Cinema com Rapadura

Colunas   domingo, 15 de abril de 2018

De King Kong a Rampage: Destruição Total: a hora e a vez dos monstros gigantes

"Rampage: Destruição Total" traz, além de referências, uma herança de 85 anos de monstros gigantes no cinema. Venha passear pelos escombros de civilizações esmagadas sob a força dessas criaturas.

Não eram muitas as maravilhas dos anos 1930. A crise de 1929 jogou uma sombria perspectiva sobre o mundo, e embora a ascensão do nazismo batesse à porta enquanto as nações se viam postas às vésperas de uma impensável nova guerra mundial, algo maior se assomou. No horizonte, do alto de uma torre, um horror enorme, de aproximadamente 15 metros, dependurava-se do alto de um prédio, lutando contra helicópteros, enquanto uma audiência atônita via pela primeira vez um monstro gigante no cinema. Se estamos em 2018, no alvoroço do lançamento de “Rampage: Destruição Total“, a audiência de 1933 assistiu a “King Kong” com o assombro devido de imaginar que, talvez, o mundo fosse mais misterioso e maior do que sugeriam os violentos desentendimentos humanos.

Esta introdução é importante para contextualizar o surgimento do subgênero cinematográfico dos “monstros gigantes” – ou kaijus – antes mesmo de delimitá-los, porque este dialoga diretamente com a maneira que estes filmes se apresentariam posteriormente. Nestas tramas, a presença de uma ameaça superior, incompreensível, obriga inimigos a se unirem para que possam enfrentá-la e, talvez, vencê-la, pondo em perspectiva os conflitos internos da raça humana e seus desentendimentos filosóficos ou ideológicos. Em outras palavras, é difícil parar para discutir sobre política se há um lagarto gigante esmagando prédios no seu quarteirão.

Assim, o subgênero dos monstros gigantes nasce com o propósito duplo de distrair as pessoas dos seus horrores ao apresentar uma realidade de riscos mais agravados, bem como de demonstrar como os muros que insistem em nos separar, como povo, são construções sociais fúteis que um kaiju facilmente destroçaria em segundos. É claro que estas propostas sofreram alterações e reinterpretações com o tempo, e é por isso que o Cinema com Rapadura traz para você essa coluna, que acelera entre patas gigantes e raios azulados para apresentar a trajetória destas incríveis e terríveis criaturas.

 

Monstros gigantes: um subgênero cinematográfico

Geralmente atrelados à uma trama baseada em ficção científica, terror ou ambos, os “monstros gigantes” não nasceram no cinema, sendo parte da mitologia humana há milênios. Nos diversos tentáculos da cultura, os monstros gigantes, em diversas mídias, conversaram com o cinema, influenciando e sendo influenciadas por diretores e suas obras. Tomando como exemplo o mitológico Kraken, que mostrou seus tentáculos em “Piratas do Caribe 2: O Baú da Morte” (2006), mas já apresentava sua forma rudimentar de lula gigante no livro “20 Mil Léguas Submarinas“, de Júlio Verne, em 1870. A mesma criatura inspiraria o autor H. P. Lovecraft a criar seu terrível deus Cthulhu, que por sua vez, daria base para inúmeros mitos e o nicho do horror cósmico, que tanto empolga o diretor Guilhermo Del Toro[1].

Esta dinâmica de retroalimentação ajuda a renovar o subgênero que, em uma delimitação simples, engloba todos os filmes que possuem um monstro gigante como ponto central de sua trama. A partir daí, há diversas variações de abordagem, desde a diferenciação entre a “Escola Ocidental” e a “Escola Oriental” de monstros gigantes (leia mais sobre elas aqui) até a posição que a criatura ocupa dentro da película, seja de antagonismo, protagonismo ou ambos. De qualquer forma, o enfoque na criatura pode ser usado como critério arbitrário para separar filmes que utilizam os monstros como ferramentas narrativas – uma arma final do vilão, por exemplo – daqueles que são de fato sobre o bichão.

