Cinema com Rapadura

Colunas   sábado, 09 de fevereiro de 2019

O contra-ataque da Netflix: como a inimiga de Hollywood se tornou inspiração para a indústria

Em 2018, a rede de streaming se tornou o inimigo a ser batido.

Em 2018, poucas empresas foram tão lembradas nas rodas de conversa e mesas de bares como a Netflix. A companhia norte-americana criada em 1997 como um serviço de compra e aluguel de DVD acabou de ter o ano mais emblemático de sua história. Antes preterida por festivais, questionada por produtores e criticada pela indústria cinematográfica, a Netflix potencializou a derrocada da TV, revolucionou a forma de se produzir conteúdo, criou tendências e se tornou o inimigo a ser batido.

O caminho de 21 anos percorrido pelos fundadores Reed Hastings e Marc Randolph desde a fundação, na Califórnia, até alcançar os milhões de assinantes atuais foi complexo. A trajetória passa por mudanças de perspectivas e a importância de saber se adequar ao cenário. Tudo isso começou já no ano da fundação. Percebendo a ascensão do mercado de vídeos físicos, eles lançaram a primeira loja online de aluguel de DVDs do mundo. Com 30 funcionários e 925 títulos disponíveis, entraram em disputa tímida com a gigante Blockbuster.

Foi Marc Randolph que incentivou a ideia de direcionar o conteúdo de acordo com o usuário. Ele deixou a empresa em 2004, bem antes do seu auge.

Em 2000, com quase 300 mil usuários, mas dependendo do serviço de correio americano, Hastings e Randolph ofereceram a empresa para compra por 50 milhões de dólares para a própria Blockbuster. Ela topou, mas impôs demandas que a Netflix julgou inconcebíveis. O negócio não foi para frente e, em 2002, a empresa de streaming executou seu primeiro contra-ataque ao fazer uma oferta inicial na bolsa de valores, vendendo 5,5 milhões de ações por US$ 15,00 cada. No ano seguinte, a Netflix finalmente registraria o primeiro lucro. A Blockbuster, que até então era a maior rede de locadoras de filmes e videogames do mundo, fechou as portas em 2013.

Já em 2005, a Netflix contava com um catálogo de 35 mil filmes diferentes e distribuía aproximadamente 1 milhão de DVDs todos os dias. Eles até consideraram disponibilizá-los de forma online, mas com as dificuldades impostas pela qualidade da internet naquele momento, a mudança para o formato que se conhece hoje aconteceu apenas em 2007.

A transformação do modelo de negócio, porém, não foi tranquila. Ao mesmo tempo em que a empresa possuía mais de 100.000 DVDs físicos, a versão online contava com apenas 1.000 obras audiovisuais. Foi neste período que surgiu uma das soluções mais importantes da história da empresa: o sistema de recomendação. Essa ferramenta, considerada uma das maiores armas da Netflix até hoje, garantia que as pessoas ficassem mais tempo na plataforma. A partir daí, o serviço adquiriu novos assinantes sem perder os antigos e, por isso, passou a oferecer mais produtos.

Assim, a Netflix expandiu e ganhou o mundo. O primeiro teste de streaming internacional foi realizado no Canadá em 2010. Logo depois, América Latina e Caribe. Atualmente, mais de 190 países podem assistir aos filmes e séries de TV online. Esse processo laborioso, mas bem-sucedido da Netflix chamou a atenção de investidores, da mídia, impactou a indústria cinematográfica e, naturalmente, impulsionou o surgimento da concorrência.

Reed Hastings, CEO da Netflix, parece bem feliz, né?

O Impacto na Indústria

Para o bem ou para o mal, é incontestável que a Netflix foi um divisor de águas. O pioneirismo da empresa, com todas suas inovações e ferramentas, revolucionou a forma como se pensa o cinema. A conveniência de ter um catálogo completo, dinâmico e intuitivo por um preço razoável em mãos ao invés de ter que ir aos confins da internet para fazer downloads ilegais, impactou até a relação das pessoas com a pirataria. A ideia era tão oportuna que é até intrigante não ter sido desenvolvida antes (apesar de terem tentado).

