Cinema com Rapadura

Colunas   domingo, 21 de outubro de 2018

Doctor Who: um incentivo para companions iniciantes

Com 37 temporadas e mais de 800 episódios lançados, "Doctor Who" ainda tem espaço para fãs recém-chegados - e você pode ser um deles.

São cinquenta e cinco anos, trinta e sete temporadas, treze atores para o mesmo papel e incontáveis personagens que já passaram pelos mundos e eras de “Doctor Who“. Começar a acompanhar algo dessa magnitude pode ser bem assustador – sendo “algo”, aqui, uma palavra proposital, visto que o começou como programa de TV hoje tem filme, história em quadrinhos, jogos, livros e outras mídias paralelas em seu baú. Se você quer entrar nas referências ou conhecer uma série ótima e muito importante, o Cinema Com Rapadura te presenteia com este artigo. Para ser fã de “Doctor Who”, não há momento errado: antes TARDIS do que nunca.

Doctor… Who?

A série do canal inglês BBC conta a história do Doctor, um alienígena da espécie Time Lord (Senhor do Tempo) do planeta Gallifrey que viaja o universo, em vários lugares do tempo e do espaço, visitando desde figuras históricas a planetas em realidades distópicas. Para tal, ele se utiliza de uma Time and Relative Dimension in Space (Tempo e Dimensão Relativa no Espaço, em tradução livre) – ou só TARDIS, para os íntimos. Com o dispositivo de disfarce da nave com defeito, o alienígena de dois corações atravessa o cosmos em uma cabine telefônica londrina azul.

Em seu começo, no longínquo ano de 1963, “Doctor Who” possuía um caráter educativo, buscando se comunicar principalmente com o público infanto-juvenil. Como o personagem do Doctor era interpretado por William Hartnell, um ator de 55 anos, foi necessário dar a ele companheiros de viagem – os chamados companions – para gerar identificação junto ao público. Com sua neta, Susan (Carole Ann Ford) e dois de seus professores, o Doctor passa a olhar o passado da humanidade, bem como um futuro que comumente envolvia – e ainda envolve – invasões extraterrestres.

A idade de William Hartnell seria relevante de novo para outro ponto crucial para a longevidade da série. Após três anos no papel, e com a saúde debilitada, Hartnell precisava entregar o manto. Correndo o risco de ter a série cancelada exatamente no momento que engrenava junto à audiência, o produtor Innes Lloyd e o roteirista Gerry Davis têm a ideia de que, visto que o Doctor é um alienígena, por que não trocar de corpo em vez de morrer? Ao final do arco The Tenth Planet, o Primeiro Doctor cai, e o segundo Doctor (Patrick Troughton) se levanta.

Isso foi vital também para a renovação temática da série. Gradualmente deixando o nicho infanto-juvenil para agregar um público maior, a troca de Doctor – que inclui uma mudança de personalidade além da física – também possibilita novas aventuras que agradem audiências diversas sem incorrer em um Doctor sisudo – como era o Hartnell – em uma história leve e divertida. Assim a série garante uma vitalidade perpétua, sempre trocando o intérprete de sua personagem protagonista quando é necessário revitalizar o enredo ou quando o ator/a atriz decide sair do programa.

As Séries

Contudo, a regeneração não garantiu a imortalidade de “Doctor Who”. Devido a um cancelamento no final dos anos 80, a série foi dividida em duas eras: a Série Clássica, vai da estreia em 1963 até 1989, com o programa sendo retirado do ar, e a Série Atual, que vem de 2005 até o presente. É aqui que a pergunta “por onde eu começo?” tem sua primeira curva acentuada.