Desta forma, podemos traçar a história dos kaijus no cinema desde 1933 até a atualidade, cobrindo 85 anos de mitos, símbolos da cultura pop e alguns filmes que seriam melhores devidamente esquecidos[2] no tempo. Mesmo no universo de lagartos gigantes (e suas versões robóticas) e criaturas submarinas, temos o nosso ponto de começo e de fim em versões diferentes do mesmo monstro: o gorila gigante.

 

“Não foram os helicópteros. A bela matou a fera.”

Os primeiros anos dos kaijus no cinema eram envolvidos na aura aventureira da segunda metade do século XIX, com as crias de autores como Júlio Verne e H. G. Wells, e os monstros eram pedaços da natureza esquecidos pelo tempo. A Ilha da Caveira de Kong, por exemplo, traz referências conceituais ao mundo subterrâneo de “Viagem ao Centro da Terra”, de Verne. Assim, “King Kong” surge nas telas em 1933, em uma ilha onde as eras parecem não ter passado, com a presença de brontossauros, tiranossauros e, é claro, um deus-gorila de quinze metros de altura.

Desde o primeiro capítulo da franquia, o contraste entre a força bruta de Kong e sua sensibilidade constituem o eixo principal em que o filme se ampara. A frase destacada acima, do final do filme, resume bem o relacionamento entre o gorila e a atriz Ann Darrow, interpretada por Fay Wray[3], no qual a afeição que o animal desenvolveu pela moça levou ao seu fim. Isso se tornou parte indissociável do mito de Kong: o amor pela bela sempre haveria de matar a fera.

Outro destaque interessante para o filme de 33 é sua violência desprendida. Tendo sido lançado antes do Código Hays, “King Kong” não tem medo de colocar o gorilão jogando gente do alto de prédios e devorando pessoas sem dó. Isso torna a projeção ainda mais chocante para os anos 30: se já seria difícil se acostumar com a ideia de um monstro gigante escalando o Empire State Building, mas vê-lo fazer isso em todo o seu descaso com nossa pequenez, aumenta muito o impacto que a ideia tem.

Graças a estes elementos, “King Kong” foi um sucesso, faturando quase oito vezes seu orçamento, de forma que não tardou para que sua sequência saísse – incrivelmente rápida, mesmo para padrões atuais. Nove meses depois, ainda em 1933, veio “O Filho de King Kong“, que não conseguiu emular o desempenho do filme original, de forma a ser constantemente esquecido nos fossos da história hollywoodiana.

Ainda desta fase, “Monstro de um Mundo Perdido“, de 1949, trazia mais uma vez um gorila – desta vez menor, de cerca de quatro metros. Feito pela mesma equipe de “King Kong”, o filme exibia pouca novidade, mas ajudou a consolidar a figura do gorila gigante no imaginário popular, quase uma geração depois do lançamento do longa original. Além disso, ele também marca ao se posicionar no limiar transicional entre a era dos “monstros de lugares perdidos” e a era dos “monstros atômicos” – uma época muito mais propensa a lagartos gigantes do que primatas.

 

“Então o que fazemos com o horror a nossa frente agora? Devemos simplesmente deixar acontecer?”

A Segunda Guerra Mundial foi um divisor de águas na história da humanidade por diversos motivos, grande parte deles nefastos. Para o Japão, especialmente, foi devastador. Quando as bombas atômicas aplanaram Hiroshima e Nagasaki, pouco restava para o povo japonês senão observar, com horror, o potencial destrutivo que o Ocidente possuía. O impacto foi especialmente poderoso contra uma nação que valorizava tanto a tradição, e agora se via obrigada a se curvar perante um arsenal tecnológico com muito mais poder de destruição do que eles jamais tinham imaginado. Como responder a algo nestas proporções?

Gojira. A real divisão entre a “era dos monstros perdidos” e a “era atômica”, Godzilla, em seu nome americanizado, era uma criatura pré-histórica que foi despertada e dada grandes poderes graças à radiação nuclear. A analogia era clara: os japoneses se sentiram impotentes perante o dano causado pelas bombas estadunidenses tanto quanto se um monstro inexplicável surgisse das profundezas e dizimasse sua cidade.

