Cinema com Rapadura

Colunas   domingo, 20 de dezembro de 2020

A Narrativa da Ilusão – como Legion abriu o caminho para WandaVision

Os filhos de dois dos mutantes mais poderosos dos quadrinhos também terão muito em comum nas telinhas.

Isso realmente está acontecendo?

Em 2019, depois de três incríveis temporadas, chegava ao fim o milagre de série chamado “Legion”. Criação de Noah Hawley, a obra tinha como objetivo contar a história do vilão dos quadrinhos Marvel, embora com uma abordagem bem diferente do padrão do gênero que já havia se estabelecido à época. Em 2015, quando a série começou a ser produzida, o Universo Cinematográfico da Marvel já estava chegando em sua terceira fase, e o universo dos mutantes da Fox estava… tentando ser algo. Em meio a isso, nasce uma produção verdadeiramente única, descrita por Hawley como “uma desconstrução de um vilão, e uma história de amor”.

Quando foi anunciada, “WandaVision” pareceu logo de cara algo estranho, um elemento bizarro no meio de vários filmes tão convencionais. Não questionando a qualidade tão presente no MCU, mas os capítulos da Saga do Infinito foram, em sua maioria, histórias comuns de heróis. Com originalidades aparecendo de vez em quando, e uma ou outra bizarrice (sim, é você, “Thor: Ragnarok”), a Marvel nos cinemas nunca arriscou tanto em estruturas narrativas. Sem falar que este título “WandaVision”, em seu primeiro momento, pareceu apenas uma junção preguiçosa dos nomes de seus protagonistas, estes que nunca tiveram tanto foco nos filmes passados. Que história eles poderiam render?

Bom, pelo visto, uma história deliciosamente esquisita. Com suas primeiras imagens, e eventuais trailers, “WandaVision” parece ser a primeira prova de que o estúdio comandado por Kevin Feige tem intenção de se expandir para territórios ainda não explorados. Quer dizer, não explorados pela Marvel Studios, porque, com a mente brilhante de Noah Hawley, a agora extinta Marvel Television foi a casa do maior exemplo de esquisitice narrativa e subversão em uma adaptação de história em quadrinhos.

David Haller, um esquizofrênico / Wanda Maximoff, um experimento

Os dois personagens focos deste texto estão envolvidos em uma névoa pelas histórias tão sempre complicadas dos quadrinhos, sendo vilões, anti-heróis, ou heróis, e tendo até suas origens mudadas por vezes. Mas a intenção aqui é falar sobre como David Haller, o Legião, e Wanda Maximoff, a Feiticeira Escarlate, são retratados em suas respectivas adaptações.

Noah Hawley, que já estava envolvido com o canal FX por conta de sua série “Fargo”, recebeu a proposta de criar uma história no mundo dos X-Men, decidindo por explorar o Legião. Em suas origens, David é um mutante nível ômega filho de Charles Xavier, mas que na verdade não foi criado como tal – o Professor X nem sabe de sua existência por muito tempo. Ao longo de sua vida, experiências traumáticas vão despertando múltiplas personalidades, cada qual com um poder diferente. Telecinesia, capacidade de alterar a realidade, manipulação do tempo, todos os ingredientes de um grande desastre.

Tudo isso também é verdade em “Legion”, mas com uma diferença de prioridade. Em seu arco fechado de três temporadas, a série foi, do começo ao fim, sobre David Haller (Dan Stevens), uma pessoa com doenças mentais que convém de também ser um mutante. Paralelo aos X-Men nos cinemas, que não eram nada se não seus poderes, a mutação de David era o elemento ideal para o desenvolvimento da criativa história de “Legion”, mas não seu foco. O protagonista passou sua vida toda achando que era doente, enfrentando traumas na infância, uma juventude problemática, e então a internação psiquiátrica. Mas o que parecia ser o violento efeito de uma doença, na verdade eram manifestações de seus poderes. David descobre ser um mutante, e enquanto uma luta pela sobrevivência da espécie acontece de fundo, ele tem de enfrentar seus verdadeiros demônios, que não são apenas frutos de sua mente perturbada.

