Cinema com Rapadura

Colunas   segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Da locadora a Hollywood: o cinema de Quentin Tarantino

Em "Era Uma Vez em Hollywood", Tarantino celebra o legado da Era de Ouro de Hollywood e a geração ascendente dos anos 1970. Mas seu cinema não para por aí.

Quando me perguntam se estudei cinema, digo: ‘não, eu fui ao cinema’.

Esta célebre frase de Quentin Tarantino é talvez a que melhor defina quem ele é por trás das câmeras: um artista que tem conhecimento enciclopédico de seu ofício, mas que cria suas próprias regras ao produzir sua arte. Em “Era Uma Vez Em Hollywood“, seu filme mais recente, ele coloca todo seu arsenal em ação e faz um filme com a sua cara, que mais parece diversão do que trabalho.

Compreender todas as referências, portanto, pode não ser algo fácil. Ele próprio reconhece isso, de certa forma, tendo chegado até a idealizar uma maratona de filmes para melhor entender o que eram os Swinging Sixties (alcunha pela qual ficou conhecido o final da década de 1960), era que serve como pano de fundo de “Era Uma Vez Em Hollywood”. Mas não vamos aqui nos ater ao contexto histórico, vamos olhar para o que constitui Tarantino enquanto cineasta, e quais são as principais influências que transparecem em sua obra.

Justamente por seu vasto conhecimento da Sétima Arte, os filmes de Tarantino costumam esconder diversas menções a outras obras, seja por homenagem deliberada ou por terem influenciado seu estilo enquanto artista. O catálogo é vasto, com o imaginário do cineasta repleto de personagens e situações emblemáticas cujas raízes estão, muitas vezes, em referências de décadas anteriores – da dança de Mia Wallace e Vincent Vega em “Pulp Fiction“, inspirada no clássico “” de Federico Fellini, ao próprio título de “Django Livre“, referência à obra quase homônima de Sergio Corbucci de 1966. Para entender um pouco de quais fontes Tarantino bebe, o Cinema Com Rapadura listou quatro de suas principais inspirações. Let’s go, basterds!

Spaghetti Western

Aposto meu dinheiro que ele é o maior de todos os cineastas italianos. […] Você não passa por Leone, você começa por Leone“. Este é o elogio singelo de Tarantino a Sergio Leone, principal expoente do spaghetti western. A ideia de faroeste mudou completamente com a ascensão de Leone e outros – ainda que esta mudança estivesse inserida em um contexto maior de evolução da indústria.

Sendo o faroeste até então um gênero focado muito mais em histórias de justiça e honra e em tipos heroicos como protagonista, o spaghetti western trouxe um novo tipo de herói para um cinema que era pequeno demais para ambos dois. Os tipos de John Wayne, Steve McQueen e outros deram lugar a protagonistas fechados, de poucas palavras e expressões, como o Homem Sem Nome de Clint Eastwood.

Talvez o maior exemplo da dicotomia entre os dois tipos sejam adaptações de outro grande diretor e influência para Tarantino, Akira Kurosawa: enquanto John Sturges adapta “Sete Samurais” (1954) para uma história de busca por liberdade em “Sete Homens e Um Destino” (1960), Leone prefere se basear em “Yojimbo” (1961) para falar sobre ganância em um conto regado a sangue com “Por Um Punhado De Dólares” (1964). Se no primeiro sabemos os nomes e origem de cada um dos referidos sete homens, no segundo nada disso importa.

A violência dos spaghetti western, aliás, foi descrita pelo próprio Tarantino como um dos elementos principais do gênero em seu texto reproduzido pelo periódico The Spectator:

“A combinação da surrealidade e da violência. Eles não parecem tão violentos hoje em dia, mas pareciam muito violentos então, porque não levavam isso tão a sério: italianos riem da violência, aquele tipo especial de humor à beira da forca.”