O diálogo destacado acima ocorre quando dois personagens discutem a possibilidade de atacar Godzilla com uma arma ainda mais mortal, pesando os prós e os contras que isso poderia ter. Por um lado, eliminariam o monstro. Por outro, o mundo inteiro teria conhecimento da existência da arma e poderia replicá-la para o mal, com impactos incalculáveis. Assim, se por um lado “Godzilla” analisa o que o Japão poderia fazer depois das bombas, também pensava se os Estados Unidos não poderiam ter vencido a guerra de forma diferente[4]. Tudo isso, é claro, com muita ação envolvendo um lagarto gigante destruidor.

Godzilla se tornou um dos monstros mais imponentes e reconhecíveis, recebendo diversas continuações diretas e inspirando uma miríade de longas com criaturas gigantes. Apenas para citar algumas, “O Mundo em Perigo“, com suas formigas atômicas; “O Monstro do Mar“, sobre um dinossauro fictício despertado por um teste nuclear no Ártico; “Tarântula“, no qual a aranha se torna monstruosa após contato com um soro radioativo[5]culminando no terrivelmente divertido “O Monstro Gigante de Gila“, no qual um lagarto gigante destroi o que claramente é uma maquete.

Nestes idos, já em 1959, o gênero já tinha perdido grande parte da sua força no Estados Unidos, beirando a paródia de si mesmo, agora que o terror atômico iminente já era deixado para trás. No Japão, por outro lado, as criaturas gigantes continuavam a espalhar seu caos, com o aparecimento de monstros clássicos como Mothra (1961), Rodan (1956) e Ghidorah (1964) – os quais enfrentaram Godzilla em diversos momentos. Para arrematar esta fase, a primeira era dos monstros gigantes enfrentou seu momento sucessor, literalmente, em 1962, em “King Kong vs Godzilla“, pondo os dois monstros pela primeira vez em cores, widescreen e, é claro, descendo o sarrafo um no outro.

Ainda assim, com algumas exceções enveredando pelo subgênero trash, como em “O Ataque dos Vermes Malditos” (1990), ou adentrando o sobrenatural, como o maravilhoso Monstro de Marshmallow de “Os Caça-Fantasmas” (1984), as criaturas gigantes foram postas para dormir no fundo do oceano do mundo ocidental. Com a ascensão de tendências como o terror psicológico, na década de 60, e subgêneros como o slasher, em fins da década de 70, parecia não haver mais espaço para os gigantes entre nós[6].

Até a chegada do século XXI, quando descobriu-se que os monstros gigantes não estavam mortos. Eles só precisavam matar de uma forma diferente.

 

“Aproximadamente sete horas atrás alguma… Coisa atacou a cidade.”

Em uma mesa, num lugar qualquer do mundo, o produtor J. J. Abrams (diretor de “Star Wars: O Despertar da Força) decidiu que os Estados Unidos precisavam do seu próprio Godzilla, tal qual ele era em seus primórdios: algo aterrador, imenso e incompreensível. Dessa necessidade, Abrams começou a desenvolver uma criatura digna de assombro e, em 2008, com o roteiro de Drew Goddard (“Deadpool 2″) e direção de Matt Reeves (“Planeta dos Macacos: A Guerra”), veio ao mundo “Cloverfield – O Monstro“. Além da construção de universo e da metalinguagem utilizada para o longa (sobre os quais você pode ler aqui), “Cloverfield” conseguiu ressuscitar o subgênero, tirando-o da alçada do humor e dotando-o novamente de suspense e de horror.

O longa fez isso ao aproximar-se do conceito usando a abordagem da found footage, que simula filmagens encontradas. Esta solução apontou o caminho o qual o subgênero dos monstros gigantes precisaria trilhar para alcançar um novo lugar ao sol: seria necessário ser moderno na forma com a qual se mostrava as bestas. Com o apoio do avanço na computação gráfica, os monstros gigantes deixaram de ser risíveis e se tornaram medonhos mais uma vez.

