Cinema com Rapadura

Colunas   domingo, 12 de abril de 2020

[Artigo] Inteligência artificial, algoritmos e o passado do futuro do cinema

A tecnologia está mudando a forma como filme são feitos, mas cautela é importante para não ficarmos presos em um loop.

Jovens de todo o mundo lotam shoppings centers e cinemas de rua. Os ingressos para as próximas semanas já estão esgotados há meses. Os pôsteres colados nas paredes da praça de alimentação e até as ilustrações nos sacos de pipoca amanteigada aumentam a expectativa para a sessão. Pessoas fantasiadas com uma capa azul e segurando histórias em quadrinhos aguardam na fila pelo momento mais esperado do ano. As luzes se apagam e o silêncio só é quebrado quando emerge a música clássica de John Williams. O ano é 1999 e “Superman Lives” acaba de entrar em cartaz. 

O filme dirigido por Tim Burton e protagonizado por Nicolas Cage apresentaria uma versão profunda e existencialista do Homem de Aço. A adaptação de “A Morte do Superman”, série de histórias publicadas pela DC Comics, seria realizada pelo roteirista Kevin Smith. As gravações estavam quase prontas para começar quando a Warner Bros. interrompeu a produção, ainda em 1998. Hoje, é possível apenas criar teorias sobre o impacto que a obra teria na cultura pop caso não tivesse sido cancelada.

A tecnologia, porém, parece perto de revolucionar este cenário. Nos últimos anos, diversas empresas surgiram oferecendo mais segurança para projetos inovadores e sugerindo caminhos mais assertivos para que os estúdios não percam dinheiro à toa. Diante das possibilidades de “Superman Lives”, talvez não seja coincidência, portanto, que a própria Warner tenha anunciado um acordo com a Cinelytic, startup de Los Angeles que usa algoritmos, para prever o sucesso de um filme antes de ser feito. 

A empresa usa utiliza dados variáveis para antever quanto dinheiro a obra pode ganhar com base no desempenho esperado em diferentes mercados. A partir de aspectos, como o gênero do longa ou os atores escalados, a plataforma analisa o possível comportamento do público. Na prática, os produtores podem, por exemplo, testar se um longa-metragem vai render mais dinheiro escalando Tom Hanks ou Idris Elba no papel principal.

Com apenas alguns cliques, o software permite que os clientes possam moldar todo o cenário mudando alguns elementos individuais. É mais lucrativo escolher o Will Smith ou Robert Pattinson para um filme voltado para jovens com menos de 20 anos? Qual dos dois ajudaria a aumentar a receita financeira em países asiáticos? Se o valor investido for 100 milhões, qual será o lucro? E se o orçamento for de 15 milhões?

Apesar do potencial, a Warner Bros. e a Cinelytic afirmam que a tecnologia será usada apenas nas decisões de marketing e distribuição, no máximo auxiliando os executivos na hora de deliberar qual projeto deve ser apoiado, não interferindo no processo de desenvolvimento de um filme. Desta forma, humanos continuariam sendo fundamentais para a produção ser realizada. 

“Tomamos decisões difíceis todos os dias que afetam o que – e como – produzimos e entregamos filmes para os cinemas em todo o mundo. Quanto mais precisos forem os nossos dados, melhor seremos capazes de envolver nosso público”, explicou o vice-presidente de distribuição da Warner Bros., Tonis Kiis, em entrevista ao site The Hollywood Reporter. Ele afirma que a tecnologia seria útil, por exemplo, em festivais, onde os estúdios travam guerras por direitos de distribuição e precisam decidir em pouco tempo qual é o potencial de uma obra. 

O Cinelityc, entretanto, não é a única inovação do setor. A passos largos, o cinema – tradicionalmente conhecido por ser uma indústria criativa – vem abandonando a cautela e adota cada vez mais inteligência artificial e tecnologias de machine learning em seus processos. 

A Script Book, por exemplo, se propõe a prever o desempenho de um filme a partir do roteiro. Em uma apresentação, a fundadora da startup, Nadira Azermai, afirmou que a plataforma identificou retroativamente falhas em 22 dos 32 filmes da Sony que perderam dinheiro entre 2015 e 2017. Desta forma, se o estúdio tivesse utilizado os algoritmos da empresa no lugar de humanos para decidir o destino dessas obras, muito dinheiro teria sido poupado.

Criado na Bélgica, em 2105, o ScriptBook é uma ferramenta em que os usuários carregam o arquivo PDF de um roteiro. Cinco minutos depois, recebem uma análise detalhada que antecipa, entre outras coisas, a provável classificação indicativa do Motion Picture Association of America; realiza uma análise dos personagens, avaliando as emoções deles; prevê o público-alvo, incluindo sexo e raça; e faz previsões da bilheteria. 

