O mundo é grande o suficiente para vários Holmes: por que um universo expandido é uma boa ideia
Com Robert Downey Jr. querendo criar um "mystery-verse" e Enola Holmes fazendo sucesso, por que não reviver o gênero?
Há um mês, depois de um período escasso de filmes novos sendo lançados, “Enola Holmes” chegou à Netflix, trazendo uma leve e divertida história focada na irmã mais nova do detetive mais famoso do mundo, com base nos livros de Nancy Springer. Enquanto a personagem título é interpretada por Millie Bobby Brown, Sherlock Holmes faz sua aparição através de ninguém menos que Henry Cavill – o que causou um certo alvoroço na internet.
Antes de Cavill presentear o público com uma breve versão de Sherlock, a série “Elementary” teve seu último episódio exibido em agosto de 2019, depois de sete temporadas. A produção garantiu a Jonny Lee Miller o título de ator que interpretou Sherlock por mais tempo na televisão e no cinema, depois de 154 episódios. Dois anos antes, era exibido o que para todos os efeitos foi o último episódio de “Sherlock”, série da BBC protagonizada por Benedict Cumberbatch. E em 2011, Robert Downey Jr. aparecia pela segunda vez como o detetive em “Sherlock Holmes: O Jogo de Sombras”, segundo filme de uma possível trilogia.
Downey Jr. de fato deseja fazer um terceiro filme com sua versão do personagem, e não só isso, ele acredita que um “mystery-verse” seria uma ótima ideia. “Sherlock Holmes 3” poderia não só ser mais um capítulo de sua saga, mas uma produção que apresentaria oportunidades de spin-off de outros personagens, potencialmente até para séries de TV através do HBO Max. E quer saber… por que não?
Se tem algo que “Enola Holmes” provou é que o público está disposto a aceitar todo tipo de representação de Sherlock – e sua família -, dado o contexto correto. E certamente não é apenas na última década que isso tem acontecido. Sherlock Holmes tem sido representado de diversas formas ao longo de anos, garantindo uma verdadeira múltipla personalidade que se mostra ideal para uma série de adaptações diferentes. Já diria Holmes através de seu criador Sir Arthur Conan Doyle:
“Você conhece meus métodos. Aplique-os”.
Quem é Sherlock Holmes?
Apesar do que muita gente afirmava acreditar recentemente nas redes sociais, Sherlock Holmes não foi alguém real, mas sim um detetive fictício criado por Arthur Conan Doyle em 1887. Registrado em 2012 pelo Livro Guinness dos Recordes como o personagem mais retratado na história da televisão e cinema, Sherlock foi a figura central de 4 romances e 56 contos escritos por Doyle. O detetive é descrito como alguém excêntrico – o que suas várias representações sempre deixam bem claro -, equipado com uma capacidade incrível de fazer deduções, algo bem útil para o trabalho investigativo, mas que costuma irritar seus colegas policiais, visto que Sherlock possui autoconfiança suficiente para uma vida inteira, chegando a ser arrogante. Trabalho constante é a droga favorita de Holmes, mas quando isso está em falta, ele se vira com outras drogas como cocaína e ópio, tudo para se livrar do tédio da vida normal.
Visualmente, Sherlock Holmes possui marcas registradas, como o chapéu, sua capa e o cachimbo, e o público de fato espera um certo tipo de personalidade do famoso detetive. Criado inicialmente como alguém que não entende bem e pouco possui uma natureza humana, Conan Doyle eventualmente viria a escrever o personagem de forma a se conectar mais com o emocional do público. A possibilidade de Sherlock “ter sentimentos”, por assim dizer, rendeu recentemente uma nova situação jurídica. A Conan Doyle Estate, que gerencia as histórias do autor, processou a Netflix e a Legendary pelo filme “Enola Holmes”, assim como a autora dos livros Nancy Springer, por supostamente retratar Sherlock como alguém com empatia e sentimentos, o que só foi introduzido nas histórias de Doyle depois de 1923, e portanto, ainda não seria de domínio público.
