Honorina”. Imediatamente, Mão Leve se identifica como mineiro, deixando claro ao público quem é quem ali, e que nenhum deles é do Rio.
Há ainda que se reconhecer outra figura nordestina vendida pelas chanchadas: o deputado nordestino. “Na Corda Bamba” (1957) é possivelmente o primeiro registro dessa representação, mas é em “Virou Bagunça” (1960) que é visto o mais notório exemplo. Aqui não há apenas um deputado nordestino, mas um trio. Eles são convidados a se apresentar em um programa com uma mesa-redonda na TV Olho sobre a seca, mas um pouco antes de o programa começar, os parlamentares são confundidos com os membros de um trio musical.
“Quem Roubou Meu Samba?” (1959)
O Cinema Novo e o Cinema Marginal
Durante a ditadura militar, enquanto o chamado “Milagre Econômico Brasileiro” possibilitou que milhares de pessoas migrassem do campo para a cidade, em busca de emprego e oportunidades prometidos pelo governo da época, uma geração de novos cineastas, “liderados” por Glauber Rocha, buscaram fazer um cinema que fosse mais fiel a identidade nacional. O Cinema Novo, influenciado fortemente pela Nouvelle Vague francesa e o Neorrealismo italiano, pretendia se comprometer com o “verdadeiro Brasil” e construir um linguagem cinematográfica própria. E um dos elementos para isso estava no reconhecimento das peculiaridades do país, em especial do subdesenvolvimento.
É daí que surgem filmes como “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), que buscam mostrar o interior como um local tipicamente brasileiro. Mas se antes o sertão era o local da redenção, agora é o cenário da revolução. E, dotadas de um intelectualismo narrativo, nesse período surgem uma infinidade de obras que vão não apenas revelar o sertão, mas exaltá-lo em suas narrativas, muitas das quais foram adaptações literárias de autores modernistas que caminhavam no mesmo sentido, como “Vidas Secas” (1963). A adaptação do romance homônimo de Graciliano Ramos, dirigida por Nelson Pereira dos Santos é um dos mais importantes filmes da época e não nos poupa ao olhar para o nordestino como um reflexo do que há de mais real no país.
Esse mesmo olhar pode ser observado em “Barravento” (1962), obra-prima de Glauber Rocha, que narra as dores de um jovem que retorna ao vilarejo onde nasceu, no interior do litoral baiano. Ali, Firmino (Antonio Pitanga) tentará lutar contra as crenças religiosas de seus conterrâneos, sendo desacreditado por todos os locais. Essa representação acaba se tornando um marco para o cinema nordestino, evidenciando cada traço dos descendentes de escravos, dos costumes e das tradições locais. Não por acaso, o conflito ao final do filme é resolvido entre o protagonista e Aruã, um jovem que é tido como santo, através de uma luta de capoeira.
Enquanto isso, na contramão de todo o rigor elitista, típico do Cinema Novo, alguns diretores despontam como um suspiro de resistência com o chamado Cinema Marginal. Em uma espécie de antítese da propaganda otimista e moralista mostrada pelos militares, o Cinema Marginal estava mais interessado em evidenciar a pobreza, a prostituição e a violência que tomavam conta do Brasil. Ao mesmo tempo, esse foi um movimento que surgiu como uma crítica à forma “pacífica e cafona” que os cinemanovistas adotavam para construir suas narrativas.
Tendo na figura de Ozualdo Candeias o precursor do movimento, eram comuns obras que adaptavam os faroestes produzidos em larga escala, tanto nos Estados Unidos quanto na Itália. Por essa razão, há uma massiva produção brasileira do final da década de 1960 e começo da de 1970 que ficou conhecida como “western feijoada”. “Meu Nome é Tonho” (1969) é um dos mais expressivos filmes produzidos nesse formato, e um dos mais genuínos faroestes do Brasil. Enfatizando o interior de São Paulo, ambiente pouco explorado pelo cinema nacional, o filme é uma das mais bem executadas películas de Candeias e do Cinema Marginal, e lança um olhar pouco conhecido pelo público da capital (não apenas paulistana, mas de todo um Brasil urbano).