Certo, e o que isso tem a ver com Wanda?

No já longínquo ano de 2015, quando a personagem fez sua estreia em “Vingadores: Era de Ultron”, Fox e Disney ainda eram entidades separadas, e os mutantes ainda não haviam voltado para a Marvel. Assim, Wanda (Elizabeth Olsen) e seu irmão Pietro (Aaron Taylor-Johnson) tiveram de ser apresentados como “aprimorados”, frutos de um experimento da Hydra com a Joia da Mente. Colocando de lado a perceptível bagunça na introdução dos Maximoff, as circunstâncias acabaram contribuindo para que o desenvolvimento de Wanda dentro do MCU tivesse menos a ver com seus poderes e mais a ver com seus traumas.

Depois de perder a família em uma tragédia, tendo apenas seu irmão, Wanda então sofre com o confinamento e os experimentos do Barão Strucker. Depois de liberta, Wanda indiretamente cria Ultron, e depois o ajuda. Percebendo o erro, ela se volta contra o robô do mal, mas acaba perdendo seu irmão (você não viu isso vindo?). Embarcando em missões com os Vingadores, a jovem Maximoff não tem um momento de paz, pois ao salvar seu colega de time, ela causa uma explosão que fere civis, e o público clama pela sua prisão – e o controle de todos os “aprimorados”. Chega então a Guerra Civil, também acelerada por suas ações, e Wanda, e seu namorado sintozoide Visão (Paul Bettany) se tornam fugitivos. Não bastasse todos esses traumas, vem Thanos, forçando Wanda a destruir a Joia da Mente, matando seu amado no processo. Como alguém consegue lidar com tudo isso sem surtar? Bom…

O histórico dos poderes de Wanda no MCU é bem simples: manipulação da mente dos outros (pouco usado), bolinhas e ondas vermelhas de energia (usado sempre, para qualquer fim que o roteiro precise). Seja pela complicada situação jurídica da coisa antes da compra da Fox pela Disney, seja pelas amarras que ter uma personagem ultra poderosa colocaria na criação de um vilão realmente ameaçador para a Saga do Infinito, Wanda nunca teve seus poderes explorados. A falta de delimitação do que ela pode fazer não difere de seu histórico nos quadrinhos, visto que seus “feitiços” também serviram sempre ao propósito da trama. Mas uma importante expansão de suas capacidades ainda há de ser levada aos cinemas: a habilidade de distorcer a realidade, ou criar uma nova.

É então que, pelos traumas sofridos por Wanda desde sua apresentação no MCU, ela poderá ser a mutante – ou feiticeira – que sempre foi destinada a ser.

“Uma ilusão começa como qualquer ideia…como um ovo”

A sinopse oficial de “WandaVision” descreve a série como “uma mistura do estilo das clássicas sitcoms americanas com o Universo Cinematográfico da Marvel”, e isso certamente causou a desconfiança de uma porcentagem dos fãs que não veem como a bizarrice dessa ideia pode encaixar no MCU. Com o primeiro trailer, a divisão entre aqueles que estão ansiosos para a produção e aqueles que acham que “vai dar merda” ficou ainda mais clara, o que só se solidificou com o segundo trailer.

Mas aqueles que já assistiram “Legion” não puderam deixar de reconhecer a semelhança que “WandaVision” está evocando. Um mutante poderoso que está preso em uma ilusão e não sabe distinguir o que é real, com um pano de fundo longe do que identificamos hoje como uma narrativa convencional? É, isso é “Legion”. E o que em “WandaVision” será explorado com o estilo das sitcoms americanas, na série de Noah Hawley, tivemos danças de Bollywood, ou batalhas de dança, encenação de filmes mudo, um plano astral vigiado por um astronauta, ou uma luta no plano astral ao som de Behind Blue Eyes, ratos que dançam ao som de Slave to Love, uma comunidade hippie, e a boa e velha viagem no tempo.