A propriedade já havia passado por uma história similar em 2014, e perdeu o caso. A Doyle Estate ainda possui domínio de 10 histórias de Sherlock Holmes e faz questão de explorar a situação enquanto pode. Mas, mesmo sem os tais sentimentos, Sherlock já não é mais quem era quando Conan Doyle o escreveu em 1887. E ainda bem, imagina um personagem permanecer o mesmo por mais de um século, mesmo sendo aquele que mais é adaptado para quadrinhos, programas de rádio, peças, séries e filmes. Este vídeo do TED-Ed (em inglês) resume bem essa evolução do personagem:
Contanto que sua dedução lógica continue tornando-o capaz de desvendar crimes, Sherlock Holmes pode ter uma mudança ou outra de personalidade. Assim como a ambientação de suas histórias, que seja no século 19 ou nos dias atuais, em pouco afeta o fator de entretenimento. Agora uma coisa que certamente não pode mudar, algo que Sherlock não pode, e nem deve, viver sem, é seu caro e fiel amigo dr. Watson.
O trunfo de Sherlock Holmes: John Watson
O Doutor John Watson é o companion de Holmes, seu sidekick, ajudante, amigo, e claro, os olhos do público nos elaborados casos desvendados pelo detetive. As histórias são contadas pelo ponto de vista de Watson, que recebe as informações de Holmes para que nós também possamos receber, sem ao mesmo tempo desvendar os mistérios logo de cara. Além disso, Watson serve como o perfeito oposto de Holmes, e alguém que vê o detetive com grande admiração.
O personagem, assim, é altamente útil não só para Sherlock, como ajudante, mas para nós, como leitores/espectadores. Porém, narrativamente falando, Watson é essencial, principalmente ao se tratar do aspecto humano daquele que supostamente não tem coração. Usando de exemplo os dois filmes de Sherlock Holmes dirigidos por Guy Ritchie, e a série da BBC, fica claro como a narrativa enriquece quando as prioridades lógicas de Holmes são colocadas em oposto à sensibilidade de Watson. E mais ainda, quando Sherlock demonstra, mesmo que apenas com ações, como o doutor é importante em sua vida.
Em “Sherlock”, acompanhamos o primeiro momento em que o Watson de Martin Freeman e o Holmes de Cumberbatch se conhecem, e temos a chance de presenciar o desenrolar dessa inusitada amizade. Os criadores da série, Mark Gatiss e Steven Moffat, exploram muito bem a parte humana (ou nem tanto assim) de Sherlock ao mostrar, de início de formas bem sutis, e depois bem claramente, que John Watson é talvez o único amigo do detetive, mais importante até do que seu irmão Mycroft, e alguém por quem Sherlock daria sua vida (ou quase).
Adeus, John.
Já nos filmes de Guy Ritchie, encontramos a dupla em um estágio já avançado da relação, com Watson (Jude Law) às vésperas de se casar, e deixar de morar com Holmes. Entende-se que eles já resolveram diversos casos juntos, e que John tenta deixar a vida agitada por uma calma vida doméstica com sua esposa. Porém Sherlock acha a ideia inaceitável, e arrasta seu parceiro – contra à vontade mas nem tanto – para mais e mais cenas de crimes. Com o Sherlock de Downey Jr. sendo menos excêntrico e mais socialmente apto, por assim dizer, a amizade dos dois parece mais “normal” do que no caso de “Sherlock”, mas a química entre os dois atores é inquestionável, e eles certamente funcionam melhor quando estão juntos.
Watson, o que você fez?
Então, seja para auxiliar à narrativa de resolução de crimes, ou para dar mais profundidade emocional a um personagem supostamente frio, John Watson – sendo homem ou mulher, como foi o caso de Lucy Liu em “Elementary” – é essencial em qualquer história de Sherlock Holmes.
