Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 08 de julho de 2019

Shaft (Netflix, 2019): passos para trás

Longa vai contra o cerne da franquia e entrega personagens ultrapassados num texto cheio de piadas ofensivas.

Shaft foi um personagem que iniciou uma trilogia de filmes, no início da década de 70, que se encaixava no gênero do blacksploitation, que abusava de pesados estereótipos, mas resultava nas primeiras obras em que negros eram heróis e protagonistas, tendo influência no avanço das relações raciais e no empoderamento de uma população constantemente colocada à margem da sociedade. Os três primeiros longas e a série de TV que nasceu deles tiveram importante papel revolucionário e transbordava charme. Tudo isso foi jogado pela janela no reboot/continuação “Shaft”, lançado em 2019 pela Netflix.

Um pouco de história da franquia: Richard Roundtree (“Speed Racer“) interpretou o personagem nos anos 70, se tornando ícone cultural com seu charme, sex appeal e confiança. A música tema composta por Isaac Hayes é conhecida até hoje. Samuel L. Jackson (“Os Oito Odiados“) trouxe o detetive de volta em 2000 num filme bem menos cool, mas com críticas sociais relevantes. 19 anos depois, o longa lançado via streaming traz Jessie T. Usher (“Independence Day: O Ressurgimento”) como filho de Jackson e neto de Roundtree (é necessário usar os nomes dos atores pois seus personagens são todos chamados John Shaft). Os três aparecem em tela, o que prometia muito, mas entregou pouco.

Este longa sobre o assassinato do melhor amigo do mais jovem dos Shafts parece focar apenas em piadas ignorantes. Jackson está lá para reclamar de millenials, tratando-os como incompetentes fracotes despreparados para a vida; para fazer piadas homofóbicas sobre seu próprio filho (que não é gay, mas frases falando que se ele se veste de tal maneira só pode significar isso ilustram o extremo mal gosto que permeia a obra); e para fazer graça com o fato de que não sabe nada de tecnologia por conta de sua idade e de que nem precisa dela para resolver tudo. É triste ver um personagem revolucionário preso numa mentalidade ultrapassada. Ao dar passos para trás ao invés de procurar quebrar barreiras, o roteiro vai contra o cerne do que tornou o detetive um ícone.

Nem as relações entre pais e filhos funcionam aqui. O que poderia resultar em ótimas discussões sobre papéis paternos e abandono, viram apenas notas de rodapé decoradas com piadas ruins e um texto que mal constrói as relações entre seus personagens. Aliás, o filme não perde a chance de ser ofensivo, pois quando Jackson vê seu filho não agindo da maneira durona e violenta que ele espera, atribui tudo ao fato de que ele foi criado pela mãe. O protagonista claramente defende que seu filho deveria gostar de machucar outros e transar com o maior número de mulheres possível. Qualquer homem que não aja assim é, em sua vista, homossexual, o que o longa trata como algo ruim também.

É decepcionante ver bons atores tentando fazer funcionar um texto que causa constrangimento por ser tão ultrapassado ao invés de uma obra que poderia (e deveria) ter atualizado o personagem para os dias de hoje, procurando avançar as discussões sobre respeito e autoconfiança que impeliam seus fãs a melhorarem, mas que neste filme joga tudo no lixo.

Samuel L. Jackson é ótimo, mas aqui o filme precisa criar situações forçadas para ele mostrar que é “durão” com falas irreais e demasiadamente longas. Um desperdício de talento, pois basta olhar a carreira do ator para saber que ele consegue ser imponente só com sua presença. A força estava nas sutilezas, não em diálogos escancarados. Esse tipo de abordagem funciona no Shaft de Roundtree, que aparece por apenas 20 minutos, mas tem a aura que o personagem merece.

Além do roteiro ofensivo, as cenas de ação não se destacam (apesar do tiroteio no restaurante funcionar). A direção de Tim Story (“Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado”) não mescla bem a “comédia” com o lado mais sério e resulta num filme visualmente sem graça. Quando se traz um personagem antigo de volta às telas, é vital manter suas características principais, ao mesmo tempo que as adapta para as questões relevantes dos novos tempos. Infelizmente, este filme pega o que foi um símbolo revolucionário e o quebra, prendendo-o no passado e privando-o de qualquer tipo de desenvolvimento e evolução. Ofensivo e ultrapassado, o longa vai tão contra as origens do protagonista que até o clássico tema de Hayes é trocado por uma música altamente computadorizada e artificial.

Bruno Passos
@passosnerds

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