Enquanto crescia para o mundo, a companhia assistiu ao surgimento e ascensão de concorrentes diretos (mesmo que digam o contrário). Atualmente, o Amazon Prime tem mais de 100 milhões de assinantes, mas estima-se que apenas 5 milhões consomem os conteúdos originais. O Hulu encerrou 2018 com mais de 25 milhões de assinantes, com ganho líquido de 8 milhões de dólares por ano. O Roku anunciou 27 milhões de assinantes e a Fire TV, serviço de streaming da Amazon para televisões, passou dos 30 milhões. Apesar disso, a Netflix continua reinando soberana no topo: são mais de 139 milhões de assinantes.

Seguindo diretrizes específicas, o caminho para o lucro passou a não depender necessariamente da bilheteria de um filme específico e, sim, de conseguir abraçar seu público geral. Nos primeiros anos, a rede de streaming percorreu uma estrada pavimentada apenas por obras de outras produtoras, mesmo já licenciando e distribuindo alguns filmes independentes.

Desde o início, os fundadores acreditavam que possuir seu próprio conteúdo era inevitável para a saúde do negócio. Sabiam que, com o crescimento da rede, a plataforma arriscaria ficar sem nada em seu catálogo graças aos contratos com produtoras e canais de TV que se tornariam cada vez mais caros.

Em 2012, a companhia começou a desenvolver aquilo que posteriormente se tornaria seu maior trunfo. Em parceria com uma rede norueguesa, criou “Lilyhammer”, série que acompanha a vida de Frank Tagliano, um ex-gângster de Nova York que, após testemunhar contra um grande mafioso é colocado no programa de proteção à vítima e se muda para uma pequena cidade na Noruega. O seriado foi cancelado em 2015, após três temporadas, mas já tinha marcado o início de uma nova era para a Netflix.

Desde então, a criadora de “House Of Cards” (primeira produção desenvolvida exclusivamente pela plataforma) se tornou uma das maiores produtoras de conteúdo do mundo. Em 2017, a companhia alcançou o topo na lista de empresas que mais produzem séries.

Foi em 2018, entretanto, que a Netflix abriu o cofre e fez algo sem precedentes. Ela desenvolveu cerca de 90 mil minutos e aproximadamente 1.500 horas de séries, filmes e documentários originais. Segundo levantamento da Quartz, seriam necessárias mais de quatro horas por dia, todos os dias do ano, para ver tudo. São nove semanas consecutivas para conseguir assistir aos conteúdos da rede de streaming produzidos nesse ano.

A ideia de produzir conteúdos sem filtros e em doses alopáticas agradou o público. O número de assinantes continua subindo vertiginosamente e produções voltadas para determinados nichos agradaram. “House of Cards”, “Stranger Things”, “Orange Is The New Black” e outras séries originais já chegaram ao mercado ganhando diversos prêmios e elogios da crítica. A qualidade é constantemente reverenciada. Tanto é que, em 2014, a Netflix debutou no Oscar, a maior premiação do cinema mundial, com a indicação de A Praça Tahrir” concorrendo a Melhor Documentário. E, em 2018, arrematou seu primeiro prêmio na competição, com o ultra elogiadoÍcaro”.

Apesar disso, a empresa ainda é vista com descrença pelas suas aventuras no mundo do cinema. Não é de hoje que ela é acusada de “estragar” a experiência da tela grande ao levar obras audiovisuais para a tela de celulares e tablets. Steven Spielberg e Christopher Nolan já criticaram abertamente a empresa (o diretor de “Dunkirk” voltou atrás pouco tempo depois e a chamou de revolucionária). A rede de streaming também foi (e tem sido) preterida e ignorada pelos organizadores do tradicional Festival de Cannes, que ainda não enxergam a plataforma com bons olhos.

E é por isso que 2018 que foi tão decisivo para a Netflix. Com 112 indicações no Emmy Awards, o streaming venceu uma batalha histórica contra a HBO, que era a mais lembrada pela competição há 18 anos.