O ScriptBook aponta que quando o sistema indica que um roteiro deve ter luz verde, ele tem uma taxa de sucesso de 84%. Segundo Azermai, a taxa de precisão é três vezes maior que a dos humanos. Outra startup, a israelense Vault, garante que pode prever quais públicos (local, raça, gênero, idade) mais assistirão a um filme usando como base apenas o trailer dele. 

Como funciona um algoritmo?

O Cinelityc, o ScriptBook e a Vault são apenas algumas das diversas tecnologias sendo implementadas continuamente no cinema. As ferramentas foram projetadas para influenciar a tomada de decisões em um setor que precisa alcançar o máximo possível, ao invés de propor a experimentação livre e descoberta espontânea. Para entregar estes resultados com assertividade, as startups aprendem com a melhor e, ao mesmo tempo, mais obsoleta fonte de conhecimento: o passado.

É simples. Estes programas operam de acordo com dados, algoritmos e padrões introduzidos por humanos no sistema. Estas informações “treinam” a máquina para que ela possa entregar os resultados. O software do ScriptBook, por exemplo, foi concebido a partir de 6.500 scripts existentes. Os dispositivos em si não têm um ponto de vista. Quem os alimenta, porém, sim. 

Imagine que uma pessoa vai escrever um roteiro. O filme terá a perspectiva daquela pessoa sobre o mundo. O que ela acredita ser verdadeiro, o que ela renega, as coisas com que interage, os lugares que visitou e as experiências que teve. No papel, estará aquilo que ela deseja ver na tela. Imagine, agora, se essa pessoa fosse, na verdade, todos os grandes sucessos do cinema. Seria um ótimo filme, certo? Depende.

Sem abrir espaço para hipocrisias, é fundamental entender que, apesar de tudo, o cinema é uma indústria que visa o lucro. Existe, claro, espaço para a arte, mas os filmes, principalmente os hollywoodianos, ocupam o espaço de cultura de massa, com algumas lacunas para inclusão da tal arte que tanto defendem. Os filmes são feitos para entreter, questionar, confrontar, comover, desafiar e mexer com as emoções mais profundas do público, mas, acima de tudo isso, ganhar dinheiro. 

Fazer um filme custa muito. Em 1995, a Carolco Pictures descobriu isso da pior forma possível. Responsável por obras como “Instinto Selvagem” e “Exterminador do Futuro 2”, a produtora já vinha de um histórico negativo quando resolveu apostar as últimas fichas em “A Ilha da Garganta Cortada”. O filme arrecadou 10 milhões de dólares a partir de um orçamento de 98 milhões e se tornou um dos maiores fracassos de todos os tempos, decretando a falência do estúdio. 

Caso tivessem em mãos a tecnologia disponível agora pode ser que o estúdio ainda estivesse de pé. O filme, porém, provavelmente não seria estrelado por uma mulher (Geena Davis foi a protagonista) e quem sabe a história de pirata teria sido descartada logo de cara (um novo filme sobre o tema só voltou a ser produzido com “Piratas do Caribe”, em 2003), além de muitas outras mudanças. E é isso que preocupa os amantes do cinema. 

Os algoritmos fazem previsões a partir de dados do passado para modelar o futuro. O passado oferece experiências incríveis, mas também é carregado de preconceitos e convicções exageradas. Há muito, os executivos de Hollywood se agarram a crenças obsoletas sobre o que as pessoas querem ver e, por consequência, tendem a não apoiar filmes que fogem disso. 

Ao permitir que os algoritmos decidam o que deve ser realizado, as chances aumentam de que apenas homens brancos possam escrever histórias sobre pessoas brancas para que o público consuma. Isto sem contar a repetição de estilos visuais já consagrados com roteiros extremamente acessíveis e um ritmo concebido para que os telespectadores nunca fiquem entediados. 

Para estas pessoas, o sucesso internacional de filmes como “Corra!” e “Pantera Negra” , e o Oscar de “Parasita” são chocantes. Quando obras dirigidas e protagonizadas por mulheres, como “Mulher-Maravilha” e “Capitã Marvel” alcançam bilheterias impressionantes, os grandes executivos são pegos de surpresa. A exclusão histórica de pessoas não-brancas e de papéis femininos em filmes de grande orçamento possivelmente influenciará os algoritmos a propagar ainda mais obras excludentes.

Criatividade na berlinda

Defensores de tecnologias como as que foram apresentadas neste texto argumentam que as ferramentas podem ser utilizadas justamente para superar ideias obsoletas. A Cinelytic, por exemplo, ajudaria na identificação dos padrões positivos financeiramente, mas que o preconceito dos executivos não lhes permite enxergar (como as produções voltadas para o público negro e LGBT). Enquanto o ScriptBook poderia auxiliar na promoção da diversidade nos filmes, detectando se eles incluem personagens femininas relevantes na trama, se os diálogos contêm preconceitos e aspectos semelhantes. 