Com o rugido do monstro Clover, outras criaturas despertaram. Em “Super 8“, de 2011, Abrams registra seu nome mais uma vez no rol da fama dos monstrengos, nessa vez na cadeira de diretor. No longa com clima oitentista, um monstro alienígena – carinhosamente denominado pelos fãs de “Cooper” – causa destruição enquanto tenta escapar dos militares e voltar para casa[7]Embora alienígena, a trama foca bem na constituição do inimigo como criatura e menos em sua tecnologia (ao contrário de “Guerra dos Mundos“), o que traz Cooper como um monstro de classe maior para esta lista. Se em “Cloverfield” usou-se o found footage para aproximar o público, aqui isto é feito a partir da nostalgia dos anos 80 – e não há nada mais anos 2010 do que isso.

O brilhante “Colossal“, por sua vez, trouxe Anne Hathaway (“Interestelar“) e Jason Sudeikis (“Gênios do Crime“) em uma trama com viradas ousadas que buscavam trazer o gênero de volta para suas raízes alegóricas. A reinterpretação desenvolvida pelo filme substitui o medo da natureza selvagem ou o horror atômico por algo infinitamente mais perigoso: o ser humano. Com uma premissa muito inteligente e drama inesperado, “Colossal” restituiu a profundidade que o nicho já não via há décadas no cinema ocidental.

Em 2014, Godzilla volta às telas ocidentais, em uma repaginação que é bem-sucedida quando foca no lagarto gigante, mas que pecou na tentativa de desenvolvimento dos elementos humanos da trama. Ainda assim, o longa iniciou um novo universo compartilhado, o qual, após “Kong: Ilha da Caveira” (de 2017), despontará em um novo encontro em 22 de maio de 2020, após “Godzilla: Rei dos Monstros” (2019).

Graças às reinterpretações na linguagem, à computação gráfica e o a busca por uma abordagem mais focada nas criaturas (leia mais aqui), a atualidade se mostra aberta mais uma vez para a invasão desses monstros terríveis. É difícil dizer qual seria a razão para isso; propostas como os monstros como analogia ao terrorismo pós-11 de setembro e interpretações que veem as criaturas como uma devida vingança da natureza ao que a raça humana fez do meio ambiente, embora válidas, ainda não possuem o afastamento histórico necessário para serem precisas. Por ora, só é possível afirmar que, sobrevivendo a ataques de helicópteros, mísseis e descrédito da audiência, o público e os estúdios parecem estar prontos para ter as criaturas pisoteando cidades novamente, conforme comprovado pelo blockbuster “Rampage: Destruição Total”, estrelado por (outro monstro) Dwayne “The Rock” Johnson.

É chegada a hora e a vez dos monstros gigantes. Salve-se quem puder.

 

[1] O diretor mais adorável de Hollywood está tentando há anos adaptar a obra de Lovecraft, “Nas Montanhas da Loucura”, mas não consegue tirar o projeto do “inferno de desenvolvimento”. Embora triste, parece apropriado, não? Leia mais sobre este sonho terrível do Del Toro aqui e aqui.

[2] Então de certa forma a gente pune os realizadores lembrando que esses filmes existem, que tal?

[3]O que haverá acontecido com Fay Wray? Aquela silhueta delicada de cetim…

[4] Esta profundidade, inclusive, é o que diferencia “Godzilla” não só de outros filmes de monstros gigantes, mas também do remake horrível de 1998, que não vai ser citado de novo neste artigo por questões de princípio.

[5] O Steve Rogers dos aracnídeos.

[6] No Japão, enquanto isso, Godzilla já estava enfrentando sua versão robótica, outra versão futurista e todos os monstros possíveis e imagináveis, às vezes ao mesmo tempo – coisa que deve acontecer em breve na nova franquia. Nihon sempre à frente do resto do mundo.

[7] Praticamente um “ET”, só que bem mais irritado.

Erik Avilez
@eriksemc_

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