Porém, foi o lançamento de alguns filmes na plataforma que a catapultou para alcançar o patamar de qualidade e influência que possui agora. Com grandes nomes da indústria envolvidos, as produções tiveram repercussão ensurdecedora, do nível das grandes produções hollywoodianas.

Os sinais de que o apogeu estava próximo já se davam com o lançamento de “Bright”, no final de 2017, e “The Cloverfield Paradox”, no começo de 2018. Com um orçamento de 90 milhões de dólares, o primeiro conta com Will Smith, um dos atores mais queridos de Hollywood, e foi dirigido por David Ayer, da superprodução “Esquadrão Suicida”. O segundo retomou uma franquia reverenciada, realizou campanha de marketing ousada, com direito a trailer no Superbowl e estrear totalmente de surpresa na plataforma. 

Os 5 milhões de espectadores na primeira semana de “Cloverfield” e os 11 milhões na estreia de “Bright” pavimentaram o caminho para o que viria a seguir. Só na semana de lançamento, “Bird Box” alcançaria mais de 45 milhões de usuários, o recorde da plataforma. O número de espectadores já chegou a 80 milhões de pessoas e o filme estrelado por Sandra Bullock sobre uma mãe que tenta salvar os filhos em um mundo ameaçado por algo misterioso se tornou um marco na indústria.

E os números não são as únicas provas do sucesso comercial. Os milhares de memes que surgiram na internet referenciando a obra contribuíram para gerar buzz. A comoção foi tão grande que teve gente que parou no hospital por tapar os olhos com as vendas e tentar emular situações do filme. A Netflix, inclusive, teve que vir a público pedir para que as pessoas não tentassem imitar o que assistiram.

“Não acredito que eu tenho que dizer isso, mas: POR FAVOR NÃO SE MACHUQUEM COM ESSE DESAFIO BIRD BOX. Nós não sabemos como começou e apreciamos o carinho, mas o Garoto e a Garota têm apenas um desejo para 2019 e é que vocês não acabem no hospital por causa de memes”.

O filme interativo “Black Mirror: Bandersnatch” é outro exemplo de vanguarda da Netflix. O longa mostra um jovem programador na sua trajetória para criar um jogo em que os finais vão mudando segundo escolhas do jogador. Em exercício de metalinguagem, o público pode escolher as decisões do protagonista – desde qual cereal comer no café da manhã ao que falar na terapia.

Ao criar finais distintos e maleáveis, a companhia desenvolveu um produto voltado para a grande massa que usa ferramentas complexas de produção e programação, é difícil de ser pirateado e ressignifica a forma de se consumir conteúdo. No cenário de crescimento da concorrência e na busca por resultados ainda mais satisfatório, esse pode ser o próximo trunfo da companhia.

Lembrando que “Bandersnatch” não foi a primeira produção interativa da Netflix.

Não fosse, porém, por “Roma”, essa coluna não estaria sendo escrita. O filme roteirizado e dirigido pelo vencedor do Oscar Alfonso Cuarón (“Gravidade”) talvez seja a obra mais importante no catálogo. Ambientado na Cidade do México e com um toque autobiográfico, a película acompanha a vida de uma empregada doméstica que trabalha para uma família de classe média.

O enredo aparentemente simplório é ofuscado pela maneira como é conduzido. De forma emocionantemente bela, amarga e com os pés no chão, a obra transforma a história de uma mulher comum em uma obra de arte. Quando estreou no Festival Internacional de Cinema de Veneza, em agosto de 2018, a crítica especializada prenunciava o estouro que viria.

Atualmente, é uma tarefa complicada encontrar alguma lista de melhores filmes de 2018 em que “Roma” não esteja inclusa. A estratégia de levar o longa para os cinemas antes da estreia oficial na plataforma foi extremamente bem sucedida. Entre as indicações, estão Globo de Ouro, PGA Awards, BAFTA, Sindicato dos Diretores e mais de 100 (isso mesmo!) prêmios. E então a glória máxima: 10 indicações ao Oscar.  