Mas talvez o melhor exemplo de como Candeias tinha um olhar expressivo ao caipira paulista está no filme “Zézero” (1974). Aqui, um homem do interior é conquistado com as imagens que os apresentam à modernidade, convencendo-o a deixar a sua vida e ir para a metrópole (São Paulo). Como o que há de mais potente no Cinema Marginal, somos apresentados às peculiaridades do protagonista – e, portanto, do interiorano – através dos conflitos da periferia da cidade grande. “Zézero” é uma das mais enfáticas obras do cinema nacional em evidenciar a existência de diversos “Brasis”.
“Zézero” (1974)
Cinema da Retomada
Outro grande momento que não nos poupa das especificidades do Brasil, surge durante o Cinema de Retomada, na década de 1990. Saindo da ditadura militar e após sofrer com a falta de incentivo que levou à extinção da Embrafilme (uma das principais produtoras de cinema nacional, criada em 1969 e vinculada ao Ministério da Cultura) durante o governo Collor, o cenário só mudaria com a Lei do Audiovisual, criada em 1993. Isso permitiu que o cinema nacional se estabelecesse “retomando” sua presença nas salas de cinema, em especial a partir de 1994.
Embora não tenha surgido como um movimento, e mesmo não se consolidando com características que aproximassem os filmes (a exceção fica, novamente, por conta de não esconder as mazelas dos governos com os diversos cantos do país), havia uma vontade muito forte de exaltar os brasileiros, em especial através da oralidade.
“Baile Perfumado” (1997), por exemplo, evidencializa o regionalismo através do carregado sotaque pernambucano. A trama acompanha um fotógrafo, Benjamin Abrahão, que decide fazer um filme com imagens reais de Lampião e seu bando. Para facilitar seu contato com o cangaceiro, Abrahão utiliza sua proximidade com Padre Cícero e assim realiza seu filme. Além do sotaque, a imagem do cangaceiro reforça o regionalismo da obra.
Quem retorna nesse período de Retomada, são alguns dos diretores do Cinema Novo, que agora enxergam a possibilidade de gravar filmes com maior incentivo e sem precisar fugir das garras da censura. Um dos cinemanovistas que embarca nessa leva é Cacá Diegues, que lança em 1996 “Tieta do Agreste”, adaptação do romance homônimo de Jorge Amado. A obra, que já havia sido adaptada para a TV em uma novela entre os anos de 1989 e 1990, fala sobre uma mulher, Tieta, que após a morte do marido decide retornar a sua cidade natal, no sertão baiano. Diegues ainda dirigiu “Orfeu” (1999), “Deus é Brasileiro” (2003) e “O Maior Amor do Mundo” (2006).
Embora os filmes que retratam o nordeste tenham se destacado, é importante ressaltar que a Retomada atingiu todo o território nacional, evidenciado de uma vez as diversas faces da brasilidade. Um exemplo digno de menção é “Houve uma Vez Dois Verões” (2002), do diretor gaúcho Jorge Furtado. Conhecido pelo icônico documentário, “Ilha das Flores” (1989), Furtado não se censurava ao mostrar as peculiaridades do seu Rio Grande do Sul, trazendo para a boca das personagens as tradicionais narrativas sulistas, carregadas de termos e gírias muito singulares. Jorge Furtado ainda realizou em parceria com o pernambucano Guel Arraes em “Lisbela e o Prisioneiro” (2003), outro filme que carrega o regionalismo no sotaque e nas tradições, embora aqui a dupla de protagonistas (Débora Falabella e Selton Mello) sejam mineiros.
“Tieta do Agreste” (1996)
O cearencês e o regionalismo
Hoje, filmes como “Cine Holliúdy” dependem de um sucesso de público para poderem ganhar destaque. A atual crise dos cinemas, que leva a uma supervalorização de um determinado nicho e faz com que obras menores tenham menos espaço, em especial quando se trata de cinema nacional, obriga que um filme chame muito a atenção do público para poder ter algum destaque.
“Cine Holliúdy” não apenas conseguiu atrair o público, como evidenciou essa vontade de se fazer um cinema essencialmente nacional. E mais do que isso, faz com que as pessoas queiram consumir mais cinema, popularizando uma arte que olha para o local e valoriza cada vez mais esses tantos Brasis que existe dentro do Brasil.
“Cine Holliúdy – A Chibata Sideral” superou “Capitã Marvel” em seu fim de semana de estreia em Fortaleza. Leia a crítica do filme aqui.