Cinema com Rapadura

Colunas   segunda-feira, 11 de março de 2019

O caminho depois de Mulher Maravilha e Capitã Marvel: a importância de ter mulheres no comando de filmes sobre heroínas

Dar oportunidades a diretoras e roteiristas não é somente uma questão de representação, mas uma chance de desviar do olhar masculino tão frequente na indústria do cinema.

“Capitã Marvel”, primeiro longa solo de uma heroína da Marvel, estreou no último dia 7 de março às vésperas do Dia Internacional da Mulher. Sendo estratégia do estúdio ou não, o filme por si só foi um marco não só para o MCU, mas também trouxe uma representatividade ainda pouco explorada no cinema, no gênero de super-herói e fantasia. Antes dele, “Mulher Maravilha”, de 2017, introduziu a primeira aventura protagonizada pela célebre guerreira amazona no Universo Estendido da DC, fazendo a cabeça, principalmente, de milhões de meninas pelo mundo.

Grande parte do sucesso de ambos os filmes, além do bom trabalho de suas respectivas atrizes protagonistas, foi de contratar mulheres para dirigir e roteirizar ambos os longas. Tivesse sido mantido o costume de chamar somente homens para comandar filmes de super-heróis, tanto a Marvel quanto a DC poderiam ter vacilado no retrato de suas heroínas mais poderosas, fazendo com que suas narrativas ficassem perdidas, ou não tivessem tanto impacto, no meio da visão masculina da história de uma mulher. Este conceito não é novo e é frequentemente trazido à tona quando a teoria do cinema é discutida em produções com protagonistas femininas: conheça o male gaze.

O que é o “male gaze”

Em 1975, a crítica de cinema Laura Mulvey cunhou o termo “male gaze” (“olhar masculino”, em tradução livre) em seu livro “Visual Pleasure and Narrative Cinema”. Na obra, ela argumenta que “a assimetria de poder baseada em gênero é uma forma de controle do cinema que foi designada para atender aos prazeres do espectador homem, conceito fortemente fundado em ideologias e discursos patriarcais”. Traduzindo: em produções audiovisuais, especialmente em filmes, o male gaze é aquele olhar direcionado à personagem feminina, fazendo com que os espectadores vejam a mulher sob o ponto de vista do homem.

Mulvey desenvolveu este conceito durante uma época do cinema hollywoodiano em que era quase impossível existirem trabalhos comandados por mulheres na indústria. Porém, mesmo nos dias atuais, o male gaze é constantemente perpetuado, especialmente em filmes com público predominantemente masculino.

Um dos maiores exemplos é “Transformers”, de 2007, dirigido por Michael Bay. Uma das cenas mais memoráveis tem Megan Fox se inclinando para checar o carro e a câmera captura cada curva de seu corpo enquanto ela fala. Sua personagem, que é o interesse romântico de Shia LaBeouf no longa, está lá sendo observada e transmitida ao público pelo olhar masculino do protagonista e do diretor, que não economizou nos ângulos para registrar seu corpo.

A repórter da Vanity Fair Joana Robinson também deu um bom exemplo do male gaze em ação: em janeiro, ela publicou em seu Twitter duas fotos da Arlequina, personagem de Margot Robbie no Universo Estendido da DC. Na primeira, pertencente ao filme “Esquadrão Suicida”, o centro da imagem não é em seu rosto, mas em seus seios. Na segunda, um frame de um teaser trailer do vindouro “Aves de Rapina”, o foco é outro: a expressão facial de Arlequina é o centro da foto. Além disso, as roupas são totalmente distintas. O uniforme da personagem em “Esquadrão Suicida” é sexy, todo rasgado, com shorts minúsculos. Em “Aves de Rapina”, porém, Robbie surge festiva e divertida, aparentemente não tão preocupada em ser sensual.

“Eu não consigo explicar exatamente a diferença entre o olhar masculino e feminino, mas eu sei identificá-los quando os vejo”.

A grande diferença pode estar, justamente, em quem comanda cada narrativa. “Esquadrão Suicida” foi dirigido por David Ayer, com uma equipe majoritariamente masculina. Mais do que somente as roupas, o filme tem algumas cenas em que explora a sexualidade de Arlequina, como um shot proposital e gratuito da bunda da personagem. “Aves de Rapina” será dirigido, roteirizado e produzido por mulheres, e a diferença no tratamento de sua personagem principal já é perceptível até mesmo em um teaser – neste caso, o female gaze (olhar feminino), que enxerga a mulher pelos olhos de outra, dificilmente tão focado em retratar seu corpo e seus atributos físicos.

