Cinema com Rapadura

Colunas   terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Netflix nos cinemas: conheça o novo modelo de negócios do serviço de streaming

Saiba mais sobre a nova estratégia adotada pela Netflix, desde as dificuldades enfrentadas pela mesma para levar suas produções para as telonas, até os frutos que esse novo modelo pode render no futuro.

Recentemente, a Netflix vem adotando uma série de novas medidas para manter sua posição como grande líder do mercado de serviços de streaming, dentre as quais se destaca o aumento expressivo do investimento em suas produções originais. Um investimento que vai muito além de uma simples injeção de capital, consistindo em uma verdadeira captação de talentos hollywoodianos, algo que seria completamente inimaginável há alguns anos.

Gradualmente, um número cada vez maior de intérpretes, diretores e roteiristas consagrados vêm se juntando às fileiras da gigante do mercado de streaming. Ela passou a ter, em seu vasto catálogo, um número considerável de produções originais dignas de serem exibidas nas telonas. E é justamente esse o mais recente passo da Netflix para sedimentar seu lugar de destaque no mundo do entretenimento: exibir seus filmes nos cinemas.

Apenas para citar alguns exemplos, longas como “Roma”, de Alfonso Cuáron (ganhador do Oscar de Melhor Diretor por “Gravidade“) e “The Ballad of Buster Scruggs”, dos irmãos Coen (“Ave, César!“), que vêm se destacando em festivais e premiações importantes, foram exibidos nos cinemas antes mesmo de estrearem na plataforma de streaming. Isso constitui uma profunda mudança no modelo de negócios tradicional da Netflix. Mas seria esta inovação algo realmente positivo, ou poderia acabar sendo prejudicial para os planos da Netflix à longo prazo?

Sob uma perspectiva puramente artística, essa nova tendência da Netflix acaba sendo um meio deveras eficaz de valorizar a obra e o talento dos artistas que produzem conteúdo para o serviço de streaming. Por mais que ver um filme em um moderno aparelho de televisão, ou mesmo na tela de um computador, em meio a todo o conforto do lar, possa ser bastante agradável, a experiência de assistir a um longa-metragem nas telonas é simplesmente incomparável. É nos cinemas que um filme tem a oportunidade de brilhar de verdade. A soma de diversos fatores, que vão desde coisas aparentemente simples, como o sabor da pipoca, até o fato de que a exibição de um longa em um cinema costuma ser uma experiência compartilhada por diversas pessoas, torna cada sessão um momento único.

Nesse sentido, a estratégia da Netflix acaba se mostrando bastante positiva, já que leva suas produções ao seu habitat natural: o mundo espetacular do cinema. O local onde deixam de ser mero entretenimento para, em um verdadeiro toque de mágica, se converterem em arte.

Para além disso, essa nova postura da Netflix pode ser fundamental para que suas produções tenham maiores chances de serem indicadas ao Oscar, a premiação mais importante da indústria cinematográfica. Conforme ventilado, “Roma” destacou-se em importantes premiações ao longo do ano, como a 75ª edição do Festival de Veneza, em que o longa conquistou o cobiçado Leão de Ouro.

Todavia, é sabido que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas tem a fama de ser excessivamente tradicionalista, para não dizer retrógrada, em relação a determinados pontos. Assim, se um filme como “Roma“, que claramente tem potencial para receber indicações ao Oscar, ficasse restrito aos assinantes da Netflix, sem ser exibido nos cinemas, talvez suas chances de ser indicado diminuíssem consideravelmente. Levando o longa para as telonas, a Netflix está garantindo que o mesmo seja visto como um filme de verdade, por assim dizer, pelos membros da Academia, de modo que quaisquer objeções que pudessem surgir a uma eventual indicação do mesmo literalmente caem por terra.

Entretanto, por mais que toda essa ideia de valorização da arte seja importante, é preciso ter em mente que a indústria cinematográfica, assim como qualquer outro negócio, é movida pelo dinheiro. Logo, é fundamental analisar o retorno financeiro que esse novo modelo de negócios está gerando para a Netflix.

Primeiramente, é importante ressaltar que, ao menos por enquanto, as produções da Netflix não serão exibidas em grandes redes de cinema. Isso é uma consequência direta do fato de que o intervalo de tempo existente entre a estreia dos filmes nos cinemas e seu lançamento na plataforma de streaming é considerado muito curto pelas grandes redes, o que obriga a Netflix a negociar com redes independentes para conseguir levar suas produções para as telonas.

Tomando o já mencionado “Roma” como exemplo, tem-se que o mesmo enfrentou dificuldades consideráveis para ser exibido na terra natal de seu diretor: o México. Oferecido à Cinépolis e a Cinemex, as maiores redes do país, o longa acabou sendo relegado à meras 40 salas de cinemas independentes.

Claudio Tomasini, um executivo da Cinépolis, chegou a afirmar em uma postagem no Twitter que “Nada nos agradaria mais do que exibir ‘Roma’ de Alfonso Cuarón“, desde que fosse respeitado um intervalo de cerca de 90 dias entre a estreia do longa nos cinemas mexicanos e o início de sua exibição na Netflix. Uma imposição a qual a gigante do mercado de streaming não aceitou se submeter.