Não por acaso, o ator Rick Dalton, personagem de Leonardo DiCaprio em “Era Uma Vez Em Hollywood”, ficou famoso por seus papéis em séries de TV do gênero. Baseado no Rei do Cool Steve McQueen (entre outras personalidades da época), que também teve sua série de faroeste na televisão americana, na cronologia do filme Dalton chegou a trabalhar até mesmo com o cineasta real Sergio Corbucci, cujo “Django” de 1966 inspirou o “Django Livre” de Tarantino, de 2012.

Nouvelle Vague

“Era Uma Vez Em Hollywood” retrata um momento singular na indústria de cinema americana: a decadência do modelo de superproduções e orçamentos astronômicos dando lugar a filmes mais simples e pessoais. Esta mudança no padrão é reflexo, principalmente, do movimento francês conhecido como Nouvelle Vague, outra influência declarada de Tarantino.

Uma geração de jovens que cresceu entre a reconstrução da Europa, tentando se acostumar a um mundo política e culturalmente dividido com cujo surgimento eles nada tinham a ver e consumindo uma arte baseada na extravagância (ela própria um subproduto desta divisão). Em busca de uma voz própria, a Nouvelle Vague deixou de lado as aventuras épicas e grandes produções e passou a criar obras que olhassem para dentro, para como seria possível se encaixar neste mundo que não fazia qualquer sentido para eles.

De certa forma, Tarantino começou a criar sua obra em um cenário semelhante. Enquanto os filmes ao seu redor retomavam cada vez mais os ares extravagantes de outrora, ele criava seus filmes focando no cinema e em seu valor artístico. Seus personagens não eram grandes heróis ou soldados retornados da guerra, mas pessoas à margem, que buscavam, principalmente, encontrar seu lugar no mundo e aproveitar um pouco do silêncio, como Mia Wallace e os demais protagonistas de “Pulp Fiction” (1994).

Seus filmes tinham um quê de simplicidade, por mais complexas que pudessem ser suas narrativas. Em essência, personagens dançando no meio de um restaurante poderia muito bem ser um dos pontos altos de um filme em vez de batalhas e grandes disputas, não? Para quem logo de cara lembrou de Mia e Vincent Vega, sua dança vem justamente da Nouvelle Vague em “Bande à Part” (1964), de Jean Luc Godard (por mais que os passos em si sejam de Fellini em ““).

Tarantino acabou seguindo adiante em seus filmes, e sua obra eventualmente adquiriu, sim, um grau de elaboração que contrasta com seu início de carreira. Mas para um cinéfilo raiz como ele, nunca é bom se apegar a um único modelo por muito tempo. Ele próprio reconhece essa necessidade e admite que não é possível manter este grau de simplicidade para sempre. Todos os seus filmes, no entanto, carregarão para sempre o nome de “Bande à Part” nos créditos, já que o nome de sua produtora, A Band Apart, faz justa homenagem a todo o movimento que representa.

Violência e o cinema asiático

Ao sentar para assistir um filme de Tarantino, é preciso ter uma coisa bem clara: haverá violência e não será pouca. O diretor faz largo uso deste recurso como mecanismo de catarse para atiçar seu público. Às vezes o sangue jorrando pela tela é tanto que é até difícil segurar a risada, como a morte de Marvin em “Pulp Fiction“: no banco de trás do carro de Jules (Samuel L. Jackson) e Vincent (John Travolta), ele leva um tiro no rosto por descuido de Vincent, que estava com sua arma na mão quando o carro passa por um buraco. Já em outros momentos a aflição é tanta que mal é possível olhar para a tela, como a famosa cena da orelha em “Cães de Aluguel” (1992).

Desde o início da carreira, Tarantino é criticado pela intensidade da violência em seus filmes, ainda que ela seja de um fato elemento essencial em sua obra. Mas esta não é uma prática espontânea ou criada por ele. E se já mencionamos a violência advinda do spaghetti western (a própria cena da orelha, mencionada anteriormente, é quase reprodução de um momento no “Django” de Sergio Corbucci), outra grande influência de Tarantino vem do cinema de Hong Kong.

