Cinema com Rapadura

Colunas   quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O Clube do Filme retrata com emoção o amor pelo cinema e pela vida

Um retrato comovente e dolorosamente sincero, o livro traz o cinema como personagem em conto sobre o difícil relacionamento entre pais e filhos.

Em certo momento do filme “O Curioso Caso de Benjamin Button”, dirigido por David Fincher, o personagem principal filosofa que “a vida é definida por oportunidades, inclusive as que perdemos”. Ao desenrolar da vida, aprendemos o quanto nossas escolhas definem os caminhos que iremos seguir. E tais escolhas podem estar ancoradas à oportunidades que, de uma forma de outra, moldam nossa trajetória. Em “O Clube do Filme”, o autor David Gilmour relembra sobre uma das escolhas mais difíceis (e importantes) que teve que fazer. Em seu livro auto-biográfico, David escreve sobre o momento em sua vida em que se viu perdido diante da incapacidade de seu filho, Jesse, em se envolver com os estudos. Com 15 anos, Jesse era popular e simpático, talvez até esperto, mas definhava diante de fórmulas químicas e cálculos matemáticos. David se viu impotente diante da derrota de seu filho e temia, mais que qualquer coisa, perde-lo de seu alcance. Com certa turbulência, fez uma proposta ao seu filho da qual ele não pôde recusar: Jesse poderia desistir dos estudos contanto que assistisse, toda semana, três filmes escolhidos pelo pai, e ao seu lado. E assim começou O Clube do Filme.

Para qualquer pai responsável, a escolha de David é uma perigosamente radical. E é mais que certo que gere certa controvérsia. Afinal de contas, David estaria sucumbindo aos desejos de seu filho imaturo, desprovendo dele uma vida acadêmica e social correta. Existe, porém, algo muito mais profundo em jogo aqui. Como vamos aprendendo ao desenrolar da narrativa, Jesse é um sujeito de personalidade forte, que bebe, fuma e se relaciona sexualmente. De forma aparente, a figura liberal de David como pai é facilmente atribuída. Naquele ponto da vida dos dois, momento da decisão importante, David sentia como se Jesse estivesse evaporando á sua frente. E nada deve ser mais doloroso para um pai que assistir seu filho se distanciar, aos poucos, para longe de seu alcance. Com o clube do filme, David – que é crítico de cinema – viu uma oportunidade para se conectar com seu filho e, no caminho, lhe ensinar valores e aprendizados. E, para qualquer um que seja sensível diante do poder e da arte dos filmes, é uma trajetória no mínimo interessante testemunhar o relacionamento entre pai e filho se aflorar entre sessões que vão desde “Os Incompreendidos” à “Amores Expressos”.

A relação entre David e Jesse é a alma do livro, que por sua vez é um expressivo e terno relato sobre a dor – e o prazer – de um pai ao testemunhar o crescimento do filho. A leitura inicia-se com um breve relato de David que é tão nostálgico quanto eficiente ao já denotar o quanto os três anos que ele e Jesse passaram juntos com o clube do filme foram importante para a relação pavimentada entre ambos – e até para o amadurecimento de Jesse como adulto. Entre os inúmeros filmes que conferiram, ambos passaram por terríveis momentos. David estava desempregado no período e se via lidando com o rumo descontrolado da vida do filho, que entrava em relacionamentos conflituosos e se destruía com o uso de drogas. O cenário pintado por David diversamente inspira o trágico, e é perigoso que alguns leitores enxerguem um painel de desvirtuamento de valores quanto à postura de David diante de seu filho. Nada ortodoxo, David surge como um pai flexível e ora fraco cujas escolhas paternais podem ter provocado atos destrutivos do filho. E, a todo momento, David nunca romantiza demais a leitura. Ele é dolorosamente sincero, e esta talvez seja a maior qualidade do livro. Por outro lado, a linguagem subjetiva e ocasionalmente metafórica de David pode encontrar certas inconsistências. Floreios e rodeios que soam desnecessários. Mas nem sempre é exagero, e David almeja ser sutil e profundo quando menos esperamos.

Embora os melhores momentos de leitura sejam aqueles que parecem nascer de emoções cruas, em relatos sinceros e comoventes sobre os obstáculos que David e Jesse enfrentaram neste curto período de suas vidas, alguns dos maiores deleites do livro estão vinculados aos filmes que são conferidos pela dupla. A certo ponto, os filmes parecem ser escolhidos por David de forma aleatória. Mas, inúmeras vezes, a leitura atinge o ápice ao retratar os paralelos que são construídos entre o que pai e filho testemunham na tela e o que sentem nos respectivos momentos de sua vida. “Os Incompreendidos”, de François Truffaut, é o primeiro filme que David mostra ao filho. A obra retrata a juventude de Antoine, que sente dificuldade em se relacionar com seus pais e seus estudos. O desfecho o traz correndo incontrolavelmente, em fuga. Ele chega à uma praia e, diante da imensidão do oceano, é assustado pela iminência da vida. De certa forma, David usa a obra para se comunicar com o filho, traçando paralelos e trazendo a tona questionamentos importantes. Existem outros belos momentos como este, espalhados pela leitura, em que o poder do cinema é retratado com vigor e paixão. A lista de filmes é extensa e, diversamente, os comentários de David beiram o superficial. Mas, quando este analisa um filme mais profundamente, o resultado é sempre caprichoso.

David Gilmour, autor de "O Clube do Livro", e seu filho JesseDavid surge como um digno mentor. Suas escolhas como pai podem ser questionáveis, mas isto se deve ao seu medo de ser repreendido pelo filho e de perde-lo no caminho. Em meio à aulas cinematográficas sobre o cinema exercido por Alfred Hitchcock ou Steven Spielberg (sempre interessantes), David se via em uma espécie de conexão com o filho que permitia que eles se relacionassem além na formalidade. Desta forma, ambos possuíam uma comunicação nada convencional. O que nasce disto é uma compreensão maravilhosa por parte de ambos. Um caso raro em que pai entende filho, e vice-versa. Certo momento traz ambos chorando após ocorrido dramático. A simples natureza da escrita é por si só é um feito admirável, mas a contundência nasce da constatação da união sóbria entre dois seres que poderiam ter sido arruinados pelos obstáculos da vida mas que, no ápice da tragédia, encontraram a si mesmos. Como pano de fundo, o cinema surgiu como fator incontestável desta união mútua que, no final das contas, termina com uma cópia de “Amores Expressos” esquecida na cama, a densa constatação de nostalgia, a dor irremediável da perda e o prazer inconfundível do orgulho. Hoje, Jesse Gilmour estuda cinema e tem sonhos de se tornar cineasta. Caso especial de uma vida drasticamente definida por uma oportunidade perdida.

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Wallysson Soares
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