Cinema com Rapadura

Colunas   sexta-feira, 25 de setembro de 2020

[Artigo] Filmes que retratam violência policial contra negros viraram tendência em Hollywood?

A importância dos filmes que retratam os traumas negros e a necessidade de mais espaço para apresentar outras perspectivas.

Oscar Grant III sonhava em ser barbeiro e estava planejando o casamento. Pai de uma menina de quatro anos, o jovem negro de 22 foi baleado nas costas por um policial branco na plataforma da estação de trem Bart Fruitvale, em Oakland, Califórnia. Era o primeiro dia de 2009. Em 2013, Grant foi interpretado por Michael B. Jordan no longa “Fruitvale Station”, escrito e dirigido por Ryan Coogler. 

A morte de Grant e de Trayvon Martin, Michael Brown, Tamir Rice e Sandra Bland, pessoas negras que também foram assassinadas por forças de segurança, inspiraram a escritora Angie Thomas a escrever o livro “O Ódio Que Você Semeia”, em 2017. No ano seguinte chegaria aos cinemas a adaptação da obra, em que a adolescente negra Starr Carter assiste ao assassinato do seu melhor amigo por um policial branco.

Já em 2019, a Netflix lançou uma das minisséries mais duras e complexas de seu catálogo. Conduzida por Ava Duvernay, “Olhos Que Condenam” conta a história real dos cinco meninos acusados, julgados e condenados erroneamente pelo crime de violência sexual contra uma mulher que corria no Central Park em 1989. Korey Wise, um jovem de 16 anos na época do crime, ficou 13 anos na prisão e foi libertado apenas em 2002. 

Histórias como a da Korey Wise e Oscar Grant se repetem exaustivamente na sociedade. Eric Garner, Walter Scott, Freddie Gray, Philando Castile, George Floyd, João Pedro, Ágatha Felix, Pedro Gonzaga, Wilton Domingos Júnior, Wesley Rodrigues, Cleiton Corrêa de Souza, Carlos Eduardo da Silva de Souza, Roberto de Souza Penha e tantos outros são vítimas de uma guerra permanente que acontece de forma ininterrupta. 

“Olhos Que Condenam”

Nos últimos anos, a violência contra o povo negro se tornou combustível ainda mais inflamável para a produção de cinema. “Ponto Cego”, “Infiltrado na Klan”, “Se a Rua Beale Falasse”, “Detroit em Rebelião”, “Monsters and Men” e, mais recentemente, “Queen & Slim”, são apenas alguns exemplos de obras audiovisuais que debatem esse tema de forma explícita.

Essa onda é fortemente influenciada por uma demanda que vem das ruas. Protestos recorrentes e movimentos importantes, como o Black Lives Matter, fizeram o trauma da população negra, principalmente a violência policial, se tornar pauta nos jornais e uma espécie de gênero no audiovisual. 

No entanto, o sofrimento preto já era um tema recorrente em Hollywood antes mesmo disso: por muitos anos, o período histórico abraçado pela indústria audiovisual foi a escravidão. 

Apenas uma história

De “O Nascimento de Uma Nação” (1915) a “E o Vento Levou” (1939), a perspectiva se fez a partir de uma visão favorável ao regime escravocrata. Após o movimento americano pelos direitos civis na década de 1950, essa visão começou a mudar. Os escravizados, antes vilões ou personagens subservientes, passaram a ser retratados como heróis, vide “Django Livre” (2012) e as histórias adaptadas de “Harriet” (2019) e “12 Anos de Escravidão” (2013), que ganhou o Oscar de Melhor Filme de 2014.

A jornalista cultural Shakeena Johnson escreveu um artigo no site The Independent em que atribui o interesse de Hollywood por obras sobre brutalidade policial ao sucesso comercial de “Fruitvale Station”, filme que custou 900 mil dólares para ser feito e arrecadou US$ 17,4 milhões. Desde então, segundo ela, “o terreno mais fértil para o cinema negro tem sido um trauma”, pontua. “E se o diretor quiser um Oscar, ele vai colocar um branco salvador”

Para a jornalista, a proliferação de narrativas deste tipo é excessiva. “Os negros não precisam de 50 filmes de brutalidade policial por ano para nos lembrar das injustiças que enfrentamos e continuamos a enfrentar. Nós sabemos como é”, explica. “Imagine forçar Harriet Tubman ou Solomon Northup a assistir novamente o que eles viveram várias vezes por ano, supostamente por entretenimento”, complementa. 