Iniciar “Doctor Who” pelo original de 63 impõe diversos obstáculos. É difícil encontrar, há vários episódios perdidos pelos diversos incidentes nos arquivos físicos da BBC e, principalmente, a linguagem televisiva da época é drasticamente diferente da atual. A narrativa da TV do início da década de 60, ainda em seus primórdios, se apresenta com uma única trama simples dividida em vários episódios (os serials, ou os arcos), muitas vezes sendo conduzidos de forma lenta e sem dinamismo. O roteiro, didático, faz o possível para transformar os restos e objetos descartados pelo estúdio como ferramentas passíveis de serem usadas na série. “Doctor Who”, em seus primórdios, era um gigantesco quintal de reciclagem criativa da BBC – o que estava alinhado com a visão que a cultura tinha da ficção científica como narrativa inferior.

Para os corajosos, a série original guarda um pequeno tesouro televisivo. Muitos dos milagres que a produção realizou com o orçamento pífio entram para a história, lançando as fundações de o que seria o sci-fi na TV. A criatividade demandada dos roteiristas é louvável, e muitas das grandes mentes da televisão e do cinema – como Steven Moffat, criador de “Sherlock”, Matt Groening, de “Os Simpsons” e “Futurama”, e Steven Spielberg, de toda a sua infância – foram influenciados diretamente por esta fase da série, colocando referências diretas e indiretas em suas obras. Mesmo o nosso cotidiano foi afetado por “Doctor Who”: a palavra cyber, por exemplo, caiu no uso corriqueiro graças aos vilões Cybermen.

Caso estes motivos não sejam suficientes para impelir um começo em 55 anos de série, há três pontos de entrada na Série Atual. Dentro deste ciclo, iniciada em 2005, podemos dividi-la em fases, caracterizadas por seus produtores-executivos (ou showrunners): Russel T. Davies, Steven Moffat e Chris Chibnall.

As Eras da Série Atual

A primeira era, capitaneada Russel T. Davies (criador de “Queer as Folk”), foi iniciada em 2005, com o Nono Doctor, interpretado por Christopher Eccleston (“Thor – O Mundo Sombrio”). Embora traga a história do Time Lord pro século XXI, a série se apresentava bem honesta em relação às suas origens: um orçamento magro obrigava T. Davies a contar histórias em que manequins e alienígenas flatulentos são os grandes vilões. Mesmo com esta barreira, a fase T. Davies é recomendável por trazer um dos grandes arcos mais brilhantes do programa – o famoso Bad Wolf -, o qual desembocou no Décimo Doctor, um dos favoritos do público, interpretado pelo eternamente charmoso, e esporadicamente expulso de palcos em convenções, David Tennant (o vilão Kilgrave de “Jessica Jones”).

Vários são os episódios marcantes deste ciclo de “Doctor Who”. Rose é o primeiro episódio da primeira temporada (T1E1) da nova série, e traz bastante dos elementos que vemos posteriormente ao longo desta fase, como o valor camp de ficção científica que não se leva a sério, a busca por sequências de ação e o carisma magnético de seus protagonistas. Dalek (T1E6) é crucial por reapresentar à nova audiência os alienígenas arqui-inimigos do Doctor, enquanto o episódio duplo The Empty Child/The Doctor Dances (T1E9 e T1E10) coloca o Doctor e Rose (Billie Piper, da série “Penny Dreadful“) em Londres durante a Segunda Guerra Mundial quando uma criança com uma máscara de gás começa a infectar e transformar humanos em criaturas deformadas. Estes dois episódios, escritos por Steven Moffat, são frequentemente listados entre os dez melhores da série.

Já com David Tennant, The Girl in the Fireplace (T2E4, novamente escrito por Moffat) traz uma história excelente, enquanto Rise of the Cybermen (T2E5) reintroduz vilões clássicos do Doctor. The Runaway Bride é um especial de Natal, incluído na terceira temporada, que apresenta Donna (Catherine Tate, da versão estadunidense de “The Office“), a qual viria a se tornar uma das companions mais queridas da série. Ainda assim, mesmo tendo ótimos episódios duplos como Human Nature/Family of Blood (T3E8 e T3E9), nos quais o Doctor se vê transformado em humano, e The Sound of Drums/Last of the Time Lords (T3E12 e T3E13), que encerram a temporada em alto estilo, o grande destaque desta temporada – e um dos melhores da série – é Blink.