Embora tenha sido criada para um público diferente do alvo do MCU, e com uma história que é complexa e mirabolante demais para ser imitada, “Legion” tem lições que parecem úteis para a atmosfera de “WandaVision”. A primeira delas sendo a narrativa da ilusão. Sem entrar em detalhes, para que aqueles que ainda não assistiram possam ter essa baita experiência, a segunda temporada de “Legion” trabalha com o que é real ou não, ou melhor, o que percebemos que é real, e a realidade de fato. Essa discussão é feita através de “aulas” dadas por um narrador (Jon Hamm), que por meio de ensinamentos didáticos convida o público a refletir sobre a história que está sendo contada.

Dois desses ensinamentos são bem relevantes aqui. O primeiro deles estabelece como é possível alguém acreditar em algo mesmo que este algo seja indubitavelmente uma mentira. “Para uma ilusão prosperar, outras ideias mais racionais têm de ser rejeitadas”, diz o narrador.

A segunda das lições fala sobre a percepção da realidade, que vem da nossa mente e não do nosso corpo. “Nós temos que concordar sobre o que é real”, e é isso que faz de nós humanos os únicos seres que podem enlouquecer.

Depois dos eventos de “Vingadores: Ultimato”, Wanda está sozinha, e sua mente, vulnerável. Ela está disposta a acreditar que está vivendo o sonho americano com Visão mesmo que isso não seja possível, afinal ele está morto. Uma perigosa ilusão, que promete desencadear a verdadeira potência dos poderes de Wanda.

Embora haja semelhanças entre as duas séries, há de se traçar uma linha separando seus objetivos. Com a premissa de “descontruir um vilão”, “Legion” nunca foi limitada por “certo” ou “errado”, e sempre prosperou na área cinzenta. “WandaVision”, no entanto, trabalha com dois personagens que já foram definidos como heróis no Universo Cinematográfico da Marvel, portanto a discussão é muito menos sobre moralidade e mais sobre definir o verdadeiro papel de Wanda nesta nova fase. A heroína pode estar presa em uma ilusão, mas quem está alimentando a mentira? E quais serão as consequências da expansão de seus poderes? As respostas para estas perguntas devem ter mais foco do que a exploração da psique de Wanda, visto que cada obra dentro deste conectado universo precisa exercer sua função.

Ainda assim,“WandaVision” deve usar as ilusões da protagonista para que ela cresça como personagem e, quem sabe, possa assumir seu lado mutante. Ou feiticeira. Fica a decidir. Mas como “Legion” bem provou, o melhor jeito de explorar os conflitos mentais de seres super poderosos, é jogá-los em uma estrutura narrativa que absorve a bizarrice e transforma em entretenimento.

As várias eras das sitcoms americanas

“WandaVision” terá episódios assimilando o estilo das sitcoms de cada época. Começando com os anos 50, encontraremos Wanda e Visão em um cenário similar ao de “The Dick Van Dyke Show”, partindo logo para os anos 60, ainda em preto e branco, com influências de “I Love Lucy”. Ambas as séries retratavam a vida da clássica família americana, um ideal que Wanda parece estar buscando para ela e Visão. Há ainda a influência de “Bewitched” nos anos 60, através dos “truques” de magia para ajudar no serviço doméstico.

É então que seremos transportados para a era das cores…

… com Wanda ficando grávida. Nos anos 70, a inspiração parece vir de “The Brady Brunch”, embora para os mais jovens, o estilo é mais reconhecido como vindo de “The 70’s Show” – esta série dos anos 2000 emulava a ambientação daquela época. Com a virada para os anos 80, vem o nascimento dos gêmeos, e com a expansão, as sitcoms homenageadas parecem ser “Full House” e “Married… with Children”, que agora não acompanham só mais um casal, e sim uma família inteira, e suas desventuras.