“Queen & Slim”

“Pior ainda, parece uma exploração. Comecei a me questionar o quanto os diretores querem genuinamente investigar o trauma negro e o quanto eles desejam lucrar com isso, sabendo que é um caminho testado e comprovado para a aclamação da crítica”, Shakeena continua. Por outro lado, a cineasta e roteirista Carissa Vieira acredita que os filmes são importantes para criar debates e apontar a problemática deste tipo de situação.

Ela defende que é, também, uma forma de fazer com que criminosos possam pagar pelos crimes que cometeram. “A série ‘Olhos Que Condenam’, por exemplo, serviu para que indivíduos que estavam impunes tivessem que responder publicamente pelo próprio racismo”, justifica. “Acredito que os filmes ajudam algumas pessoas a encararem o racismo e começarem sua desconstrução. Porém, o processo ainda é individual”

O escritor e ativista Ale Santos disse que nunca viu “Olhos que Condenam”, apesar de conhecer a história retratada na trama. “Constantemente falo sobre negritude e racismo na internet, mas não consegui assistir ao seriado. Tem gatilhos de coisas que têm a ver comigo”, justifica. No entanto, ele acredita que obras deste tipo são necessárias para uma grande parte da sociedade.

“Uma parcela da população é totalmente alienada e está acostumada a desconsiderar a experiência de vida negra. Essas pessoas precisam se deparar com essas imagens”, indica. Ele relembra de como Martin Luther King Jr. conseguiu usar a imprensa e os canais de televisão como instrumentos para reverberar sua voz e ajudar a provocar uma revolução nos Estados Unidos. 

Martin Luther King Jr.

É muito clara a influência que as notícias e a divulgação midiática exerceu na causa dos direitos civis, ajudando ativistas e políticos a promoverem a aprovação de legislações importantes, como a Lei dos Direitos Civis de 1964 e a Lei do Direito ao Voto de 1965. King era um gênio da comunicação e usou suas habilidades para impulsionar o fim da segregação e a luta pela igualdade racial. 

King e Ralph Abernathy precisaram criar táticas para que a imprensa desempenhasse esse papel, mas eles sabiam que o país não acreditava na palavra dos negros. Não bastaria falar da experiência de ser um negro nos Estados Unidos, eles precisariam mostrar. A ideia era que os estadunidenses brancos assistissem com os próprios olhos, por meio de suas televisões, o sofrimento dos pretos. 

Chegou-se ao ponto em que Luther King escreveu uma carta para Andrew Young, importante ativista da Conferência da Liderança Cristã do Sul, dando-lhe instruções sobre como criar conteúdos que chamariam a atenção da mídia. “Em uma crise, devemos ter um senso de drama”, escreveu. Ale Santos concorda. “É muito importante a gente usar o cinema, que por muitos anos foi uma ferramenta de propagação do racismo, para humanizar o negro e desarticular estereótipos criados pelos filmes”, argumenta.

“A realidade negra sempre foi fetichizada por cineastas não negros. De alguma maneira, esses filmes alimentam ou retroalimentam um imaginário negativo”, acredita o escritor. Ele pontua, inclusive, a presença de programas policialescos no Brasil, onde a população se acostumaria a ver negros perseguidos e assassinados por forças policiais com frequência na TV. 

“Por muitos anos, o negro foi codificado como marginal, como um monstro. E esses filmes são importantes para quebrar esses apontamentos criados pelo imaginário racista”, justifica. Ale acredita, porém, que, tão importante como tocar nesses assuntos, é saber quem vai fazer isso. “Não adianta fazer um filme que mostre a violência contra a população negra pela ótica de uma pessoa branca, que provavelmente vai reproduzir racismo ou não entende todas as nuances destas violências”

As outras narrativas

Diante de um cenário aterrorizante para pessoas de cor, o cinema e a cultura pop colocam luz em debates importantes e necessários para a construção de um país mais igualitário denunciando injustiças e apontando as chagas do cotidiano. Ao mesmo tempo, no entanto, funcionam como um holofote que, enquanto ilumina o sofrimento, ofusca outras narrativas tão importantes quanto.