Fato é que a inteligência artificial já transformou o cinema de forma irremediável. A Netflix é retrato desta inovação. A maior rede de streaming do mundo se orgulha de seguir uma estratégia orientada a dados. A plataforma examina os perfis, ações e escolhas dos milhões de assinantes e já coletou uma quantidade quase infinita de informações dos usuários. Com estes dados, ela busca entregar o filme que mais o agradaria ou até convencê-lo a dar um clique em determinada produção.

De etiquetas especiais a produções voltadas para nichos, a Netflix tenta personalizar até a imagem que aparece na tela quando você entra no aplicativo. A confissão foi feita pelo próprio vice-presidente de produto da companhia, Todd Yellin, durante entrevista para divulgar o lançamento da segunda temporada de “Stranger Things”. E é provável que a utilização de ferramentas do tipo sejam cada vez mais comuns. Porém, a interferência da tecnologia em benefício do cinema pode fazer com que o maior prejudicado seja o próprio cinema. 

Ao passo que Hollywood se dispõe a permitir que tecnologias emergentes participem mais ativamente dos processos de decisão, a inovação e engenhosidade podem ser colocadas em segundo plano. Na maior parte das vezes, quanto mais um filme parece pensar em bilheteria, menos inventivo, complexo ou questionador ele é. Afinal, o objetivo é justamente agradar o maior número de pessoas possível. 

Desta forma, ideias malucas podem vir a ser descartadas instantaneamente. Um cineasta visionário busca sempre desafiar o status quo para mostrar ao mundo o que o resto de nós não vê. Mesmo os produtores medíocres e ruins são pessoas apaixonadas pela arte, se empolgam com filmes interessantes e tentam colocar na tela aquela visão de mundo transgressora, aquela obra extraordinária (muitas vezes não conseguem, claro). 

O problema é que estes cineastas não costumam fazer filmes populares e nem ganham dinheiro o suficiente para agradar os estúdios. A maior parte da indústria acredita que a maneira de atrair grandes audiências é contar histórias que o público já está acostumado e interessado, estrelando atores que eles já conhecem. E o pensamento não está errado: as 9 maiores bilheterias mundiais de 2019 foram adaptações, continuações ou remakes. A 10º colocação, “Ne Zha”, é um filme chinês que não estreou no Brasil e cujo faturamento nos EUA foi de apenas 3 milhões de dólares. 

A Disney foi responsável por 7 destes 10 filmes. Isso sem contar “Homem-Aranha: Longe de Casa”, que é co-produção do conglomerado em conjunto com a Sony. Antes sinônimo de inovação, a companhia parece, agora, favorecer a nostalgia, cedendo terreno para os algoritmos que prezam mais pela certeza do que por tentar algo novo. O ambiente parece querer se consolidar sem espaço para os visionários, como o próprio Walt Disney. 

Martin Scorsese, um dos maiores diretores das últimas décadas, precisou da Netflix para colocar Robert De Niro, Joe Pesci e Al Pacino juntos em “O Irlandês”. Ao lançar “Roma” na mesma plataforma, Alfonso Cuarón vencedor de dois Oscar provocou: “quais cinemas americanos exibiriam um filme mexicano, filmado em preto e branco e falado em espanhol?”.

Enquanto os algoritmos inundam Hollywood, a tecnologia vem impactando até o trabalho desempenhado pelos atores. O recente remake de “Rei Leão”, a versão jovem de Will Smith em “Projeto Gemini” e a participação de Carrie Fisher, mesmo após a morte da atriz, no último filme da trilogia de “Star Wars” são amostras disto. 

No final de 2019, um passo ainda mais largo foi dado. A produtora Magic City Films anunciou que o ator James Dean, morto em 1955, voltaria aos cinemas para estrelar o filme “Finding Jack”, ambientado na Guerra do Vietnã. 

Muito caminho será percorrido até a tecnologia estar totalmente presente na produção criativa e de processos elementares do cinema. Não será de um dia para o outro, mas, há muito tempo, já foi dada a largada. E o caminho aparentemente está sem obstáculos: o público costuma assistir sempre os mesmos programas de TV e filmes, todos os conteúdos novos que vemos foram recomendados por conhecidos, por críticas em jornais ou pelos grandes investimentos em marketing. Muitas vezes para um filme fazer sucesso, ele precisa estar na nossa zona de conforto. E é isso que os algoritmos vão aprender.

Não podemos deixar de lado todo o potencial que a tecnologia tem para oferecer. Pelo contrário, é fundamental utilizar os recursos disponíveis para produzir filmes ainda mais incríveis e revolucionários (vide o processo envolvido na franquia “Avatar” e na produção dos longas de James Cameron). No entanto, em um mundo orientado por algoritmos, é provável que haja pouco incentivo para que o público busque algo novo. Neste cenário, é importante buscar obras que não reforcem preconceitos, incentivando o desenvolvimento de obras autorais e, principalmente, que nos faça usar a imaginação.

Breno Damascena
@brenodamascena_

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