Em 1987, o cineasta Ringo Lam lançou “Perigo Extremo“, estrelado por Chow Yun-Fat e Danny Lee. Apesar de não ser uma obra-prima em si, o filme inspirou um breve subgênero local, revolucionado nos anos seguintes por John Woo com filmes como “Alvo Duplo” e “O Matador“. O cenário é conhecido: uma cidade que se expande até onde a vista alcança iluminada por luzes de neon, um eterno embate entre polícia e máfia, traições e reviravoltas sangrentas. Ou seja, tudo que viria a gerar “Cães de Aluguel” em 1992. Tarantino até dedicou o roteiro original do filme, entre outros, a Woo e Yun-Fat.

Mas a importância do cinema asiático não começou nem terminou por aí. Para qualquer fã de ação, os filmes de Bruce Lee são parada obrigatória, e não é diferente para Tarantino. Presente entre os personagens de “Era Uma Vez Em Hollywood”, Lee é até hoje cultuado por seus filmes de artes marciais, como “O Dragão Chinês“(1971), “A Fúria do Dragão” (1972) e “Jogo da Morte” (1978). Junto com o subgênero de ação japonês da década de 1970, estes formam o grande caldeirão que deu origem a “Kill Bill“. Do macacão amarelo da Noiva (idêntico ao traje de Bruce Lee em “Jogo da Morte“) à cena dos 88 Loucos e a vilã O’Ren Ishii (baseada na protagonista de “Lady Snowblood: Vingança na Neve“, de 1973).

Apesar de toda a morte e sangue retratados em seus filmes, Tarantino faz questão de esclarecer que violência não passa de um mecanismo narrativo. Em uma época na qual as pessoas buscam quaisquer subterfúgios para justificar a violência praticada por pessoas mundo afora, filmes e jogos costumam ser as primeiras vítimas. Mas a violência de Tarantino é divertida justamente por se distanciar do cotidiano e da vida real. E antes que alguém se disponha a causar tragédias, há uma série de fatores que permitem que elas ocorram fora das telas – que raramente são o gatilho.

A moral da história é que não sou responsável pelo que uma pessoa faz depois de ver um filme“, preconizava o cineasta já em 1993.

A própria Hollywood e sua história


Sharon Tate em “Vale das Bonecas”

Ler e ouvir Tarantino falar sobre Hollywood é como acessar uma enciclopédia viva. Qualquer entrevista sua é carregada de referências e citações a diversos gêneros e épocas. Com a chegada de “Era Uma Vez Em Hollywood”, ele faz uma homenagem simultânea a dois momentos da história de Hollywood: a decadência da Velha Hollywood e a ascensão da Nova. Essa era a referência que faltava a seu catálogo, e não havia melhor hora para isso que não agora, em seu penúltimo filme (já que ele gosta de afirmar que fará apenas 10).

Em 1969, Hollywood mudava a passos largos. Um novo movimento artístico de cinema na Europa (a Nouvelle Vague), o surgimento da contracultura e o movimento hippie davam uma nova cara aos filmes que o público começava a preferir. Entre os novos expoentes desta indústria rejuvenescida estava o casal Sharon Tate e Roman Polanski. Ela era tida como uma das mulheres mais belas de cinema, e ele havia acabado de chacoalhar Hollywood com o hoje clássico “O Bebê de Rosemary“. Esta história, no entanto, acabou tendo um final trágico com o bárbaro assassinato de Tate pela chamada Família Manson, uma seita comandada pelo criminoso Charles Manson.

Desde que deixou de trabalhar em uma locadora e se tornou um diretor aclamado, Tarantino se tornou parte da fábrica de sonhos que é o cinema. Como artista, ele entende seu papel nessa indústria e tudo que veio antes, mas também entende que não há nada que não possa ser mudado, ou regras que não possam ser quebradas. Até mesmo a de se ater a apenas 10 filmes, quem sabe?

Resultado deste caldeirão cinematográfico que é Quentin Tarantino, “Era Uma Vez Em Hollywood” chega aos cinemas brasileiros em 15 de agosto, quando o filme estreia. Leia nossa crítica.

Julio Bardini
@juliob09

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