Holmes para todos os gostos
Com estas duas versões mais recentes e mais populares como exemplo, o público em sua maioria favoreceu mais a interpretação de Benedict Cumberbatch. Não surpreende, pois o ator participou de quatro temporadas, com essencialmente treze filmes de 90 minutos ao todo, e teve chance de mostrar todos os possíveis lados de Sherlock, até mesmo um mais “tradicional” no episódio especial A Abominável Noiva. Não só isso, ao interpretar o personagem de forma que pode ser considerada a mais excêntrica, as pessoas costumam classificá-lo como o mais próximo de quem Holmes seria. Isso chega a ser curioso quando se tem em mente as múltiplas personalidades do detetive, não só em suas adaptações, mas dentro das próprias histórias.
“Você é Sherlock Holmes, use a porcaria do chapéu”.
O Sherlock de Cumberbatch se mostra como alguém impossível de viver em sociedade, até que ele precisa fazê-lo a fim de solucionar algum mistério. Mas não é assim que ele escolhe viver, e ao se passar nos dias atuais, a série acaba permitindo tal liberdade. Não existem tantas constrições sociais como, digamos, na década de 1890, quando o Holmes de Downey Jr. tem um certo aspecto de cavalheiro a manter. Ainda assim, temos acesso a suas maneiras nada convencionais quando o vemos junto a Watson no apartamento 221B na Baker Street. As prioridades na adaptação de Guy Ritchie acabam sendo as que favorecem seu estilo, como a capacidade física de Sherlock, seus dotes de disfarce e suas piadas espirituosas. Feliz é quem consegue aproveitar ambas as versões, e o futuro da família Holmes reserva grandes promessas.
Mesmo não fazendo parte do cânone oficial de Arthur Conan Doyle, Enola Holmes, uma criação da autora Nancy Springer, é uma ótima atualização da ideia do detetive. Com o primeiro volume lançado em 2006 – adaptado para o filme de Millie Bobby Brown -, a autora apresentava uma jovem garota com capacidades de dedução similares a de Sherlock, mas capaz de ter empatia e, principalmente, mais ciente da natureza feminina, algo a que Holmes sempre foi um tanto alheio.
Springer ainda publicou outros 5 volumes da série de livros de Enola Holmes, e que maravilha seria se também fossem feitas continuações em filmes! Agora adquirido pela Netflix, é impossível saber como foi a recepção do longa a não ser que o streaming divulgue os números, mas é justo afirmar que seria burrice não continuar esta saga. Bobby Brown é não só a estrela do filme, e também a produtora, e a jovem atriz é provavelmente a estrela mais rentável da Netflix, ao liderar “Stranger Things”. A obra também tem o potencial de atrair jovens espectadores para um gênero que talvez não esteja em seus radares, e ainda pode incentivá-los à leitura.
E quanto ao “mystery-verse” que Robert Downey Jr. propõe? Bom, a primeira opção mais sábia seria reviver Irene Adler, ou melhor, apenas revelar que a personagem, interpretada por Rachel McAdams, não morreu em “O Jogo de Sombras”. Expandir a participação do Mycroft Holmes de Stephen Fry também seria um passo lógico, e quem sabe até trazer Mary Watson (Kelly Reilly) como peça participante na resolução dos crimes, como “Sherlock” acabou fazendo.
E que tal juntar todas essas propriedades em um bolo só? Multiverso Holmes, quem sabe? Tudo bem, fui longe demais…
Existem várias possibilidades com estes personagens, mas que parecem não estar sendo aproveitadas como deveriam. Enquanto Robert Downey Jr. resolve o que ele e sua produtora pretende fazer com seus filmes e possíveis séries, “Sherlock Holmes 3” segue sem novidades. E nem falemos de “Sherlock”, que desde o fim da quarta temporada está em um limbo de nem cancelada nem ativa. Muitos assumem que a produção foi finalizada, e que ninguém tem intenções de voltar. Mas como a esperança é a última que morre, só nos resta torcer.
Quando a vida fica estranha demais, impossível demais, assustadora demais, há sempre uma última esperança. Quando todo o resto falhar, há dois homens sentados, discutindo em um apartamento bagunçado, como eles sempre estiveram e sempre estarão. Os melhores e mais sábios homens que já conheci, meus garotos da Baker Street, Sherlock Holmes e dr. Watson.