É por esse motivo, mais do que somente a inclusão de mais mulheres em cargos de importância em Hollywood, que é preciso tê-las dirigindo e escrevendo histórias sobre personagens femininas: o tratamento é mais humanizado, focado em enxergar a mulher como um ser humano, com histórias diversas a contar e retratadas com empatia. “Mulher Maravilha” captou a essência da força da mulher para ter justiça no mundo, e “Capitã Marvel”, co-dirigido por Anna Boden e co-roteirizado por ela e Geneva Robertson-Dworet, soube mostrar a jornada de uma mulher igualmente poderosa descobrindo seu próprio valor. Sem o olhar feminino, tais características dificilmente seriam retratadas com a mesma potência.

O que os próximos filmes podem fazer

Tanto Marvel quanto DC possuem filmes sobre mulheres engatilhados para lançamento em um futuro breve: “Viúva Negra”, “Mulher Maravilha 1984” e “Aves de Rapina (e a Fantabulosa Emancipação de Arlequina)”. As três produções contarão com mulheres na direção.

“Viúva Negra” é um evento aguardado pelos fãs da Marvel desde o anúncio da personagem de Scarlett Johansson em “Os Vingadores”. Uma das únicas da equipe a não ter seu próprio filme solo, após muita cobrança o anúncio foi feito e a confirmação de uma mulher na cadeira de diretor, enfim, veio: Cate Shortland, de “A Síndrome de Berlin”. Também foi anunciado que Jac Schaeffer (“TiMER”) seria a roteirista, mas que Ned Benson (“Dois Lados do Amor”) também contribuirá com a história. O motivo não foi revelado.

Após as aparições da Viúva Negra nas produções Marvel, sua história de origem já é sabida: seu nome verdadeiro é Natasha Romanoff, uma russa que foi dada à KGB (serviço secreto da União Soviética) ainda criança para virar uma máquina de matar. Com o fim da URSS, Natasha deveria ser morta, mas conseguiu fugir para os Estados Unidos, onde virou assassina de aluguel.

Contos de espiãs russas existem aos montes, e são poucos os que fogem do padrão: ela é sempre uma mulher belíssima, muito sedutora e que usa o sexo para conseguir as informações que precisa e matar seus alvos. A própria Natasha correu o risco de ser retratada da mesma forma em alguns momentos durante suas aparições com os Vingadores. A esperança é que, com uma equipe composta por mais mulheres, sua história nos cinemas fuja dos clichês do gênero e que a personagem tenha o mesmo direito de outros espiões homens da ficção: de não fazer da sua sexualidade uma estratégia, ou que pelo menos seja retratada da mesma forma que um James Bond seria, ou como a personagem de Charlize Theron em “Atômica”: segura de si e agente dos seus desejos quando vai se envolver com alguém.

“Mulher Maravilha 1984” tem tudo para seguir os passos bem sucedidos do primeiro filme sobre a super-heroína mais famosa dos quadrinhos. Patty Jenkins retorna como diretora e, desta vez, co-roteirista do longa, o que facilita muito: já familiarizada com a personagem, agora Jenkins tem mais liberdade para continuar a saga da guerreira amazona, que deverá se passar na Guerra Fria.

O primeiro filme, “Mulher Maravilha”, foi recebido com grande expectativa: a DC saiu disparada na frente da Marvel e veio com a primeira produção de super-heróis focada em uma mulher – e a Warner, estúdio responsável por lançar as produções da editora, tinha muito a perder caso o filme fracassasse, já que “Batman vs. Superman” e “Esquadrão Suicida” tinham sido duas bombas de crítica. Ainda que os dois títulos tivessem lucrado muito bem, a DC precisava de um filme com boas avaliações, e seria vergonhoso fazer feio com o primeiro longa com uma protagonista feminina. Felizmente, “Mulher Maravilha” foi um sucesso e tornou-se referência a ponto de ter ficado impossível não usá-lo como ponto de partida para discutir os resultados de “Capitã Marvel”, primeiro esforço da Marvel de fazer algo do gênero. O melhor de tudo é que ambos os longas prosperaram, cada um a sua maneira.

O último é “Aves de Rapina”. Este conta com uma equipe quase toda feminina até agora: a estreante Cathy Yan será a diretora, Christina Hodson (que também fez “Bumblebee”) será a roteirista, e Margot Robbie volta à DC como protagonista e produtora executiva. Sua Arlequina, muito elogiada entre o mar de críticas que “Esquadrão Suicida” recebeu, será o cerne da trama e terá companhias mais agradáveis desta vez: sem a presença do Coringa e seu relacionamento abusivo, ela está livre para seguir uma nova jornada rodeada de outras personagens igualmente fortes.

Conforme o tweet de Robinson indica, é notável a mudança no tom da personagem: sem as roupas minúsculas e sem o enfoque do olhar masculino, Arlequina aparece nas primeiras imagens de “Aves de Rapina” com ares de que homem algum vai ditar seu comportamento daqui para frente – e considerando que grande parte da produção é encabeçada por mulheres, dificilmente haverá um close da traseira de Margot Robbie desta vez.

Jacqueline Elise

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