Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 07 de junho de 2020

#RapaduraRecomenda – Festim Diabólico (1948): suspense sem cortes

Um dos filmes mais técnicos de Alfred Hitchcock, este é um exemplo de como conduzir a trama a partir da produção. Abrindo mão da montagem, o diretor consegue criar uma tensão crescente, que atinge seu ápice nos minutos finais.

A filmografia de Alfred Hitchcock é uma verdadeira escola de cinema. Apesar de ser conhecido como o mestre do suspense, o diretor britânico também trabalhou com comédias e dramas, conseguindo bons resultados em todos estes gêneros. Como diretor, Hitchcock era metódico e defendia que algumas regras jamais deveriam ser desobedecidas. Isso, porém, não impediu que ele mesmo atuasse como um rebelde, com produções inovadoras e que fugissem de algumas fórmulas. “Festim Diabólico” é um dos exemplos mais fortes disso, sendo uma obra atemporal, tanto pela narrativa, quanto pelo seu rigor técnico.

Na trama, Brandon (John Dall) e Philip (Farley Granger) são dois jovens que dividem um apartamento em Nova York. Eles se consideram intelectualmente superiores ao seu amigo David Kentley (Dick Hogan) e, como consequência, decidem estrangulá-lo com uma corda para provar que são capazes de cometer o crime perfeito. Após cometer o crime, a dupla coloca o corpo em um baú velho, e faz uma pequena festa, para a qual convidam a noiva Janet (Joan Chandler) e o pai dele. Para completar, convidam também seu antigo professor, Rupert (James Stewart), que eles acreditam ser a única pessoa capaz de compreender o ato.

Feito para parecer um longo plano-sequência, o filme tem a mesma duração da ação, de modo que, em diversos momentos, soa como uma apresentação de teatro. Hitchcock teve o cuidado de deixar um corte solitário na metade do filme, para demonstrar que estava ciente do que seu longa estava abrindo mão. Enquanto a ação chama o público para Brandon, um corte seco mostra o rosto de Rupert, que já suspeita de que há algo de errado no apartamento. Apesar de discreto, esse único corte perceptível serve para que saibamos que o controle ainda está nas mãos do diretor, mesmo que ele esteja criando a falsa sensação de liberdade, como aconteceria em uma peça de teatro.

E, com esse controle em mãos, Hitchcock consegue camuflar a narrativa em segundo plano. “Festim Diabólico” é um filme pensando pelo lado técnico. Por esse motivo, a evolução da trama depende do enquadramento. A ação é consequência da produção. Porém, o cineasta consegue trabalhar com a trama, em uma crescente de suspense, que em momento algum soa cansativo. Um exemplo disso, está no baú onde o corpo de David está escondido. Hitchcock volta a ele constantemente, criando a sensação de que o crime será descoberto, mesmo que por mero acaso. 

Ao mesmo tempo, “Festim Diabólico” é um filme que faz uma cuidadosa crítica à natureza humana. Brandon se diz como uma pessoa superior, com um senso de dignidade. O discurso é tão irracional que o roteiro não permite que seja prolongado. Nesse sentido, Rupert não age apenas como um investigador inusitado, mas como o defensor da moralidade — algo que Hitchcock sempre buscou colocar em seus filmes. Por esse motivo, ele suspeita do crime assim que aparece pela primeira vez. Suas falas são críticas e ele faz questão de apontar o erro dos dois alunos, quando se julgam superiores. Mesmo parecendo um detalhe pequeno, é algo relevante para um filme de 1948, quando os grupos de supremacistas brancos estavam começando a ganhar destaque novamente.

“Festim Diabólico” é uma obra singular na filmografia de Hitchcock, por ser tão anárquico. Simular um plano-sequência custou caro ao diretor, que precisou de um orçamento significativo para que tudo parecesse real. Por outro lado, mostrou mais uma vez a capacidade de Hitchcock de inovar. O diretor não demorou para condenar a si mesmo por ter feito o filme sem levar em conta a montagem. Apesar disso, a habilidade do cineasta em conduzir a obra compensa alguns pormenores, resultando em um filme singular.

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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