O longa também se deparou com obstáculos a sua exibição na Itália, sofrendo um verdadeiro boicote no país. A birra dos italianos para com o filme dirigido por Cuarón vem desde o Festival de Veneza, quando organizações como CICAEANEC, FICE e ACEC se juntaram para protestar contra a inclusão da obra no evento, afirmando que o Festival estaria sendo usado para promover o serviço de streaming norte-americano, em detrimento de produções europeias. Quando a Netflix iniciou as tratativas para exibir o filme nos cinemas italianos, acabou se deparando com um boicote por parte de todas as redes de cinema da Itália. Apesar disso, o filme acabou sendo exibido no país graças à intervenção providencial da Cineteca di Bologna, um importante centro de preservação de filmes, que assegurou a distribuição e exibição do longa em 50 salas entre os dias 3 e 5 de dezembro.

Por outro lado, o filme vem tendo um desempenho deveras interessante nos EUA. Apesar de sua exibição na Terra do Tio Sam também estar limitada aos cinemas independentes, estima-se que o longa tenha arrecadado cerca de US$ 200 mil em seus primeiros cinco dias de exibição, em apenas três cinemas no país, durante o tradicional feriado de Ação de Graças, ao final de novembro. Embora as cifras possam parecer baixas se comparadas aos montantes arrecadados por grandes produções hollywoodianas, elas resultam em uma média de aproximadamente US$ 66.600,00 por sala em que o longa foi exibido, um número que coloca a produção entre os filmes estrangeiros com melhor estreia nos EUA.

Em sua segunda semana nos EUA, a exibição de “Roma” se expandiu para 17 cinemas, com o IndieWire estimando que, em apenas quatro desses cinemas, o filme teria arrecadado aproximadamente US$ 110.000,00, o que levou o site a afirmar que o longa “facilmente será o filme estrangeiro do mundo especializado com a melhor arrecadação deste ano“. Informações da Variety do último dia 07 mostram que a intenção da Netflix é expandir a exibição do filme em mais 600 salas no mundo todo, sendo 100 nos EUA e 500 ao redor do globo.

Diante desse contexto, é possível afirmar que, apesar das dificuldades encontradas ao longo do caminho, a exibição de “Roma” nos cinemas acabou sendo bem-sucedida, e continuará se expandindo mesmo após o seu lançamento na Netflix, com o filme sendo exibido nas telonas de mais de 30 países. Um desses países será o Brasil, com a rede Kinoplex promovendo sessões especiais do longa nos cinemas Kinoplex Itaim, em São Paulo, e Kinoplex Rio Sul, no Rio de Janeiro, no período de 14 a 26 de dezembro.

Assim sendo, tem-se que essa nova postura da Netflix está se mostrando bastante positiva para as pretensões da mesma, ajudando a valorizar ainda mais suas produções originais e possibilitando que elas tenham maiores chances de concorrer à premiações conceituadas, ao mesmo tempo em que ainda gera uma receita extra para a companhia.

Logo, não chega a ser nenhuma surpresa ver que a Netflix planeja repetir essa estratégia no lançamento de outros filmes com potencial para disputarem prêmios importantes. É o caso do vindouro “The Irishman“, do diretor Martin Scorsese (“Silêncio“), que, segundo o astro Robert De Niro (“O Comediante”), será exibido nos cinemas em salas selecionadas.

Ainda não se sabe se essa nova política da companhia, que atualmente está restrita às produções consideradas premiáveis do serviço de streaming, poderá ser estendida futuramente à filmes voltados para o público mainstream. É o caso, por exemplo, de “6 Underground“, longa dirigido por Michael Bay (“Transformers: O Último Cavaleiro”) e estrelado por Ryan Reynolds (“Deadpool 2”), que tem estreia prevista para 2019.

Contudo, talvez seja melhor a Netflix aguardar um pouco para aplicar essa estratégia em seus blockbusters. Isso porque nas condições atuais, em que a empresa está lidando apenas com redes independentes e obtendo um número consideravelmente limitado de salas para exibir seus filmes, é um tanto quanto difícil perceber algum benefício real para a companhia em lançar um filme como “6 Underground” nos cinemas.

Uma coisa é exibir um filme artístico, por assim dizer, em um pequeno número de cinemas, permitindo que o mesmo tenha condições de concorrer à prêmios e que amantes da sétima arte possam apreciá-lo da melhor forma possível. Outra completamente diferente é exibir um verdadeiro filme pipoca em um número irrisório de salas selecionadas, pois isso não apenas não daria o retorno financeiro esperado de produções do tipo, como também não faria o longa chegar ao seu público alvo.

A menos que a Netflix encontre rapidamente um meio de negociar com as grandes redes de cinema do mundo, seria melhor, ao menos por ora, exibir nas telonas apenas seus filmes premiáveis, consolidando essa estratégia aos poucos. Assim, em um segundo momento, quando ela tiver conseguido um poder de barganha suficiente para convencer as grandes redes do potencial de seus projetos e da viabilidade de sua nova política, lançar seus blockbusters nos cinemas.

Independente de qual decisão a Netflix venha a tomar, o mais importante é que esse novo modelo de negócios demonstra que ela está aberta à mudanças. Ocupando a liderança do mercado mundial de serviços de streaming, seria muito simples a companhia se acomodar e passar apenas a colher os frutos de seu trabalho, mas as atitudes da Netflix demonstram que ela tem consciência de que o mundo do entretenimento está em um movimento constante, de modo que aqueles que pretendem permanecer no topo precisam se reinventar dia após dia. E é justamente isso que a Netflix está fazendo: reinventando-se, evoluindo para se adaptar a um mercado cada vez mais competitivo e marcado por inovações não apenas tecnológicas, mas também estratégicas.

João Antônio
@rapadura

Compartilhe

Saiba mais sobre


Conteúdos Relacionados