Como o Blaxploitation revolucionou o cinema norte-americano
Conheça o movimento que colocou artistas negros como protagonistas das produções audiovisuais.
Hollywood é branca. É um lugar de homens brancos fazendo filmes com pessoas brancas para públicos de todas as cores assistirem. Diversidade ainda não é uma prioridade nas produções norte-americanas. Atrizes e atores negros, quando estão em tela, muitas vezes acabam com papéis estereotipados e pejorativos.
Antes que alguém argumente que a atual Hollywood tem mais oportunidades, destacando, por exemplo, o elenco escolhido para a adaptação live-action de “Rei Leão”, é preciso entender que o problema ainda parece longe de ser solucionado. Uma pesquisa de 2016, da University of Southern California examinou os 800 filmes com maior bilheteria dos últimos nove anos (2007-2015), analisando 35.205 personagens, e notou que 73,7% são brancos. E apenas 5,5% dos 886 diretores eram negros.
Apesar disso, é importante salientar que, mesmo distante do ideal, o movimento negro vem ganhando força no cinema de forma gradual e salutar. Ainda que nem de longe se compare a quantidade de projetos inteiramente brancos, é possível ver um crescimento da participação relevante de negros em filmes importantes da indústria, como Idris Elba, em “A Torre Negra”, e John Boyega, em “Star Wars – O Despertar da Força”. Além de filmes de temática negra sob os holofotes da indústria, como “Moonlight – Sob a Luz do Luar” e “Straight Outta Compton”.
Esse progresso é fruto de um trabalho exaustivo, construído a duras penas e muito suor por gerações de cineastas negros que batalham por um cinema mais diverso. Um dos marcos mais emblemáticos dessa luta surgiu no início da década de 1970, quando eclodiam grandes revoluções sociais, políticas e em toda a indústria cultural. Nesse período, que é lembrando como um dos mais atribulados e importantes da história recente, surgiu um movimento cinematográfico que finalmente deu voz ao povo negro, o Blaxploitation.
O termo, sarcástico, foi cunhado pelo ex-produtor e ex-presidente do Los Angeles National Association of Colored People (NAACP), Junius Griffin, e surgiu do amálgama criado com as palavras black (preto) e exploitation (exploração). O Blaxploitation, ou Blacksploitation, foi um movimento étnico que colocou artistas negros como protagonistas de produções audiovisuais.
Eram filmes realizados por cineastas negros, com atrizes e atores negros, para o público negro assistir e se sentir representado. Os longas do Blaxploitation eram ambientados principalmente em bairros urbanos pobres e frequentemente abordava temas como escravidão e miscigenação. Mais do que revolucionar o cinema colocando personagens, até então periféricos, no centro do enredo, esses filmes provocavam o status quo e tirava sarro dos arquétipos usuais dos filmes brancos.
Uma das primeiras e mais representativas obras do Blaxploitation, “Shaft”, por exemplo, é situada no Harlem – bairro periférico de Nova York – e acompanha a história de um detetive negro que se envolve com a máfia italiana para encontrar a filha desaparecida de um gângster negro. O filme abordava o movimento Black Power, questões de raça, masculinidade e sexualidade.
Baseado em um livro escrito por Ernest Tidyman, cujo protagonista originalmente era branco, o filme teve toda a trama significativamente alterada pela simples escolha do ator Richard Roundtree para interpretar John Shaft. Custando 500 mil dólares, o longa rendeu 13 milhões de faturamento e mostrou para os estúdios tradicionais que aquele era um mercado promissor.
A obra ganhou uma continuação nos anos 2000, estrelada por Samuel L. Jackson e conta a história do sobrinho do Shaft original, um policial que está tentando prender um assassino racista e traficante de drogas que usa o dinheiro para continuar impune. Além de Jackson, o longa contou com Jeffrey Wright, Christian Bale, Pat Hingle, Toni Collette, Busta Rhymes, além do próprio Roundtree, vivendo o papel que o consagrou.
Considerado o primeiro herói de ação negro, Roundtree integra, ao lado de Pam Grier e Jim Kelly, o grupo de atores que mais se destacaram no Blaxploitation. Ele se tornou um ícone da indústria cultural, aparecendo, posteriormente em séries como “90210” e “Desperate Housewives” , e no filme “Seven”, de David Fincher. A vida conturbada dos artistas como ativistas pela causa negra se confundia com a obra que estavam ajudando a produzir.
O astro de “SuperFly”, Ron O’Neal, por exemplo, cresceu em um bairro pobre de Cleveland, Ohio. Perdeu o pai e o irmão aos 16 anos. Durante a vida, trabalhou na companhia de teatro afro-americana mais antiga dos Estados Unidos. O sucesso nas peças o levou à Nova York, onde ensinava aulas de teatro no Harlem Youth Arts Program, instituição que oferece treinamento artístico e fornece bolsas de ajuda financeira para alunos de baixa-renda. Foi nesse período que ele foi convidado a participar de “Super Fly”.