Além da lembrança para Melhor Filme Estrangeiro, a obra disputa os prêmios para Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Atriz (Yalitza Aparicio), Melhor Atriz Coadjuvante (Marina de Tavira), Melhor Roteiro original, Melhor Edição de Som, Melhor Mixagem de Som, Melhor Direção de Arte, Melhor Fotografia. Ao lado de “A Favorita”, é a obra com mais indicações neste ano.

O filme produzido em espanhol gravado na Cidade do México por um diretor estrangeiro com atores desconhecidos para uma plataforma de streaming caminha para ser o mais importante do ano. O feito histórico simboliza, talvez, o início de uma nova era em Hollywood, tão apegada a tradições. A notícia de que Jorge Antonio Guerrero pode não comparecer ao Oscar porque já teve o visto negado três vezes, retrata o quão inédito é esse momento.

No vídeo abaixo, o diretor Alfonso Cuarón, após ser questionado pela imprensa sobre o porquê de ter escolhido distribuir “Roma” pela Netflix, sendo que ela é criticada por, entre outras coisas, estragar a experiência cinematográfica, responde: quais cinemas americanos exibiriam um filme mexicano, filmado em preto e branco, falado em espanhol? 

A coroação para o sentimento de que a empresa vive seu melhor momento foi adquirir o rótulo de ser o primeiro serviço de streaming da história a ser aceito como integrante do Motion Picture Association of America (MPAA), entidade criada para defender os interesses dos maiores produtores de cinema dos Estados Unidos. Sentada agora ao lado de nomes como Sony Pictures, Paramount, 20th Century Fox, Universal e Warner Bros, a Netflix quebra mais um paradigma e deve usar sua experiência para ajudar o grupo a combater a pirataria.

O que vem agora?

Mas calma que nem tudo são flores. Já é possível enxergar no horizonte alguns desafios complicados que a Netflix terá que enfrentar em um futuro bem próximo. Em relatório divulgado na segunda quinzena de janeiro, a empresa apresentou um arrecadamento de US$ 4,19 bilhões. A expectativa dos analistas era que o faturamento chegasse aos US$ 4,21 bilhões.

A diferença é sutil, mas alinhada ao aumento de 18% no preço da assinatura nos EUA, acendeu um sinal de alerta. O problema é que, com o aumento da concorrência e a perda de algumas obras, a companhia dificilmente vai conseguir crescer na mesma velocidade que vem fazendo nos últimos tempos. Um exemplo sintomático da fragmentação de conteúdos é o aumento da pirataria após anos de declínio.

Nesse cenário, será fundamental que a companhia tome providências para manter a fidelidade da sua centena de milhões de usuários pagantes ao mesmo tempo que batalha para converter novos devotos.

Entretanto, o maior inimigo da pioneira Netflix parece que ainda nem deu as caras. Há tempos, a Disney deve protagonizar os pesadelos de Reed Hastings, e agora o Disney Plus finalmente sairá do papel. Reunindo toda a sorte de produtos da Pixar, Marvel, “Star Wars”, National Geographic e da própria Disney, a plataforma fará sua estreia em 2019 e já anunciou diversos produtos que devem movimentar todos os sites sobre cultura pop nos próximos meses. Além de contar com algumas das maiores propriedades intelectuais do mundo, as séries sobre “Star Wars”, Marvel, “High School Music” e “Monstros S/A” serão as primeiras apostas da empresa para conquistar o lugar em que a dona de Stranger Things” está.

Em sua trajetória, a Netflix enfrentou corporações históricas, criou tecnologias inovadoras, transformou a forma de se produzir conteúdo, potencializou a derrocada das TVs a cabo e revolucionou Hollywood. Lá atrás, com poucos recursos, a empresa conseguiu desbancar a maior locadora de vídeos do mundo. Será que agora, no seu auge, ela consegue bater de frente com a maior conglomerado de mídia de que se tem notícia? O tempo dirá.

Breno Damascena
@brenodamascena_

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