Cinema com Rapadura

Colunas   domingo, 20 de maio de 2018

A Guerra Infinita entre a Netflix e o Festival de Cannes

Entenda porque a rede de streaming não exibe seus filmes na mostra europeia

Neste 19 de maio, chegou ao fim a 71ª edição do Festival de Cannes, um dos eventos sobre cinema mais tradicionais e relevantes do mundo. Criado em 1946 pelo Ministro da Educação e Belas-Artes da França Jean Zay, a cerimônia é reconhecida por ter revelado grandes cineastas e exibido pela primeira vez alguns dos filmes mais emblemáticos da história.

O Festival, que é destacado por promover a inclusão, aceitando projetos independentes e dando espaço para a diversidade – nos últimos 10 anos, sete países diferentes foram vencedores do prêmio máximo, a Palma de Ouro -, buscou ser ainda mais democrático este ano. É a primeira vez que são exibidos filmes oriundos do Quênia (“Rafiki”, de Wanuri Kahiu) e da Arábia Saudita, que voltou a abrir os cinemas do país (em 2017) após 35 anos de proibição.

Além disso, em resposta aos inúmeros escândalos sexuais na indústria hollywoodiana (encabeçad0s pelo ex-produtor Harvey Weinstein), um disque-denúncia foi criado para proteger as mulheres de possíveis agressões durante o evento. E, apesar do número pequeno de diretoras na competição principal (apenas três), o júri foi composto por cinco mulheres e quatro homens, sendo que a atriz Cate Blanchett (“Thor: Ragnarok”) era a presidente.

Outro ponto que dá ao festival um aspecto mais inovador é a quantidade de diretores novatos disputando a Palma de Ouro: 10 dos 21 filmes. E, claro, a variedade considerável de mostras paralelas à competição principal que existem, incluindo uma premiação especial para o melhor cineasta estreante em longas.

Protesto realizado pela equipe do documentário luso-brasileiro “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos”

Porém, em meio à aparente agenda progressista de Cannes, surge a Netflix. A rede de streaming, que tem mais de 110 milhões de assinantes e ultrapassou o valor de 100 bilhões de dólares, parece ter se tornado uma pedra no sapato da competição e vem incomodando grandes nomes do cinema.

O Fator Streaming

Ainda em 2015, Ted Sarandos, diretor de conteúdo da Netflix, visitou o festival para comprar os direitos de exibição das obras em que enxergasse maior potencial – prática comum entre estúdios. Lá, foi questionado por um jornalista se tinha ciência de que o modelo de negócio da plataforma ia “acabar com o cinema”. A atitude endossou o que já vinha sendo discutido há algum tempo, mostrando que não é de hoje que a empresa é non grata entre os grandes da indústria.

Com a proposta de oferecer ao público filmes sob demanda e por um preço bem abaixo do usual, o empreendimento, que há alguns anos surgiu como um serviço de entrega de DVD pelos correios, já expandiu para mais de 190 países e, hoje, atormenta um mercado até então consolidado. O incômodo foi potencializado quando a empresa decidiu não só distribuir produções de outros estúdios, mas investir na criação do próprio conteúdo.

Surgiu, então, a outra vertente. Além de ser uma ferramenta, a Netflix se consolidou como um grande player do mercado. Só em 2018, a companhia pretende investir mais de US$ 8 bilhões e chegar ao número de 700 séries originais e exclusivas.

“Eu juro solenemente não produzir nenhuma série ruim”

Os valores investidos nos longas-metragens também são cada vez mais significativos. A adaptação do anime “Death Note” custou entre 40 e 50 milhões de dólares; o filme “War Machine”, com Brad Pitt, teve um orçamento de US$ 60 milhões e “Bright”, com o astro Will Smith, chegou a US$ 90 milhões.

Enquanto isso, “The Irishman”, o longa que vai reunir Martin Scorsese, Robert De Niro, Al Pacino, Joe Pesci e Harvey Keitel, deve ser o mais caro do estúdio e da carreira do diretor, caminhando para ultrapassar os US$ 150 milhões investidos em “A Invenção de Hugo Cabret” – o seu maior orçamento até então.

O Dossiê Cannes

Tornando-se relevante e influente, era inevitável que, cedo ou tarde, as obras do estúdio passassem a ser lembradas pelos grandes festivais. Tanto é que, em 2014, a Netflix debutou no Oscar, a maior premiação do cinema mundial, com a indicação de “A Praça Tahrir” concorrendo a Melhor Documentário. E, em 2018, arrematou seu primeiro prêmio na competição, com o ultraelogiado “Ícaro”. Isso sem contar as quatro indicações que “Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississipi”[1] recebeu, incluindo Melhor Roteiro Adaptado, Atriz Coadjuvante e Fotografia).

Como então, em meio ao movimento de mudança e adaptação da indústria, o Festival de Cannes permanece tão fechado às produções da Netflix?