O longa acompanha um traficante que deseja sair do mundo do crime e, para alcançar seu objetivo, precisa executar a última ação. Sucesso instantâneo, o filme causou grande polêmica pela forma com que os personagens são representados, colocando ainda mais lenha na discussão sobre o papel do Blaxploitation. O Congress for Racial Equality (Congresso para a Igualdade Racial), a National Association for the Advancement of Colored People (Associação Nacional para o Avanço das Pessoas Coloridas) e outras organizações tentaram, bloquear a sua distribuição. O Student National Coordinating Committee (Comitê Nacional de Coordenação Estudantil) também protestou contra o filme como uma ferramenta de opressão branca.
No entanto, apesar de todas as polêmicas, o que mais se destacou no longa foi a trilha sonora produzida pelo cantor e compositor Curtis Mayfield, que rapidamente se tornou um clássico do cinema norte-americano e até hoje é lembrada como uma das melhores de todos os tempos.
As trilhas sonoras do Blaxploitation eram quase todas compostas por músicos negros consagrados da indústria norte-americana, como Quincy Jones, Barry White, Marvin Gaye e James Brown. O funk e o jazz eram sempre lembrados, colocando-se como parte significativa do movimento. O reconhecimento foi tão grande que o tema de “Shaft” ganhou o Oscar de Melhor Música Original, consolidando o compositor Isaac Hayes como o primeiro negro da história a ganhar um Oscar em uma categoria que não fosse de atuação.
Estima-se que até o ano de 1976, aproximadamente 200 filmes haviam sido produzidos. Os subgêneros eram bem diversificados, tratando de histórias de crime, artes marciais, prisão, comédia, nostalgia e drama, até westerns musical e terror. Porém o enredo costumava sempre trazia à tona algo intrínseco do movimento.
Em “Blácula”, o Conde Drácula morde um príncipe africano e o prende em um caixão. O príncipe consegue se libertar séculos depois e assume um novo nome: Blácula. Enquanto mata sua sede de sangue (e diversas pessoas no caminho), ele encontra a uma mulher que é a reencarnação de sua antiga esposa. O filme é um dos longas de terror mais emblemáticos e característicos do Blaxploitation.
A ironia usada para desmascarar o preconceito era colocada em prática satirizando os filmes que faziam sucesso naquele período. Os heróis (ou anti-heróis) têm personalidade forte, são atraentes e lutam contra as mazelas e injustiças da sociedade. Os vilões são, em grande parte, policiais brancos que praticam essas opressões.
O resultado não podia ser outro. O público começou a dividir opiniões sobre o gênero. “Sweet Sweetback’s Baadassss Song”, por exemplo, conta a história de Sweetback, um garoto de programa que ajuda um desconhecido a escapar da mira de dois policiais racistas. O longa teve diversas cenas censuradas e uma parte da crítica o considerou sensacionalista.
Alguns dos grupos que pressionaram o fim do movimento eram formados, inclusive, por negros que acusavam os filmes de reforçar estereótipos negativos. Junius Griffin declarou que eles deviam evitar que os filhos fossem expostos a essas obras, que glorificavam “negros como drogados, cafetões, gângsteres e super machos”. Graças às controvérsias e polêmicas que embalavam as divergências de opinião, a popularidade do movimento diminuiu até chegar ao fim.
A popularização dessas obras inspirou outros gêneros a criarem personagens negros com características semelhantes. Alguns exemplos famosos são “Com 007 só viva e deixe morrer” e “Operação Dragão“, de Bruce Lee. A ascensão de artistas negros na década de 1980, como Eddie Murphy, Denzel Washington, Samuel L. Jackson, Spike Lee e Hale Barry, é reflexo do impacto indireto que o Blaxploitation causou.
Quentin Tarantino, abertamente grande fã do Blaxploitation, homenageou o movimento em seu terceiro longa, após o sucesso de“Cães de Aluguel” e “Pulp Fiction”. O diretor tirou Pam Grier do ostracismo para participar de “Jackie Brown”, em 1997. A obra, que conta com diversos elementos característicos do gênero, acompanha a história de uma comissária de bordo que trafica dinheiro a mando de um vendedor de armas, até que um dia dois policiais oferecem um acordo para que ela entregue o bandido. Ela decide, então, enganar todos os envolvidos.
A despeito das críticas, muito das fagulhas de representatividade que se vê atualmente no cinema é resultado das revoluções que esses movimentos revolucionários trouxeram. Desde Hattie McDaniel,– a primeira atriz negra vencedora do Oscar (que recebeu o prêmio em um hotel que não permitia a entrada de negros)-; a ascensão dos “race movies”; o sucesso de Sidney Poiter (“O homem nas trevas”), e até o recente protesto do Oscar so White.
Não é possível medir a qualidade do impacto que o Blaxploitation causou no cinema norte-americano. Há quem defenda que foi significativa e necessária para a diversidade nas obras hollywoodianas. Há quem questione a qualidade e relevância desse inclusão. No entanto, apesar do seu fim ter acontecido há décadas, os ensinamentos e o legado do movimento causam impacto até hoje.