Nos anos 90, podemos perceber a influência de “Roseanne”, e no fim da década, com “Sabrina, Aprendiz de Feiticeira” (provavelmente presente no episódio de Halloween). Chega enfim, os anos 2000, trazendo os estilos de “mockumentary” como visto em “Modern Family” e “The Office”. Podemos esperar a quebra da quarta parede, assim como o choque entre ilusão e realidade, visto que é aqui que deve acontecer a reta final da série.

É certo que veremos encenações de clássicas situações das sitcoms citadas, mas o mais interessante é pensar sobre como isso será relacionado à narrativa. Já tivemos um gostinho nos trailers, principalmente com o primeiro episódio. Vimos Wanda e Visão jantando com um casal de amigos curiosos, que questionam de onde eles vieram, e por que ainda não têm filhos, e o que era apenas uma situação comum para uma sitcom, torna-se um desafio para a dupla de heróis, que não consegue se situar na realidade. Da mesma forma com a vizinha intrometida Agnes (Kathryn Hahn), que questiona a falta de um anel em Wanda.

“Eu garanto a você que sou casada”.

A escolha da Marvel Studios de situar “WandaVision” na evolução das sitcoms acaba sendo um caminho mais “fácil” se comparado à trajetória de “Legion”, mas é também uma forma inteligente de se inovar. Os cenários são estabelecidos, e as expectativas são colocadas mediante cada era de sitcoms. Então, está aberta a porta para que a jornada de Wanda, principalmente, seja expandida.

O mundo de “Legion” não possuía limitações estilísticas, indo para qualquer lado que Hawley desejasse, mas não faltam exemplos de maravilhosas escolhas estruturais para representar os conflitos em cena. Uma delas acontece no episódio 7 da primeira temporada, quando personagens precisam escapar de uma ilusão e fugir do monstro. A cena começa como uma referência ao “Eles Vivem” de John Carpenter, e depois entra no estilo do cinema mudo.

Outro exemplo acontece no primeiro episódio da segunda temporada, em que uma batalha de mentes é retratada por meio de uma batalha de dança – em “Legion”, toda batalha psíquica ganha seu toque de estilo.

Poderes, benção ou maldição?

Um questionamento sempre presente em histórias que ousam ir além do próprio gênero de heróis, para Wanda, a resposta parece clara. Depois de tantos traumas, muitos dos quais foram causados por suas habilidades mesmo com as melhores das intenções, a Feiticeira Escarlate precisará enfrentar demônios internos – e outros tipos também – para poder encontrar o equilíbrio.

Para David, essa jornada sempre foi turbulenta. De suas raízes de vilão, veio sua moral dúbia, e da tentativa de desconstrução deste rótulo, veio uma complexa e gratificante história sobre distúrbios mentais, auto conhecimento, egoísmo e altruísmo, e por fim, amor. “Legion” foi um milagre porque conseguiu ser um universo autossuficiente, longe dos mutantes da Fox, longe dos heróis da Marvel, uma história com começo e fim. E para aqueles que ainda não conheceram a jornada de David Haller, fica aqui o convite – as três temporadas estão disponíveis na Netflix.

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Nas HQs, Wanda já foi de feiticeira, para mutante, para humana que usa magia, e até sua relação com Magneto não é tão direta quanto já foi (quadrinhos são um pesadelo narrativo). E certamente alguém está lendo isso querendo dar uma aula sobre todo o complicado histórico da personagem. Mas quando se olha apenas para o MCU, o que começou como um nascimento anticlimático, longe de seu verdadeiro potencial, agora é a maior promessa para o futuro da Marvel. Teorias afloram sobre qual será a ligação de Wanda não só com a introdução dos mutantes no MCU, mas principalmente com a abertura do multiverso, visto que a personagem estará presente em “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura”. Lado a lado com o Mestre das Artes Místicas, Wanda terá de combater algum mal… ou será o mal a ser combatido? De uma forma ou outra, é ela que abrirá a Fase 4 da Marvel, marcando o início de uma era muito mais bizarra, em que os mutantes encontrarão seu caminho para casa, e com sorte, histórias como as de “Legion” não serão mais a exceção.

Louise Alves
@louisemtm

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