Em seu artigo, Shakeena Johnson reforçou exatamente este ponto. “Entendo como esses filmes de brutalidade policial podem ser reveladores para aqueles que não estavam cientes das nossas lutas e arrepiantes para aqueles que estavam. Porém, há muito mais na vida dos negros do que o envolvimento tóxico com as forças da lei”, explica. “Contos de dor negra custam dez centavos a dúzia”, complementa. 

Carissa corrobora com ela. “Meu problema é quando isso se torna a única forma que acreditam que negros podem ser retratados. Que só podem existir histórias negras de violência”, elucida. “Também é preciso abrir mais espaço para que outras narrativas, com protagonismo negro, possam existir”, finaliza. 

“Destacamento Blood”

Ah, e antes que me acusem de não pontuar a importância de narrativas que também abordam a perspectiva dos polícias, pois as forças da lei também são engrenagens de um sistema opressor, é porque essas narrativas já existem. E são muitas!

Metade dos dramas do horário nobre dos EUA são de policiais. Dos 69 dramas televisivos que foram ao ar nas quatro grandes redes de transmissão dos EUA nos últimos 18 meses, 35 eram sobre aplicação da lei. Para tornar o caso ainda mais complexo, um estudo de 2015 descobriu que os espectadores de tais programas eram mais propensos a acreditar que a má conduta policial e o uso desnecessário da força não eram problemas.

Apesar dos percalços, entretanto, parece estar se desenhando um cenário propício para o surgimento de mais enredos que não se apeguem ao sofrimento ligado a cor da pele.

Iniciativas como a da Netflix, de realizar mais conteúdos produzidos e voltados para pessoas negras; da HBO, onde Jordan Peele se tornou o diretor criativo e está a frente de, por exemplo, “Lovecraft Country”; da Ava Duvernay, que vem ganhando destaque na direção de obras importantes nos últimos anos, entre outros grandes produtores negros. 

“Nomes como o de Will Smith e Eddie Murphy, por exemplo, abriram espaço para fortalecer todas essas dimensões de atuação”, aponta o escritor Ale Santos. Para Carissa, essa mudança de narrativas ainda vai levar um tempo para acontecer plenamente, mas já é possível vislumbrar este futuro. “O crescimento da visibilidade dos artistas negros, aumentou a demanda de narrativas contadas por eles e sobre eles”, indica.

Ale Santos também acredita que os primeiros passos já foram dados. “Pessoas brancas sempre duvidaram que as narrativas de negros fossem realmente lucrativas. À medida que elas fazem sucesso essa crença se desmancha”, acredita. Por isso filmes épicos e sucessos comerciais, como “Pantera Negra (2018)”, que faturou mais de 1 bilhão de dólares, ajudam bastante nessa caminhada. “Quando estúdios compreendem que é possível ganhar dinheiro com histórias negras onde negros não são vítimas, abrem-se novas possibilidades e isso influencia toda a sociedade”, aponta.

“A figura do intelectual negro, do advogado negro, da médica negra ou da empresária trabalhadora é sufocada pelo negro analfabeto, bandido, prostituta e a mulher preta, pobre e viciada”, lamenta Ale. O escritor acredita no papel das narrativas para modificar esse cenário e fugir de estereótipos. “O cinema absorve estereótipos racistas do entretenimento, das novelas, do cinema, da literatura”, afirma. 

Ele complementa: “então o cinema é um catalisador e um propulsor de comportamentos sociais. Não só para o racismo, mas para tudo. O cinema promove modas e intensifica ideias dentro da sociedade. Por isso são tão importantes visões que promovam a humanização de pessoas negras”, finaliza. 

Neste cenário, o público assume um papel muito importante, tanto quanto produtores e estúdios. Ao buscar enredos que explorem outras perspectivas e dá voz a outras realidades, podemos abrir espaço para filmes que promovam um mundo menos desigual. Obras como “Moolinght” (2016), “Desculpe Te Incomodar” (2018), “Nós” (2019) e, claro, “Pantera Negra”, são apenas alguns dos exemplos que reforçam que o cinema feito por negros pode, sim, ter um apelo comercial e social além dos traumas. No fim, muito depende do filme que escolhemos dar o play.

Breno Damascena
@brenodamascena_

Compartilhe


Conteúdos Relacionados