Blink (T3E10) tem como base o uso do conceito conhecido como Doctor-light episode – episódios da série nos quais o Doctor aparece menos ou tem menor relevância, dando enfoque a personagens secundários. Embora usos anteriores, como em Love & Monsters (T2E10), tenham sido catastróficos, aqui, em Blink, a série alcança seu ápice como ficção científica. Trazendo os Weeping Angels (“Anjos Chorões”, em tradução livre) como vilões implacáveis, Blink é a entrada ideal para quem quer ver o que a série tem de melhor sem precisar conhecer nada do seu universo.

Foi nele que Steven Moffat se consolidou como o melhor roteirista da Era Atual de “Doctor Who”, repetindo a proeza em qualidade em Silence in the Library/Forest of the Dead (T4E8 e T4E9), os quais trazem a personagem River Song (Alex Kingston, da série “Arrow“), que seria crucial da quinta temporada em diante. Já na quarta temporada, The Unicorn and the Wasp, exemplifica o traço da série de visitar personagens históricos quando o Doctor vai investigar o desaparecimento de Agatha Christie. Após isso, fica o destaque para os últimos episódios de David Tennant como Doctor, nomeados simbolicamente de The End of Time, partes um e dois, quando o ator se despede do personagem, para a tristeza eterna do próprio ator, que publicamente só decidiu abandonar o personagem para poder seguir com sua carreira, bem como a de uma legião de fãs da série e escritores de colunas no Cinema com Rapadura que nunca conseguiram realmente superar sua perda.

De qualquer forma, Russel T. Davies deixou o cargo de produtor-executivo da série na quarta temporada, levando Tennant embora consigo, e o então roteirista Steven Moffat assumiu as rédeas criativas do programa. A Era Moffat é a responsável por alçar “Doctor Who” a um novo nível. Conhecido por sua megalomania, Moffat (normalmente mencionado pelos fãs como “Moffat!?”, com choque e/ou revolta) recebeu a série com um orçamento crescente por parte da BBC em 2010, colocando o jovem Matt Smith (da série “The Crown”) no papel principal. Apostando em arcos lotados de plot twists e abordagem cinematográfica, Moffat viu os episódios feitos sob sua tutela ganharem cinemas mundo afora pela primeira vez, chegando a entrar em turnê mundial (!) para divulgar o especial de 50 anos da série. Foi o momento que os astros se alinharam e “Doctor Who” invadiu o planeta de assalto, saindo de cultura B para o primeiro plano da cultura pop.

Curiosamente, a qualidade que Moffat demonstrava nos seus roteiros pontuais ao longo dos últimos quatro anos não se reproduziam sob sua batuta como showrunner. Focado mais em grandes arcos, as histórias muitas vezes deixaram a desejar. Salvava o carisma impressionante do trio principal, composto pelo Doctor de Matt Smith, Amy (Karen Gillan, “Guardiões da Galáxia 2“) e Rory (Arthur Davill, da série “Legends of Tomorrow“), além de alguns episódios que são pedras preciosas espalhadas por esta fase do programa. Vincent and the Doctor (T5E10) coloca o Doctor frente a frente com Van Gogh, em um episódio lindíssimo garantido de arrancar lágrimas da audiência; The Lodger (T5E11) conta com o humor de James Corden (“Oito Mulheres e Um Segredo“) e é especialmente divertido; The Doctor’s Wife (T6E4) foi escrito pelo brilhante autor britânico Neil Gaiman e dá uma nova dimensão para o relacionamento do Doctor com sua nave espacial; A Good Man Goes to War (T6E7) é um ponto de virada crucial para a série e no desenvolvimento do arco de River Song.