No regulamento do Oscar, por exemplo, o longa precisa ter passado em uma sessão comercial paga por pelo menos sete dias consecutivos, além, é claro, de não ter sido distribuída em outras mídias, como TV, DVD ou internet antes da estreia. Em Cannes, as normas eram um pouco diferente: a produção não poderia ter sido exibida fora do seu país de origem, nem selecionada para qualquer festival internacional, além de não ter ido para outras mídias.

Cumprindo os pré-requisitos obrigatórios, em 2017 a Netflix fez história ao exibir seu primeiro filme competitivo no festival: “Okja”. O diretor artístico do Festival de Cannes, Thierry Fremaux, afirmou que era um voto de confiança à empresa, com a esperança de que após estrear na competição, as produções originais da companhia iriam para os cinemas.

Dirigito por Bong Joon-ho, o longa sul-coreano estrelado por Tilda Swinton, Paul Dano, Seo-hyun Ahn e Jake Gyllenhaal teve boa aceitação da crítica, mas uma recepção complicada em Cannes. Quando o nome da companhia apareceu, ainda nos créditos iniciais, o público de jornalistas se dividiu entre as vaias e aplausos. Para completar, o projetor exibiu o filme de forma incorreta e teve de ser pausado por mais de 16 minutos até recomeçar. Apesar do festival negar, o CEO da Netflix, Reed Hastings, desconfiou de um boicote.

“Acho que não somos tão queridos aqui, hein”

Rapidamente o que poderia ter marcado o início da história de amor se transformou em uma batalha épica. O próprio presidente do júri naquele ano, Pedro Almodóvar, afirmou que seria um paradoxo premiar com a Palma de Ouro um filme que não pudesse ser visto nos cinemas, referindo-se aos dois longas da Netflix presentes aquele ano (o outro foi “Os Meyerowitz: Família Não Se Escolhe”).

O debate causou tanta polêmica que, ainda durante o festival, os organizadores mudaram as regras para as edições seguintes. A partir de 2018 apenas obras com o compromisso de serem exibidos nas salas francesas seriam selecionados em Cannes. Por causa das pressões, “Okja” até chegou a ficar em cartaz por um período, mas o conflito já tinha alcançado proporções maiores.

Adotando uma nova política de inclusão, em que os longas interessados em participar da mostra competitiva teriam de ser exibidos em circuito comercial nas salas de cinemas francesas, a Netflix foi praticamente banida do Festival. E a situação se agravou pelo anúncio de que os cinemas nem mesmo receberiam as produções do estúdio, pois uma lei local diz que os longas devem ficar pelo menos 36 meses fora dos serviços de streaming após o lançamento.

São quatro meses para que o filme chegue ao DVD ou mídia de vídeo on demand, 10 meses para a televisão e três anos na internet.

Apesar do esforço visível da Netflix para aumentar o prestígio da marca – com investimento em diretores de renome, atores reconhecidos, histórias complexas e a busca por prêmios relevantes -, a prática requerida pelo Festival é inviável para o modelo de negócio da empresa americana.

Nesse embate, as críticas à plataforma são endossadas por cineastas aclamados. Steven Spielberg, por exemplo, é abertamente contra a inclusão das produções da companhia em festivais, os classificando de forma pejorativa como “filmes para TV”.

No meio dessa luta, a companhia americana trava uma guerra fria com outro rival, ainda mais perigoso: a Amazon. E o concorrente já venceu uma batalha ao ganhar dois Oscars. “Manchester à beira-mar” se consagrou com o Oscar de Melhor Roteiro e Melhor Ator, enquanto nenhum longa produzido pela Netflix alcançou esse status nas categorias principais. Ao mesmo tempo, a presença da Amazon é bem-quista nos festivais, principalmente porque o estúdio lança suas produções nos cinemas bem antes de serem disponibilizados online. Thierry Fremaux, já chegou a declarar em entrevista que “a Amazon é uma distribuidora e produtora real”.

“Os Meyerowitz: Família Não Se Escolhe… Nem Estúdio”

Mesmo ambientados neste cenário de disputas, o próprio Thierry afirmou recentemente que é esperançoso quanto à presença dos canais de streaming no Festival e já demonstrou abertamente interesse em exibir a estreia do novo filme de Scorsese.

Além disso, em recente entrevista para a Variety, Ted Sarandos contou que vai continuar indo ao Festival adquirir produções para a plataforma e vislumbra a possibilidade de participar das próximas edições, desde que o regulamento seja modificado.

Enquanto um lado espera o outro ceder, a batalha entre os dois gigantes da indústria continua e parece que ainda falta muito sangue ser derramado para se chegar a um desfecho. E você, de qual lado você está?

 

[1] “Mudbound” ainda não estreou na Netflix nacional porque não é uma produção original e sim uma aquisição do canal. Aqui no Brasil quem detém os direitos é a Diamond Films.

Breno Damascena
@brenodamascena_

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