Resultado de imagem para a good man goes to war

A sétima temporada foi o ápice da narrativa cinematográfica de Moffat, plantando a futura companion Clara Oswald (da série “Victoria“) em Asylum of the Daleks (T7E1), trazendo os Weeping Angels de volta em um episódio devastador em The Angels Take Manhattan (T7E5) e investigando o que aconteceu com o Doctor nos anos perdidos na narrativa, durante os quais a série esteve cancelada, no episódio especial de 50 anos da série The Day of the Doctor, e a partida de Matt Smith em The Time of the Doctor.

Consequentemente, o sucesso global do ciclo Moffat/Smith foi o ponto de entrada de grande parte dos fãs atuais. Smith saiu para caçar uma carreira em Hollywood, e Peter Capaldi (“Paddington 2″) assumiu a TARDIS para segurar o sucesso magnânimo da série. Ali, a oitava temporada decaiu de qualidade em suas tramas, apesar da presença e da excelente atuação de Capaldi. Episódios como In the Forest of the Night (T810) e, principalmente, Kill the Moon (T8E7) merecem nota como histórias que precisam ser esquecidas no cânone de “Doctor Who”. A nona temporada, contudo, é superior em todos os aspectos, com diversos episódios marcantes. Dignos de destaque são The Zygon Invasion/The Zygon Inversion (T9E7 e T9E8),que contam com um monólogo brilhante de Capaldi, e Heaven Sent/Hell Bent (T9E11 e T9E12), dubitavelmente os dois melhores episódios nos mais de cinquenta anos da série. A décima temporada, por sua vez, tem como destaque The Pilot (T10E1), que apresenta a ótima companion Bill Potts (Pearl Mackie), World Enough and Time/The Doctor Falls (T10E11 e T10E12), e o especial de Natal Twice Upon a Time, no qual Capaldi se despede do personagem.

Resultado de imagem para heaven sent

Após conduzir “Doctor Who” a uma franquia mundialmente relevante (e debaixo de críticas por diversos roteiros estapafúrdios que diminuíam a qualidade de seus arcos), Moffat decidiu sair da liderança da série, passando o controle para seu sucessor, Chris Chibnall. Como último ato no poder, Steven Moffat (!?) estabeleceu no cânone e combinou com Chibnall um último plot twist para os fãs da série: no trailer da décima-primeira temporada, ao anunciar o novo nome a interpretar o Doctor, o capuz da personagem caiu para trás e, pela primeira vez em mais de cinquenta anos, não havia um homem ali.

Uma mulher era a Doctor.

Ela é a Doctor

Anunciada como um novo ponto de entrada para novos públicos, a atual temporada de “Doctor Who” – que provavelmente trouxe você, leitora/leitor, até aqui – tem sua protagonista interpretada por Jodie Whittaker (da série “Broadchurch“, na qual contracenou com David Tennant). Após Moffat conduzir várias tramas contínuas de 2010 até 2017, a temporada iniciada em 2018 se propõe a começar do zero com uma folha em branco para a personagem em seus arcos.

“Folha em branco”, em “Doctor Who”, significa que a série não dependerá dos seus mais de 800 episódios anteriores para que os atuais sejam compreendidos. Ainda assim, as tramas sempre trazem referências, flertes e podem, por vezes, até mesmo retornar uma linha narrativa abandonada dentre as inúmeras histórias conduzidas até aqui. Se você não se convenceu a começar em 1963, nem em 2005 e nem mesmo em 2010, Whittaker é a Doctor que você precisa para 2018. Leve e sem se deixar ser definida por seu gênero, a Doctor traz uma miríade de possibilidades de exploração para uma audiência ansiosa por mergulhar em um universo desconhecido.

Por todo o tempo e todo o espaço, essa é “Doctor Who”. Por onde você quer começar?

Erik Avilez
@eriksemc_

Compartilhe

Saiba mais sobre


Conteúdos Relacionados